Quando
um pensamento percorre incessantemente o universo, quando se aventura e se
perde em distâncias incomensuráveis, na infinidade dos possíveis, e se volta
por um momento a fim de se fixar nas minúsculas que relas da Terra,
reivindicações de fronteiras, possessões, insultos e ameaças recíprocas
lançadas de um lado e do outro de uma linha imaginária, de uma cadeia
montanhosa, de um rio, de um posto alfandegário, um nacionalismo estreito,
mesquinho, que nos deixa paralisados, o que dizer?
Como reagir, no regresso
das estrelas?
Um tal pensamento
dificilmente poderá misturar-se às miseráveis lutas terrestres. Vê as pequenas
coisas de demasiado longe. As estrelas não são propriedade de ninguém. (...)
- Está
guardado para quê?
- Para
trabalhar, com certeza, já lho disse. Para prosseguir com as minhas
investigações. Para dar a nossa opinião sobre as opiniões dos outros, como
Newton continua a fazer com as minhas.
Mas com uma má-fé
total. praticamos a ciência espectral. Parece que as nossas equações, nas minhas
em particular, existem segredos, tão bem escondidos que nos passaram
despercebidos. Assim, andamos à procura, obstinadamente, todos juntos,
juntamente com os que estão ali, na sala de espera, com os que me escrevem, com
os que me telefonam.
Aquilo que nos é
concedido não é grande coisa na corrente da eternidade. Uma pequeníssima
vitória sobre a morte. Sobre a morte física. A ilusão de ainda estarmos vivos.
E Newton, que preferiu ficar acima da discussão, deve sentir que, desta vez, os
seus sobressaltos não vão prolongar-se, que está a ser usado, que já está fora
da corrida, que em breve vai dissolver-se e juntar-se ao enorme grupo
silencioso das sombras sem utilidade. Desta vez, sem esperança de regresso. Mal
deixará quinze ou vinte linhas na história geral das ciências.
- E o senhor
também?
- Com
certeza. Apagamo-nos uns aos outros. E cada um de nós guarda no bolso algumas
migalhas de todos aqueles que nos precederam.
(...)
- O
pensamento desta espécie - ínfima no universo - é necessariamente limitado a si
mesmo. O pensamento das formigas exerce-se ao nível das formigas e o dos homens
ao nível dos homens. Estabelece os seus próprios critérios, as suas próprias
regras de verificação, e admira-se de que aquilo que observa corresponda àquilo
que decretou.
A jovem disse-lhe
ainda: o pensamento humano apenas tem como referência o pensamento humano. As
leis que ele descobre e verifica no universo, nada nos diz que existam numa
realidade absoluta e, mesmo que existam fora de nós, que sejam justas. Não
passam de uma projecção de nós mesmos, só são justas para nós. Como dizem
com insistência os partidários da quantidade, os realistas, é até provável que
o universo não seja aquele que observamos e analisamos, ou pelo menos que não
seja só isso.
Outra
teoria, outros encadeamentos matemáticos e outras experiências de verificação,
numa outra versão do universo, arrastar-nos-iam sem dúvida para territórios
semeados de armadilhas, onde nos perderíamos. cada pensamento cria a sua
própria prisão, de onde se evade pelos seus próprios meios. Ou julga evadir-se.
Pois cavamos os nossos túneis de evasão e, ao mesmo tempo, avisamos os guardas.
A mesma voz que faz as perguntas dá as respostas. Nem as especulações
religiosas, bloqueadas desde a partida pelo dogma, nem as aventuras filosóficas
temerárias, nem o virtuosismo extremo (aos nossos olhos) das verificações
técnicas, nem as nossas escapadelas fantasmagóricas, ultrapassam o humano. E
com razão. As nossas provas só têm valor para nós. Provavelmente, não interessam
a mais ninguém, salvo como curiosidades locais. O nosso sistema sensorial, o
nosso pensamento lógico e a nossa imaginação exercitada, não conseguem sair do
nosso círculo.
Jean-Claude
Carrière, Entrevista a Einstein. Quetzal, págs. 103, 167 e 168.