terça-feira, 31 de maio de 2016

Amadeo de Manhufe


"Em Manhufe, na freguesia de Mancelos, no concelho de Amarante, é possível sonhar com Paris. Em Manhufe, cem anos depois de Amadeo de Souza-Cardoso, quantos Amadeos ainda sonham com Paris?

Essa não é uma contabilidade de números rigorosos, talvez sejam necessárias frações, terços e quartos, talvez sejam necessárias percentagens inventadas. Há mais neblina do que matemática nessa contabilidade. Também sem resposta, podemos perguntar como será essa Paris sonhada? Quantos caminhos existem até ela?
Enorme é a certeza de que, em Manhufe, parte de uma freguesia e parte de um concelho, existe alguém a sonhar com Paris. 

Não é demasiado significativa a forma exacta dessa esperança, mais importante é a intensidade do seu brilho. Ao longo das noites de Manhufe, alguém sonha com a cidade das luzes. Também nesse caso não há medições rigorosas para a intensidade do brilho, mesmo que engenharias inteiras tentem provar o contrário, falta uma escala que aceite todo o concreto que existe na subjectividade.
Os pequenos sonham com os grandes, talvez sonhem em ser grandes, mas quais são os números capazes de medir esses tamanhos com precisão? Quem é, afinal, pequeno e grande?
A internet não sabe quantas pessoas vivem em Manhufe. No entanto, diz-me que em toda a freguesia de Mancelos há cerca de três mil habitantes. Em Paris, afirma a internet, vivem mais de dois milhões e duzentos mil. Entre estes, quantos sonham com Manhufe? Será que existem? Será que é possível sonhar com Manhufe em Paris?

As perguntas são úteis, ajudam-nos a pensar com clareza.
É certo que em Manhufe há quem sonhe com Paris, é assim há mais de cem anos. Mas se, entre tantos parisienses, não houver quem sonhe com Manhufe, não será possível afirmar que, nesse aspeto, Manhufe é maior do que Paris?

Em 1913, instalado em Paris, Amadeo de Souza-Cardoso pintou Cozinha da Casa de Manhufe, óleo sobre madeira, 29,2 x 49,6 cm. Para além do muito que podemos encontrar nessa imagem de sombras e recantos, fica a evidência de que, já nesse tempo, aqueles que nasceram em Manhufe, eram capazes de sonhar/lembrar a sua terra quando estavam em Paris. A pergunta paralela a essa certeza é: quantos pintores nascidos em Paris estiveram em Manhufe e aí sonharam/lembraram a sua cidade?

Sonhar é uma imensa qualidade, edifica futuro. Lembrar também favorece o mesmo resultado, a memória é um precioso material de construção.
Em 1887, em Manhufe, freguesia de Mancelos, concelho de Amarante, distrito do Porto, em Portugal, nasceu um pintor excepcional. Aquilo que conseguiu ver foi novo durante muitos anos, ainda é, talvez seja novo para sempre. Mesmo morto pela gripe espanhola, Amadeo de Souza-Cardoso nunca deixou de ser jovem. Pouco antes desse dia, 25 de Outubro de 1918, estava em Manhufe e sonhava em regressar a Paris.
Por aquilo que conseguiu ver, pela intensidade desse brilho, Amadeo será sempre recordado. Os seus sonhos são agora memórias de outros e, ao mesmo tempo, são contributos para novos sonhos, edificam futuro. Por toda essa luz, Amadeo será sempre recordado em Manhufe".

por José Luís Peixoto, in revista Up
A Casa de Manhufe, Óleo s/madeira, 50,5 x 29,5cm, c.1913; Colecção Particular

terça-feira, 24 de maio de 2016

Amadeo - desenhar uma personalidade fascinante (VII)


A morte leva-o em três dias. Um cobertor de trevas vem sufocar-lhe a fímbria das pestanas caídas, o peito regougando num tablado a rebentar. Na linha dos cabelos, uma coroa de água de contínuo lhe encharca a testa. Vibra de súbito uma laranja, um cobalto, aos nervos transmitindo o choque da febre. No horizonte os castelos se acomodam, em sua frescura de florestas imensas. Andam, sente o homem, pelas pranchas de câmara, em seu rosto despejando um olhar abismado.

Porque morre? Ele lançara, no período de trinta anos e onze meses e treze dias, a órbita completa da longa experiência. Explorar as vias que rasgara, numa disciplina fatal de burocrata, seria contradizer-se, homem que só inverno discernia os alicerces da natureza.  Também no amor, aquele olhar que jamais se aplacara na focagem de um objeto único, se alongava agora por promessas de perigo a que se julgava incapaz de resistir. Daí que o recebimento que concede à morte assuma o carácter de finitude, que assiste sempre a liquidação das contas de um ser com ele mesmo. (...)

E Amadeo, na incessante vertigem da produção, apenas se teria por predestinado enquanto libérrima criatura, cara a cara com o destino. Nesse vinte e sete de outubro de 1918, a vida que findara começava, como todas as que se extinguem, no reaver do palpitar definitivo de suas cores. Quanto às alamedas de Espinho, que no crepúsculo dos finais da estranhíssima guerra se tomavam despovoadas e varridas de areias, igualmente saberiam elas que a sua hora soara.

Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, página 106.


segunda-feira, 23 de maio de 2016

Amadeo - desenhar uma personalidade fascinante (VI)


Administrador do talento próprio, se nos arriscássemos a falar de tal essência a propósito de quem progressivamente escravizou meios de expressão e aparelhagens de domínio, jamais Amadeo se olvidará de si. Pessoas de tal nervo, só porque não podem dar-se ao luxo da ausência de si próprias, se não ausentam dos outros. 

Temos visto desses irmãos que erigiram o currículo à custa da obsidiante preocupação consigo mesmos, reflectida, como numa ilusão de espelhos, na solicitude para com o próximo e até para com os objectos. Assim foi Amadeo, assim o sofreram alguns que, agastados pela sua presença, incontinentemente o votaram à danação de que, afinal,investidor vocacionado que sempre entendeu de conveniências, viria a retirar os melhores dividendos. 

Ninguém, daqui para diante, o insultará de louco, reconhecendo-lhe todavia a malevolência capaz de converter um morno serão numa tarde de Carnaval. Só que a desordem do espírito é de muito mais que necessita, da aptidão para visionar e não só para resolver, da anulação absoluta de ser arte a ideia que o transponha. Se Amadeo atingisse qualquer forma de náusea, o que é duvidoso, alguma vez acontecesse, seria daqui que viria a crescer, desta sabença de que a rotação dos ponteiros é só para si impossível carreto de levar aos ombros.

Com a quotidianidade forçada às fronteiras que convencionara, experimentaria a agonia irritada dos que assistem à festa por detrás de um esconso guarda-vento, dos que vitoriam as  núpcias dos outros com a sabedoria acumulada e insubmissa de jamais nelas poderem participar. Imputar-lheao alguns a inacessibilidade, outros o mau gosto, não sendo de excluir os que, desentendidos de sinuosidades estéticas, apenas suspeitarão a rendibilidade do charlatanismo ou o modismo da mediocridade. 

Permanecerá Amadeo aquém e além deles, nesse ubíqua condição em que se reverenciam os que foram e ficaram? Só os deuses, para quem a morte é jovem, pairam eternamente em regiões assim, o que será talvez conclusivo sinal da genialidade do servo que convocaram.

Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, página 107 e 108.
Imagem -Copyright: Amadeo de Souza-Cardoso- O muro na jenela
Óleo s/ tela, 28 x 21cm
c. 1916

Colecção Particular
Museu Municipal Museu de Souza-Cardoso, Amarante

Bioética - os seus campos de decisão


A civilização moderna encontra-se numa posição difícil, porque embora edificada para nós, não está ajustada à nossa medida. A nossa ideia de homem ainda não encontrou o seu lugar estranho e complexo, ela oscila entre a visão filosófica, que o erige no único sujeito num mundo de objectos, e a visão científica que tende a ignorar o espírito humano. Ainda não ajustámos a nossa visão do Homem ao Homem e do mundo ao mundo.

Recordamos aqui a célebre alegoria da caverna. As sombras projetadas no fundo da caverna são o mundo natural, aquele que percecionamos. Esses prisioneiros agrilhoados no seu lugar e aos quais uma gargantilha impede de voltar a cabeça “é connosco que se assemelham”. A fascinação que o jogo irrisório das silhuetas imprecisas exerce sobre esses infelizes revela o nosso estado, sentimo-nos perdidos: o meio elaborado pelo Homem não se ajusta à nossa estatura, nem à nossa natureza. Assim poder-nos-emos questionar se o Prometeu revestido pelo poder, desagrilhoado, na opinião de alguns, ou seja com o poder de intervir, de praticar o possível e mesmo o impossível, não o vai voltar a agrilhoar, se ele não olhar ao conveniente.

Vivemos num presente esmagado pelo peso do futuro. A nossa relação com o tempo é, antes do mais, uma relação extremamente dura e violenta com o futuro. Fala-se do futuro mas, paradoxalmente, nunca fomos tão responsabilizados pelo futuro que devemos deixar às gerações seguintes. Deveríamos, portanto, mudar radicalmente de atitude e romper com todo o tipo de utopismo. Quer o aceitemos ou não, estamos investidos de uma responsabilidade desconhecida, a de deixarmos às gerações futuras uma terra habitável e um mundo sustentável. Sem isto, os nossos descendentes não serão capazes de progredir, nem exercer as suas responsabilidades.

Necessitamos de uma reabilitação do ethos, dos valores morais que fundamentam as atitudes humanas; precisamos da ética, de teorias filosóficas sobre os valores e normas que devem nortear as nossas decisões e comportamentos. A atual crise deve ser entendida como uma oportunidade; importa encontrar uma resposta para os desafios do presente. Se o futuro não está escrito, é múltiplo. Assim todas as possibilidades, mesmo o impossível, são imagináveis. A questão da escolha é portanto essencial.

A Bioética, ética aplicada às ciências da vida, surge na interseção de uma crise de valores e de normas coletivas com o desenvolvimento do individualismo das pessoas e do pluralismo das sociedades. Estimula o debate público sobre as escolhas para o nosso futuro, promovendo uma alteração de consciência, incentivando a participação informada e responsável dos cidadãos. Como ciência transdisciplinar, começa a ser reconhecida como a componente indispensável da formação do cidadão empenhado na vida coletiva, tornando-se numa ética do cidadão, numa ética cívica, enquanto reflexão sobre a ação que se desencadeia, desenrola e se repercute na comunidade global. Tal como defende Victoria Camps (1998), a participação cívica deve ser encarada como a estrutura moral da democracia, onde a ética contribui de um modo determinante para a formação de uma consciência de deveres inerente à formação de direitos, o que faz com que funcione como um elemento de ponderação na educação para a cidadania.

É justamente pela sua especificidade que a Bioética, quando considerada sob o ponto de vista da educação para a deliberação, constitui uma oportunidade excecional para o desenvolvimento de competências reflexivas, críticas, de base plural e democrática. Ao mesmo tempo, permite desenvolver a consciência da responsabilidade e da necessidade da deliberação para a decisão, reconhecendo a posição do outro sem (pré)-conceitos, pressuposto indispensável para um qualquer debate ético.

Ana Sofia Carvalho, "A Bioética e a responsabilidade de deliberar para decidir", Observatório da Cultura, nº 21, in http://www.snpcultura.org/

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Amadeo - desenhar uma personalidade fascinante (V)


Na trama da relação que constituem a história, que o espírito dos seres homologa ou veta mas que jamais se livra em sua solidão sem paz, somos nós que nos buscamos ou é o encontro objectivo que se dá? De que adejar de antenas ou tremor de cílios se faz o fadário de cada um? 
Onde topámos com alguns dos que nos acompanham agora a peregrinação? Onde os reacharemos, quando se afastam cansados da partida? Essas naves sobrecarregadas de destinos diversos, agrupados em contingentes afins, que é no que consistem os bairros de Paris nos princípios do século, ora encalham nos bancos da morte ora zarpam rumo a um futuro de alguma eternidade. 
Poucas vezes se perderá Amadeo pelas conversas de rua. (...) A ganância da fama não lhe anulará a reflexão e, quando profetiza que haverão de disputar-lhe os trabalhos a preço de oiro, não o faz pela cegueira da ambição defraudada. É muito menos um vaticínio que o resultado de uma equação para que já dispunha dos termos necessários e suficientes. Pressente-se-lhe nas cartas um pensamento que preexiste a acção, o que é muito raro nos artistas. Na pintura, também, será a mesma natureza.
Digere quanto vê, rabisca ao canto do calendário ilações e memoranda, predispõe-se à aprendizagem sem mestres ungidos, vertiginosa ginástica de se ser e se perder. Não são assim os inspirados, arrebatados por uma águia que nem os arrasa nem os salva. Assim são, porém, os desbravadores de continentes, alguns atletas sem ideologia política. muitos artesãos que gravaram siglas na cantaria das catedrais. Ele não perpassa, fica. E na determinação de ficar palpita uma preocupação de burguês abastado, que ordena, a cinquenta anos de vista, a plantação de um carvalhal ou a vedação de uma jeira, para quando  for aberta a auto-estrada.

Ainda nisso radicará a monomania da poupança, sintetizada nos pincéis cuidadosamente perfilados em seu canjirão de Bisalhães, na mina de lápis que se aguça nem mais nem menos que o preciso, nos restos virgens de Whatman que para as contas se aproveitam ou para o rascunho de um bilhete.              
        
Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, págs. 48 - 50.
Imagens: Copyright - Biblioteca de arte - Fundação Calouste Gulbenkian



Vinte anos de RBE - as Bibliotecas


(A RBE foi uma iniciativa de grande relevo para o papel das Bibliotecas nas escolas, para uma redefinição das estratégias colaborativas à volta do livro, das literacias e das aprendizagens. Quem conheceu as Bibliotecas antes dos anos noventa sabe como eram muitas vezes espaços desqualificados e sem capacidade para uma função integradora na escola.
Com a RBE nasceu uma ideia de partilha de competências e abordagens em rede e desenvolveu-se um conceito de Biblioteca como um espaço de afectos, onde todos cabem e onde os recursos permitem alimentar formas múltiplas de imaginação. Por esta ideia de Biblioteca criada pela RBE e alimentada por tantos, passa essa formulação essencial de com a Escola formar pessoas mais informadas, o que significa pessoas mais livres. Deixamos em baixo a mensagem da actual coordenadora nacional da Rede de Bibliotecas Escolares, Manuela Pargana Silva).

Em 1996 foi lançada a Rede de Bibliotecas Escolares (RBE). Vinte anos depois, 2016 é o ano que dedicamos a celebrar o percurso feito, mas também, e sobretudo, a reflectir, a pensar em como podemos responder às exigências dos tempos que vivemos.  Tempos de grande aceleração, de crise de valores, de alterações profundas nos modos de perceber e de pensar. Como garantir que seremos abertos, flexíveis, adaptáveis e exigentes para garantir ao nosso público uma formação que lhes permita viver num mundo que ainda não sabemos como será?

Tudo vai depender de como formos capazes de perspectivar o futuro.
Com o trabalho, o esforço e a inteligência de todos - professores bibliotecários, coordenadores inter-concelhios, colaboradores do Gabinete RBE - chegámos até aqui com resultados de que nos podemos orgulhar.
Ao nosso lado temos parceiros próximos e valiosos que enriquecem o nosso programa, ao mesmo tempo que usufruem desta rede com créditos firmados.

Trabalhamos com professores, auxiliares, técnicos, mediadores de leitura, escritores e ilustradores, sempre concentrados no nosso público preferencial, os alunos, com quem também tanto temos aprendido.
A nossa forma de estar e de trabalhar é juntos e em rede e é assim que garantiremos que o que construímos nestes vinte anos não se torne passado ou ultrapassado. Conto com a energia de todos para concretizar o lema desta celebração: 20 anos RBE - uma história com futuro.


quinta-feira, 19 de maio de 2016

Amadeo de Souza-Cardoso (IV)


Ontem falei no espelho, o que me sugere
hoje a ideia de falar na imagem.
Mas não é a imagem reflectida que
eu quero acentuar, é a imagem
irradiante, aquela que poderei
comparar ao disco do sol que ilumina e aquece.
A imagem do espelho
é aparente, exterior nunca
por ela pode decifrar um
só traço daquilo
a que eu chamo a minha
alma oculta.
Ao passo que a imagem
irradiante é a que como
o sol se infunde
para nos iluminar a tal
alma oculta.

Amadeo de Souza-Cardoso (2008). Catálogo Raisonné. Lisboa: Assírio& Alvim, p. 37


Amadeo de Souza-Cardoso (III)

Amadeo nasceu em Manhufe, no concelho de Amarante, a 14 de novembro de 1887. Cresceu no seio de uma família rica de proprietários rurais. Passou a sua infância entre a casa de Manhufe e a cidade de Espinho. Aí conheceu Manuel Laranjeira, cuja amizade foi determinante para incentivar a prática do desenho. Amadeo desenvolveu essa prática em Lisboa, no âmbito dos estudos realizados na Academia de Belas-Artes de Lisboa, nos anos de 1094 e 1905. Em 1906, parte para Paris, na companhia de Francisco Smith. Partiu sem saber quando voltaria. Instalou-se no Boulevard Montparnasse e preparou a sua entrada por concurso na École des Beaux Arts. Paris com seu o ambiente fervilhante de ideias e figuras, fascinou-o. 

Influenciado de modo particular pela ilustração que circulava na imprensa francesa, Amadeo dedica-se ao desenho e à pintura. Nos primeiros anos, convive em Paris com outros portugueses, com destaque para Manuel Bentes, Eduardo Viana  ou Domingos Rebelo Smith. Com eles vive um espaço de boémia e tertúlias no seu estúdio, nº 14, da Cité Falguière. Este convívio foi de curta duração. Em 1908, conhece Lucia Pecetto, com quem casará em 1914, e começa a frequentar as classes da Academia Viti, do pintor espanhol Anglada-Camarasa. Muda o seu ateliê para a rue de Fleurus, num espaço próximo do apartamento de Gertrude Stein. O afastamento do círculo português é uma opção para mudar o seu sentido plástico. Amadeo trabalha a um ritmo de grande exigência e de compromisso com as ideias que vai absorvendo. Pesquisa as ideias do modernismo em desenvolvimento em Paris. 

É esse contexto de investigação das ideias do Modernismo que, em 1910, o leva a entusiasmar-se pela pintura flamenga, numa visita que faz a Bruxelas. É, ainda, neste período, que aprofunda a amizade com Amedeo Modigliani. Em 1911, muda de estúdio e instala-se próximo do Quai d’Orsay, na rue du Colonel Combes. A sua primeira exposição, em 1911, apresenta um conjunto de seis pinturas, no Salon des Indépendants. Ainda em 1911, no estúdio da rue du Colonel Combes, realiza uma exposição conjunta com Modigliani. Entre 1912 e 1914, mostra o seu trabalho no Salon d’Automne

Por esta altura, Amadeo aumenta o seu círculo de amizades e de conhecimentos. Conhece Umberto Boccioni, Gino Severini, e Walter Pach. Será este último a convidá-lo a participar no Armory Show. Conhece e contacta com outros nomes importantes da arte como Juan Gris, Max Jacob, Sonia e Robert Delaunay, Brancusi, Archipenko, Umberto Brunelleschi e Diego Rivera, entre outros. 
Amadeo cimenta o seu interesse pelo desenho e entusiasma-se na preparação do manuscrito ilustrado da Légende de Saint Julien l’Hospitalier de Flaubert e pela publicação do álbum XX Dessins, com prefácio de Jérôme Doucet. O álbum é reconhecido como de grande valor pelo  célebre crítico Louis Vauxcelles. 


Amadeo procura alargar o seu círculo de contactos e expandir-se para fora de Paris. Para tal, consegue participar  numa série de importantes exposições, entre as quais a célebre Exposição Internacional de Arte Moderna de 1913, também conhecida como Armory Show, que mostraria pela primeira vez a moderna arte europeia nos EUA (Nova Iorque, Chicago e Boston). Amadeo apresenta oito obras, ao lado de Braque, Matisse, Duchamp, Gleizes, Herbin e Segonzac. Nesta mostra consegue vender três telas a um colecionador de arte americano, Arthur J. Eddy. Este colecionador de Cubist and Post-Impressionism (1914), cita e reproduz algumas das obras do pintor português. Em setembro de 1913, muda-se para outro estúdio, na rue Ernest Cresson e, meses depois, a sua obra é apresentada no I Herbstsalon de Berlim, organizado pela Galeria Der Sturm. 

Em abril de 1914, enviou três trabalhos para a Royal Academy de Londres, que nunca foram expostos devido ao início da 1ª grande Guerra. Ainda nesse ano, muda de ateliê e instala-se no nº 38 da rue Boulard, na Vila Louvat, que nunca chegará a utilizar. Nesse mesmo ano, depois de uma passagem por Barcelona onde conhece Gaudi, regressa à aldeia de Manhufe. A Guerra impede-o de regressar a Paris.  Em Portugal, continuará a sua obra, explorará a abordagem que fazia em Paris nos domínios da abstração e do expressionismo e abre um novo compromisso estético com formas de trabalho no domínio da colagem. Em 1915, com a visita de Sonia e Robert Delaunay, que passam por Vila do Conde, recupera os contactos com o grupo português, com destaque para Eduardo Viana, e conhece Almada Negreiros. Será através deste que conhece o grupo dos “Futuristas” em Lisboa, reunidos, no início, à volta da revista Orpheu.

Amadeo acabou por ter uma influência significativa no panorama da Arte em Portugal do seu tempo, ao ligar-se à postura modernista que Pessoa, Almada ou Sá-Carneiro difundiam. Essa forma de abordagem ao mundo foi reconhecida por Amadeo como importante para fazer a ruptura com as estruturas tradicionais dominantes. As mesmas estruturas que não o compreenderam, aquando das duas exposições feitas em Portugal. Essa mostras ocorreram no Porto e em Lisboa, em 1916, e tinham por Abstracionismo. A estética nacional dominante não o compreendeu, não aceitou as suas linhas pictóricas, num ambiente de quase escândalo. Almada Negreiros e Fernando Pessoa compreenderam-no e tentaram defendê-lo, reconhecendo-o como o pintor mais importante do seu tempo. Foram, contudo, manifestações de apoio isoladas. Amadeo morre em Espinho, em outubro de 1918, com trinta anos, vítima da epidemia de pneumónica que deflagrou nesse ano.  (parte dos materiais a incluir num dos Boletins Bibliográficos)

terça-feira, 17 de maio de 2016

Amadeo - Manifesto da exposição na Liga Naval - 1916


Em Portugal existe uma única opinião sobre Arte e abrange uma tão colossal maioria que receio que ella impere por esmagamento. Essa opinião é a do Exmo. sr. dr. José de Figueiredo (gago do governo).
Não é porque este sr. Tenha opinião nem que este sr. seja da igualdade do resto de Portugal mas o resto de Portugal e este senhor em matéria de opinião são da mesma igualha. Um dia um senhor grisalho disse-me em meia-hora os seus conhecimentos sobre Arte.

Quando acabou a meia-hora descobri que os conhecimentos do senhor grisalho sobre Arte eram os mesmos que o Exmo .. senhor Dr. José de Figueiredo usava para me pedir um tostão (1): Pensa o leitor que faço a anedota? Antes fôsse: Mas a verdade é que estou muito triste com esta fúria de incompetência com que Portugal participa na Guerra Europeia. E que horrôr, caros compatriotas, deduzir experimentalmente que de todas as nossas Conquistas e Descobertas apenas tenha sobrevivido a Imbecilidade. E daqui a indiferença espartilhada da família portugueza a convalescer à beira-mar.
Algumas das raras energias mal comportadas que ainda assômam à tôna d'água pertencem alucinadamente a séculos que já não existem e quando Um Portuguez. genialmente do século XX, desce da Europa, condoído da pátria entrévada, para lhe dar o Parto da sua Inteligência, a indiferença espartilhada da família portugueza ainda não deslaça as mãos de cima da barriga. Pois, senhores, a Exposição de Amadeo de Souza Cardozo na Liga Naval de Lisboa é o documento conciso da Raça Portugueza no século XX.

A Raça Portugueza não precisa de rehabilitar-se, como pretendem pensar os tradicionalistas desprevenidos; precisa é de nascer pró século em que vive a Terra. A Descoberta do Caminho Marítimo prá Índia já não nos pertence porque não participamos d'este feito fisicamente e mais do que a Portugal este feito pertence ao século XV.
Nós, os futurístas, não sabemos História só conhecemos da Vida que passa por Nós. EIles teem a Cultura. Nós temos a Experiência e não trocámos!
Mais do que isto ainda Amadeo de Souza-Cardozo pertence à Guarda Avançada nA MAIOR DAS LUCTAS que é o Pensamento Universal.

Amadeo de Souza Cardozo é a primeira Descoberta de Portugal na Europa no século XX. O limite da descoberta é infinito porque o sentido da Descoberta muda de substância e cresce em interesse por isso que a Descoberta do Caminho Marítimo prá Índia é menos importante que a Exposição de Amadeo de Souza Cardozo na Liga Naval de Lisboa.
Felizmente pra ti, leitor, que eu não sou crítico, razão porque te não chateio com elucidaçães da Arte de que estás tão longinquamente desprevenido; mas amanhã, quando souberes que o valor de Amadeo de Souza-Cardozo é o que eu te digo aqui, terás remorsos de o não têres sabido hontem. Portanto, começa já hoje, vae à Exposição na Liga Naval de Lisboa, tápa os ouvidos, deixa correr os olhos e diz lá que a Vida não é assim?

Não esperes porém que os quadros venham ter comtigo, não! EIles teem um prégo atraz a prendê-los. Tu é que irás ter com Elles. Isto leva 30 dias, 2 mezes, 1 anno, mas, se tem prazo, vale a pena sêres persistente porque depois saberás também onde está a Felicidade.
JOSÉ DE ALMADA-NEGREIROS
Poeta Futurista
Lisboa, 12 de Dez, de 1916.

(1) Rectifico: O Exmo. Sr. Dr. José de Figueiredo veio substituir no original um Exmo. Sr. que tem por hábito pedir-lhe tostões.


segunda-feira, 16 de maio de 2016

Amadeo - desenhar uma personalidade fascinante (I)


Aprendia a ser-se. De um toque de dedos derrubava o chapéu para a nuca, quedava-se inclinado sobre um quadril, ou então descia solidamente a escadaria de granito, estacava de pernas afastadas, farejando afrontas e risos, pronto a replicar. Deste modo se estabelecia numa certeza conjectural, se reunia forças para se ter íntegro e violento em seu inexaurível desejo de vida.

E a paz vinha de se acreditar, num cenário que era ainda indecisa a autenticidade dos trabalhos inventados. A poeirada dessa quinta recôndita enchia-lhe por vezes os olhos, os arvoredos esbatiam-se num verde grosseiro e afogado. Mas não desertava do posto, timoneiro de si próprio como se confessava amiúde, acreditando nas mãos enfiadas até às profundas das algibeiras, guardião de confidências, abridor de sortes.

Os rafeiros vinham devagar até ele, rondar-lhe a figura, deitavam-se-lhe aos pés. Um carro de bois insistia ronceiro em sua marcha, arrastando a paciência na estrada por detrás da casa.

Um dos tios de Amadeo iniciou a escrita de uma obra que seria a biografia de uma vida, justamente a de Amadeo de Souza-Cardoso. Mário Cláudio com conhecimentos na região pela sua própria origem nas terras entre Douro e Minho veio a ter acesso a esse texto inicial. A partir dele escreveu um texto belo e substantivo, narrativo e poético que tenta chegar a esse ponto inicial do homem antes do artista. Que tenta chegar ao desenho de uma vida. É um texto que nos confirma ou inicia a quem não conhece as formas desse brilho humano chamado Amadeo de Souza-Cardoso.

Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, página 26, 27
Imagem: Copyright - Biblioteca de Arte - Fundação Calouste Gulbenkian

Descobrir Amadeo de Souza-Cardoso (II) - Os livros


 
"Eu trago sempre comigo ilusões, uma juventude forte e inquieta [...] A vida deu-me um destino a cumprir."

Se a sua obra se tornou fascinante de cor e vida, redescoberta tardiamente no País, mas conhecida no seu tempo sobretudo em Paris, a sua personalidade e o seu percurso de vida são igualmente uma descoberta que nos pode encantar. Os seus momentos de angústia e ansiedade nessa luta entre o que não era capaz de atingir e os momentos grandiosos que revestiam pensamentos novos a sentimentos velhos, como ele dizia é uma eloquência da sua genialidade.

Palavra muito gasta e que Amadeo revestiu de um cariz novo pelo empenho em encontrar uma linha para revelar essa energia vital que o conduzia pelas formas e pelas cores. Diálogo de Vanguardas permite conhecer o que foi a exposição na Fundação Calouste Gulbekian em 2006 e compreender a relação de Amadeo nas vanguardas do Modernismo europeu no início do século XX. Catálogo que nos explica a relação da pintura de Amadeo com Duchamp, Modigliani, Picasso, ou Sonia e Robert Delaunay.

Fotobiografia de Amadeo de Souza-Cardoso é um livro rico de informações sobre a vida de Amadeo revelando a correpondência com a família, diversos materiais e essencial para conhecer esse cometa que foi Amadeo, rápido e brilhante. Um livro para conhecer o percurso de uma das figuras essenciais do 1º Modernismo em Portugal.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Título: Flores 
Autor: Afonso Cruz 
Edição: 1ª 
Páginas:275
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-989-8775-73-3
CDU: 821.134.3-31"20"
Sinopse: Sou uma flor, daquelas que nascem nos cemitérios. Há uma veia que atravessa os séculos e que nos transforma em mitos. Guardo essa espécie de doença como uma gravidez, a esperança de que o amor me desenterre, me salve da morte, que abra a terra e do seu ventre tire uma nova vida, plena. Talvez ninguém se lembre de que somos todos mais antigos do que achamos. A nossa vida não começa no hospital ou nas mãos de uma parteira, mas sim na História, nos outros, nas vidas que nos precederam. Nascemos no mesmo dia em que o Universo nasceu, na mesma explosão. Eu, evidentemente, não sou excepção.O meu cartão de cidadão não tem o nome Inês de Castro, mas eu sou a Inês de Castro. Serei levantada do chão, porão uma coroa na minha cabeça. A vida eterna depende do amor dos outros, são eles que escavam a terra com as suas unhas e nos salvam do lugar frio e amorfo a que todos fomos condenados. Os nossos acidentes são diferentes, mas a essência, o osso do que somos é o mesmo. O tempo não nos separa, somos no presente uma face do passado, um novo ângulo do que já aconteceu.
(...)

quarta-feira, 4 de maio de 2016

O primeiro modernismo - As vanguardas


Eu trago sempre comigo ilusões, uma juventude forte e inquieta [...] A vida deu-me um destino a cumprir.

A Biblioteca irá promover uma exposição e um conjunto de atividades que vão procurar relacionar Fernando Pessoa e a arte o seu tempo, justamente as Vanguardas. Falaremos do Orpheu, do modernismo como movimento cultural e estético, de Pessoa e da sua poesia, de Almada Negreiros e daremos um destaque significativo a Amadeo da Souza Cardoso. Ele será com Pessoa o centro dessa produção de materiais e de divulgação poética e artística.

Amadeo de Souza-Cardoso foi uma das figuras mais importantes da pintura portuguesa do século XX e deixou um marco expressivo na cultura portuguesa, pelas possibilidades que criou na formulação das ideias e de como estas poderiam recriar horizontes novos. Sentimos nele o valor do movimento modernista, que conhecemos com a revista Orpheu e com Pessoa, mas chegamos a fronteiras diversas, a que levaria ao expressionismo e ao cubismo. Na verdade, Amadeo inspirou-se no seu meio geográfico, de onde colheu formas e cores a que daria plasticidade com o que encontrou em Paris, para onde partiu, em 1906. 
Manuel Laranjeira, definiu-o como “um artista no significado absoluto do termo" e vemos nele uma força criadora de grande significado, uma preocupação com o trabalho produzido, a superação dos valores burgueses que ele conhecia, a dimensão artística da arte, como forma de transformar o mundo e a vida. 
Amadeo nasceu em Amarante, a 14 de Novembro de 1887, pertencendo a uma numerosa família, com bons recursos económicos. A sua passagem por Espinho permitiu-lhe conhecer Manuel Laranjeira que o incentivou na prática do desenho, que ele explorou, quando entrou em Belas Artes, em Lisboa, em 1905. Em 1906 parte para Paris, onde irá dar continuidade aos seus estudos. A ilustração que se praticava em Paris, fê-lo abandonar a arquitectura, tendo-se dedicado ao desenho de forma plena.
Esta frequência do espaço parisiense deu-lhe a conhecer figuras que o ajudarão a definir-se, como Eduardo Viana, Anglada-Camarasa, ou ainda Gertrude Stein. Em Paris, Amadeo conhece de perto o movimento modernista, aproximando-se de figuras que em diferentes geografias da cor, lhe vão permitir tornar-se o grande pintor que foi. Internacionaliza-se, realiza mostras da sua arte. Primeiro, em 1912, no Salon des Indépendents, e em 1914 no Salon d’Automne.  
Os seus contatos permitem-lhe integrar exposições, fora do circuito de Paris. Participa no Armory ShowExposição Internacional de Arte Moderna, que se realiza em Nova Iorque, Chicago e Boston. Integra o catálogo de Arthur J. EddyCubist and Post-Impressionism, onde se realça a sua plasticidade e cor. Também na Alemanha participou no  I Herbstsalon de Berlim. Passará também por Portugal, com duas exposições, onde vinha na época de verão.

Amadeo procurou agitar o meio artístico português, com as ideias do manifesto do Futurismo, de modo a romper velhas estruturas, mas o seu sucesso foi limitado. O campo estético não lhe foi favorável e apenas contou com os apoios públicos de Pessoa e Almada, aquando de uma das suas exposições. Morreu em Espinho, em Outubro de 1918. É uma das grandes figuras da História Contemporânea, mas à semelhança dos seus amigos do Orpheu, as suas ideias não foram integradas num país ausente da si próprio. E essa é uma das chaves da permanência do País, pelo esquecimento e pela sua marginal participação numa civilização de desenvolvimento humano. 

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Amadeo de Souza-Cardoso - A criação do artista


Um pequeno filme sobre o percurso curto de vida e a genialidade de uma obra que se integra nas vanguardas que no início do século XX marcariam a cultura e a ruptura de valores na sociedade. Amadeo de Souza-Cardoso é um dos pontos mais altos da arte do século XX. Aqui o evocaremos em diferentes materiais que conduzirão uma exposição e a organização de atividades sobre o 1º Modernismo. Temática que tentará relacionar nesse período outros dois nomes essenciais Almada Negreiros e Fernando Pessoa.