"Em
Manhufe, na freguesia de Mancelos, no concelho de Amarante, é possível sonhar
com Paris. Em Manhufe, cem anos depois de Amadeo de Souza-Cardoso, quantos
Amadeos ainda sonham com Paris?
Essa
não é uma contabilidade de números rigorosos, talvez sejam necessárias frações,
terços e quartos, talvez sejam necessárias percentagens inventadas. Há mais
neblina do que matemática nessa contabilidade. Também sem resposta, podemos
perguntar como será essa Paris sonhada? Quantos caminhos existem até ela?
Enorme
é a certeza de que, em Manhufe, parte de uma freguesia e parte de um concelho,
existe alguém a sonhar com Paris.
Não é demasiado significativa a forma exacta
dessa esperança, mais importante é a intensidade do seu brilho. Ao longo das
noites de Manhufe, alguém sonha com a cidade das luzes. Também nesse caso não
há medições rigorosas para a intensidade do brilho, mesmo que engenharias
inteiras tentem provar o contrário, falta uma escala que aceite todo o concreto
que existe na subjectividade.
Os
pequenos sonham com os grandes, talvez sonhem em ser grandes, mas quais são os
números capazes de medir esses tamanhos com precisão? Quem é, afinal, pequeno e
grande?
A
internet não sabe quantas pessoas vivem em Manhufe. No entanto, diz-me que em
toda a freguesia de Mancelos há cerca de três mil habitantes. Em Paris, afirma
a internet, vivem mais de dois milhões e duzentos mil. Entre estes, quantos
sonham com Manhufe? Será que existem? Será que é possível sonhar com Manhufe em
Paris?
As
perguntas são úteis, ajudam-nos a pensar com clareza.
É
certo que em Manhufe há quem sonhe com Paris, é assim há mais de cem anos. Mas
se, entre tantos parisienses, não houver quem sonhe com Manhufe, não será
possível afirmar que, nesse aspeto, Manhufe é maior do que Paris?
Em
1913, instalado em Paris, Amadeo de Souza-Cardoso pintou Cozinha da Casa de
Manhufe, óleo sobre madeira, 29,2 x 49,6 cm. Para além do muito que podemos
encontrar nessa imagem de sombras e recantos, fica a evidência de que, já nesse
tempo, aqueles que nasceram em Manhufe, eram capazes de sonhar/lembrar a sua
terra quando estavam em Paris. A pergunta paralela a essa certeza é: quantos
pintores nascidos em Paris estiveram em Manhufe e aí sonharam/lembraram a sua
cidade?
Sonhar
é uma imensa qualidade, edifica futuro. Lembrar também favorece o mesmo
resultado, a memória é um precioso material de construção.
Em
1887, em Manhufe, freguesia de Mancelos, concelho de Amarante, distrito do
Porto, em Portugal, nasceu um pintor excepcional. Aquilo que conseguiu ver foi
novo durante muitos anos, ainda é, talvez seja novo para sempre. Mesmo morto
pela gripe espanhola, Amadeo de Souza-Cardoso nunca deixou de ser jovem. Pouco
antes desse dia, 25 de Outubro de 1918, estava em Manhufe e sonhava em
regressar a Paris.
por
José Luís Peixoto, in revista Up
A
Casa de Manhufe, Óleo
s/madeira, 50,5 x 29,5cm, c.1913; Colecção Particular