sábado, 23 de abril de 2016

Ler...

 Ler devia ser proibido. Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. 

Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madamme Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para mexericos e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.

Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.

Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais? Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem necessariamente ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.

Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas. (…)

Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos, em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.
O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projectos, manuais, etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incómodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?

É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da alcova… Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um. Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos. Para obedecer, não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem do submisso. Para executar ordens, a palavra é inútil.

Alem disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna colectivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida. Ler pode tornar o homem perigosamente humano.
Guiomar de Grammont: “Ler devia ser proibido”, 
in PRADO, J. & CONDINI, P. (Org.). A formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro: Argus, 1999. pp. 71-73.

Imagem: The Sisters” (1839) by Margaret Sarah Carpenter (1793-1872).

terça-feira, 19 de abril de 2016

Darwin e as Ciências - campos de alargamento


 
"No futuro distante, vejo campos abertos para pesquisas muito mais importantes. A psicologia será baseada num novo fundamento, baseado na necessária aquisição de cada poder e capacidade mental via gradação. Luz será lançada sobre a origem do homem e sua história."
Charles Darwin, em A Origem das Espécies, 1859

Charles Darwin é possivelmente o maior pensador do século XIX, pois formulou uma teoria que mudaria o modo como vemos a vida, o universo dando grandes contributos para o alargamento da Ciência com o surgimento progressivo de nos campos do conhecimento. Publicado a vinte e quatro de Novembro de 1859, Sobre a origem das Espécies através da selecção Natural, ou a Preservação das Raças favorecidas na luta pela Vida (o seu título completo) foi a mais importante publicação de Darwin. Teve um enorme sucesso imediato e criou uma significativa polémica no campo civil e religioso.

O livro deu um contributo extraordinário para o mundo cultural, pois trazia abordagens novas sustentadas por dados. As críticas ao livro fundamentavam-se na ideia de que todos os seres vivos tinham origem em processos inteiramente naturais. Neste sentido o livro abalava os fundamentos da sociedade, pois desafiava todas as concepções anteriores sobre os seres vivos e foi o embrião para as transformações culturais e sociais que ocorreram no Ocidente durante Oitocentos. Num certo sentido o sentido moral e ideia divina de séculos anteriores perder-se-iam às portas do século XX e nesse sentido é uma obra de referência.

As suas ideias acabaram por ser aceites pela comunidade científica e pelas pessoas de um modo geral. A teoria da selecção natural parecia encontrar na realidade formas de a aceitar. Na década de 30 do século XX a teoria estava já plenamente aceite. A partir dela nasceu a a teoria evolucionista. A Biologia ao explicar a diversidade da vida acaba por ser devedora das ideias de Darwin. A importância de Darwin foi ter permitido alargar outros campos do conhecimento. Além das Ciências Biológicas, áreas como a Antropologia ou a Psicologia. Abriu possibilidades de ver o Ambiente e a Terra como um espaço em evolução.

Alguns viram nas ideias de Darwin uma incapacidade de responder satisfazer a todas as questões que a Bioquímica trouxe. As complexas funções químicas e biológicas do Homem poderiam ser explicadas apenas a partir de um passado evolutivo? Michael Behe, em A caixa negra de Darwin acredita que não. Os criacionistas têm procurado mostrar algumas limitações da teoria da Evolução. É o campo de análise entre Ciência e Fé. É evidente, todavia que a selecção natural é um pilar da Biologia, pois a resistência das bactérias, ou a evolução das florestas a efeitos de aquecimento global estão presentes. O próprio sistema global da Terra, o seu clima de que Al Gore tem falado é um elemento de alargamento desta teoria. 

O nosso mundo económico vive igualmente das suas ideias, pois quando se protegem empresas de fechar não se está a contrariar a selecção natural e a diminuir a possibilidade de desenvolvimento da sociedade? 
A questão da evolução a partir de um ancestral comum parece evidente e confirmada pelos estudos de DNA. A pergunta que importa responder é a seguinte: estará a espécie humana ainda em evolução e será esta selecção natural integradora de características físicas do homem, ou incluirá também aspectos comportamentais? É uma pergunta para o futuro que nos conduz ao valor significativo da obra de Charles Darwin.


Memória de Darwin


Desde os Gregos que o Homem procura compreender a sua natureza, mas também o que o envolve, o meio natural. No fundo compreender o universo através de equações que possam ser sistematizadas pela razão. Entre os criadores e pensadores de diferentes tempos que contribuíram para o alargamento da Ciência, um tem especial destaque, Charles Darwin.

A 19 de abril de 1882 celebra-se a memória de Charles Darwin, um naturalista e biólogo inglês que revolucionou o modo como o século XX viria a ver o mundo. Desde cedo Darwin revelou um grande interesse pelos fenómenos naturais. Contactou com naturalistas e com as temáticas da Botânica e da Geologia quando estudou Teologia. A 27 de dezembro de 1831 participou numa expedição à volta do mundo realizado pelo navio de nome Beagle. Durante cinco anos observou fósseis e recolheu amostras da natureza em diferentes locais.

A partir da sua observação construiu uma nova teoria explicativa do mundo natural. A sua teoria ficou expressa no livro A Origem das Espécies, criando desde a sua publicação uma imensa polémica pelas respostas que apresentava. Seria, no entanto, o seu segundo livro, A Origem do Homem que Darwin iria concretizar melhor as suas ideias de que o Homem tinha realizado um processo de evolução a partir de um antepassado comum. Poucos homens influenciaram o conhecimento e a Ciência como Charles Darwin. 

Em 1872 publicaria o seu último livro, A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, onde procurou mostrar que o corpo e também a mente sofreram um longo processo de evolução. Darwin reformulou, ou podemos mesmo dizer reinventou a Natureza, no sentido em que abriu campos novos. O Evolucionismo, teria grande impacto na formulação de outras Ciências. Da Biologia, à Medicina e à Antropologia ele fez avançar a Ciência, que mais não é que a procura racional de compreender o mundo e os seus fenómenos. O campo científico contemporâneo é-lhe devedor na formulação do seu próprio pensamento. 

As suas ideias levantaram um coro de protestos na sociedade vitoriana. Os fundamentos da sociedade burguesa pareciam levar aqui mais um forte choque. A Igreja foi especialmente dura, pois como séculos antes com Galileu, a abertura de novos horizontes ameaçava a segurança do que se conhecia, do que estava estabelecido. Os primeiros anos do século XX e o seus conflitos mortais evidenciaram a natureza humana de uma forma que as ideias de Darwin e de outros, como Freud, viriam a confirmar da pior maneira.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Memória de uma estrela cintilante


"...faço também parte de uma geração que, na Europa, na América, e noutras partes do mundo, quis levar a ciência para a rua, levar a experimentação para a escola, trazer a argumentação científica para dentro dos debates de sociedade e para a decisão política democrática. " (Análise social, 2011)                                                                                                                                              
José Mariano Gago, foi um exemplo. José Mariano Gago foi um cientista que nos deu a ciência como suporte de formação no nosso quotidiano, o das escolas e o das pessoas. José Mariano Gago foi um ser humano acima das pequenas palavras, que desbravou formas de estimular a Ciência como forma de conhecer o mundo e as pessoas. Nessa atitude de desbravamento ousou criar possibilidades entre as  barreiras dos pequenos espíritos.

José Mariano Gago é uma daquelas raras pessoas que a "política" tem em milénios de uso. José Mariano Gago estudava a ciência como forma de todos podermos participar como comunidade. José Mariano Gago superou em galáxias de distância os pequenos gestos que vemos em tantos dias em políticas de marginal grandeza. 

José Mariano Gago foi o canto de cisne de uma cultura democrática perdida tantas vezes em palavras sem substância. Ele foi um exemplo do que poderíamos ser, se percebêssemos o valor da educação e do conhecimento para construir futuros. Foi, como disse o Miguel Esteves Cardoso, um herói, um homem bom. Um cientista que chegou à governação para dar um contributo positivo à ciência e foi por isso um benfeitor. A política neste País não é servida por exemplos destes. Vejamos nele alguém que nos ensinou o essencial.  

Aguardemos e lutemos para que a intervalos intermitentes, o seu espírito desça a vontades dignas de uma comunidade que se sabe pensar e existir em decência e grandeza de espírito. Partiu há um ano e é uma memória da nossa melhor forma de ousar pela imaginação novas fronteiras a descobrir. Obrigado José!


Encontro - "As ondas gravitacionais"


Há momentos que não se descrevem. Experimentam-se, absorvem-se e ficam como uma experiência de quase epifania. Foi o que aconteceu hoje na sala de audiovisuais com três elementos do Departamento de Física do Instituto Superior Técnico. 
Um professor e dois alunos (um mestrando e um doutorando) apresentaram uma palestra sobre as ondas gravitacionais. Souberam falar com extrema simplicidade de um assunto complexo. Deram aos presentes a motivação para olhar para o Universo, tentar ouvir os seus sinais, de modo a que cada vez mais nós o possamos compreender. 
De um modo simples os presentes compreenderam o que são ondas gravitacionais. Perceberam que são essencialmente deformações no tecido espaço-tempo, que Einstein tinha já previsto na Teoria da Relatividade Geral. A geometria do universo pode ser distorcida por uma grande massa, sendo que essa curva construída seria a própria gravidade. Foram revelados testes feitos nos Estados Unidos ao nível da exploração das partículas que de um modo experimental comprova a teoria de Einstein. Foi um momento brilhante, com uma boa participação dos alunos.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Habitar os LIvros (II)

Um dia, eu disse: vamos brincar à beleza das coisas que se pensam, como as que se lêem. Porque as coisas que se lêem precisam de ser pensadas. E ela perguntou: as que existem ou as que não existem? E eu disse: todas. As coisas todas que pudermos imaginar.
Então, ela propôs: pássaros com trombas de elefante a voar sobre cabeças de mulheres com raízes de árvores. 
Rimos muito e eu exclamei: que lindo. Repeti, lentamente: pássaros com trombas de elefante a voar sobre cabeças de mulheres com cabelos de raízes de árvores. Depois acrescentei: chávenas de chá com bocas falantes que ferram mãos de quem as tenta pegar. Rimos muito e ele exclamou: que lindo. Repetiu: chávenas que ferram. 
Ela disse: carros com pneus feitos de batatas gigantes que têm pêlos como as pernas dos homens e a transportar famílias de galinhas felizes. Rimos e eu exclamei: que lindo, adoro galinhas felizes. Repeti: carros com famílias de galinhas felizes.
E se fosse um homem com tartarugas ao invés de olhos? Ia ver muito devagarinho. E outro que tivesse um canguru ao invés da boca? Ia falar aos saltos.
Uma árvore que tivesse braços de pessoa ao invés de troncos e segurasse ninhos de cegonhas nas mãos. Que lindo! Depois, eu disse: os meus pais a darem um beijo. E os meus avós. E ela respondeu: e os meus também. Rimos, e exclamamos subitamente em conjunto: que lindo.
Fui dizer-lhe que me haviam levado os livros do quarto. Estava igual a sozinho. Absolutamente sozinho a noite inteira. E ela respondeu: isso é feio. Sabia bem que importância tinham para as minhas histórias. Ela perguntou: e agora? Eu respondi: passo os dias à espera dos intervalos para ler um bocadinho. Passo as noites a sonhar à pressa para poder acordar e voltar a ler. Ela respondeu: sonhar à pressa é uma pena.
Quando eu sonhava que lia, acordava. Parecia um castigo.
Era comum, subitamente, que eu me esquecesse de tudo durante os intervalos. Corria para os bancos no lado da frente do colégio, à vista dos janelões principais, e aí deitava os olhos às letras e a alma inteira à imaginação. Quando era hora de entrar, tantas vezes algum colega vinha cutucar-me. Diziam: anda, seu distraído. Anda embora.
Um dia, ninguém me cutucou. Fiquei apenas caminhando dentro de mim, o que era diferente da solidão. (...) Voltaram para dizer à professora: parece que se mudou para dentro do livro porque não ouve a nossa voz. Usámos os binóculos da sala de ciências e vimos bem, senhora professora. Ele sorri. Está feliz.
Isso levantara o problema de saber como trocar a felicidade pelo regresso à aula.

Valter Hugo Mãe. (2015). "O rapaz que habitava os livros". Porto: Porto Editora, págs. 95-97.

Imagem -Copyright: André Neves

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Habitar os livros (I)

  Fui ver a minha nova estante logo pela manhã.
Era um bocado de espaço arranjado entre tralhas meio esquecidas. Fiquei ofendido. Os livros não esquecem nada. Eles são sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à sua própria natureza. Embora, na verdade, eles nem se devem importar, porque podem esperar eternamente. (...)

As histórias podem comer muitas palavras.
Pensei: os meus queridos livros. Era o que eu pensava e sentia: os meus queridos livros. Olhava-os como se estivessem vivos e pudessem sofrer. Como se pudessem também entristecer.
Gostei de colocar a hipótese de os livros serem como bichos. Isso faz deles o que sempre suspeitei: os livros são objectos cardíacos. Pulsam, mudam, têm intenções, prestam atenção. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência. 
Os livros estão esbugalhados a olhar para nós. Quando os seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados a olhar para nós. (...)

A primeira vez que vi um livro, que me lembre, era um que estava aberto, pousado sobre a mesa, com as folhas em leque como se fossem uma colorida flor contente. (...) Depois, compreendi, era o modo silencioso das conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos anos.
A morte não importa muito para os livros.

Mais tarde, aprendi que os livros acontecem dentro de nós. Claro que eles podem ser bonitos de ver, mas são sobretudo incríveis de pensar. Eu disse ler é como caminhar dentro de mim mesmo. E é verdade. Quando lemos estamos a percorrer o nosso próprio interior.
Uma menina do colégio perguntava-me sempre se eu queria brincar às coisas bonitas. Brincar de beleza, dizia assim. Era igual a ficarmos cheios de delicadezas a fazer de conta que adorávamos tudo: os puxadores velhos das portas, os livros de álgebra, as meias rendadas da professora, a sopa de beterraba à hora do jantar no refeitório ou o cão zangado do guarda nocturno. Servia de maneira divertida para fazermos de conta que o mundo era maravilhoso e, subitamente, o mundo inteirinho parecia mesmo maravilhoso. Isso era tão bom de sentir.

Valter Hugo Mãe. (2015). "O rapaz que habitava os livros". Porto: Porto Editora. 93-94.

Imagem: Copyright - Festival au fort d'aubervilliers.

domingo, 3 de abril de 2016

O livro e o leitor

 "Entre as frases -, no intervalo que as separa permanece ainda hoje como num hipogeu inviolado, enchendo os intrerstícios, um silêncio muitas vezes secular." (1)

A História das Instituições e a evolução social estão marcados por um objecto que lê o que nos rodeia e que é por isso uma ferramenta de análise e de assimilação de valores culturais. A importância do livro nas sociedades históricas releva da construção da memória, da afirmação e coesão do contexto social, mas também das suas marcas nos espaços privados, na construção do gosto individual. 
Exemplos da tentação de domesticar as ideias, pela posse de livros censurados, a sua destruição como objecto desorganizador do quotidiano não faltam. Eles revelam a importância da memória nas sociedades humanas.

O livro empresta aos seus utilizadores uma desafiadora noção de individualidade, capaz de fazer criar a dúvida, a inquietação e é por isso que alguns no extremo acreditaram que queimar o livro, é destruir as palavras e a as ideias que nele vivem. Acreditaram infantilmente que o passado podia ser mais que apagado, reescrito. O livro tem pois um valor significativo, mas também simbólico. Ele empresta ao quotidiano aspectos organizativos, concedeu valoração a muitas representações culturais e certificou ideias emergentes e causas. 
O livro revela-se como objecto e ferramenta de um quotidiano, onde o leitor constrói a escrita do livro.

António Lobo Antunes costuma dizer que depois de escrito, o livro é do leitor. As diversas leituras dão ao livro significados diferentes no tempo e no espaço. Leituras do próprio autor, em função de contextos diferenciados, onde a leitura pública ofereceu respostas à formação de leitores e às dúvidas do autor. Compreender o acto criativo pelas palavras é ainda hoje um mistério e o verdadeiro desafio para comparar o diálogo entre a voz do escritor e a a voz do texto. 
Leitura e assimilação que foi feita de modo diverso e que as portas da leitura realizaram ao alimentarem mundos particulares.

Que dimensão têm as nossas memórias? Participamos delas, ou elas são episódios que nos chegam por outros e assim nós somos construção da sua memória. Uma História que relacione as mentalidades e os quadros mentais com a vida vivida e a oferecida pelos livros é algo que está ainda timidamente feito. 
A análise dos personagens dos livros reflecte esta distinção na sociedade e é um dos aspectos simbólicos do livro. O seu leitor.
Ele é também o criador de uma conversação consigo próprio, mas também com o mundo. A memória conserva a dimensão de construção humana no espaço e no tempo, permite ensaiar novas formas de reconstruir a humanidade e o seu património. 
As memórias da leitura são em parte o testemunho dos momentos que por elas vivemos no real.

(1) - (Marcel Proust, O Prazer da Leitura)
Imagem: Copyright - "Dans la Bibliothèque" (1872) - Auguste Toulmouche (século XIX)