segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A palavra e o mundo - John Steinbeck

Tenha-se medo da hora em que o homem não mais queira sofrer e morrer por um ideal, pois que esta é a qualidade básica da humanidade, é a que a distingue entre tudo no universo.” (De As vinhas da Ira)

Reconhecer o mundo é uma forma de entender a diversidade da sua composição, um modo de construir uma integração, de o ver como uma aprendizagem. Reconhecer o mundo é assumir a diferença de um todo que se exprime em modos diversos. Reconhecer o mundo, os diversos modos de entender a vida, a cultura expressa e a sociedade em que se vive.

Sobre ele existem dezenas de biografias. O mais importante dirão alguns foi o seu destaque na Literatura americana e universal pelos Prémios Pulitzer e Nobel que recebeu, pela adaptação de textos seus ao cinema, essa forma de perenidade que as imagens constroem e que a música formaliza de um modo mais visível. As Vinhas da Ira de John Ford ou a música de Bruce Springsteen, no seu álbum The Ghost of Tom Joadexpressam esse reconhecimento do mundo pela arte da imagem e do som. 

Podem as obras de arte contribuir para este reconhecimento do mundo e para nos reconhecermos no mundo? Existe na criação estética a formulação de um movimento da sociedade? Entre o que existe e o movimento contínuo encontra-se uma forma de desconstrução que se inclina para a construção de algo, do mutável e dos elementos que ainda permanecem. A Arte como criação conduz esse processo de identificação social e cultural. 

A Literatura é uma das formas de expressão que permite o reconhecimento do mundo formalizando formas de vida e apreensões do real que superam o registo histórico. Há nela uma superação pelo vivido, pelas realidades e momentos que se cruzam com o quotidiano. Registo do que é uma vivência local, em alguns casos pela compreensão do que em si há de referente à humanidade pode tornar-se universal. É o caso da obra de John Steinbeck.

Talvez só com Mark Twain é que podemos voltar a encontrar essa ligação entre um escritor e a América, a sua cultura, as suas formas de vida e a descoberta de um universo onde estão valores universais. A América de Steinbeck é muito preenchida pelas condições sociais, pela economia humana dos trabalhadores rurais, pelas migrações num território que ´um país e um continente. Steinbeck tentou compreender a grandeza da América, o que a fazia diferente, mas também as suas misérias humanas. É impossível conhecê-la sem a viagem que os seus livros permitem fazer.

Homens e RatosAs Vinhas da IraA leste do paraíso são obras essenciais para esse reconhecimento do mundo, a América dos grandes espaços, as opções de vida entre grandes metrópoles e o campo. Obras sobre a condição humana, sobre o sonho como forma de ideal para combater a injustiça, a pobreza, as condições degradantes da existência. 

(stand by)

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A palavra e o mundo - A Pérola (II)

"E a beleza da pérola, que brilhava e cintilava à luz da pequena vela, perturbou o seu cérebro. Era tão bela, tão macia, desprendia-se dela uma música própria - a sua música de promessas e delícias, a sua garantia de futuro, de conforto, de segurança. O seu brilho quente prometia um remédio contra a doença e uma muralha contra os insultos. Fechava a porta à fome. Ao olhar para ela, os olhos de Kino adoçaram-se e o seu rosto descontraiu-se. Viu a pequena imagem da vela consagrada reflectida na superfície lisa da pérola e voltou a escutar a música maravilhosa do mar, o tom da luz verde, difusa, do fundo do mar. Juana, espreitando o seu rosto, viu-o sorrir. E porque, de certa forma, eles eram um só com uma só vontade, sorriu ele.
E principiaram aquele dia com esperança."

A Pérola é um clássico da literatura. A reedição dos livros lidos dá-nos a possibilidade de voltar a ler o que já lemos e construir uma nova leitura. Nesta leitura a dimensão de parábola devolve-nos pormenores já esquecidos ou recortes de um drama humano que já tínhamos esquecido. A Pérola é uma pequena narrativa de um sonho, a luta persistente para mudar as linhas escritas da pobreza. 

Nela vemos a luta antiga por esse ideal que sonha em ultrapassar a fome e a doença e dar a cada homem a possibilidade de construir o seu mundo, ainda que seja só um plano, um esboço de felicidade. O canto da terra, a natureza com as suas formas e cores, os seus silêncios e rumores e a linguagem do canto interior às coisas. A linguagem que pressente o bem e o mal, a esperança, a raiva e a ambição fazem parte desta adaptação de um conto popular mexicano, uma obra de grande significado.

A Pérola é quase uma parábola sobre a vida. Condensa o bem e o mal com que os humanos habitam a vida, entre a maior nobreza e a cobiça mais feroz. História de uma solidariedade, de uma família e desse canto mais íntimo ligado à terra e ao que ele transporta. Um exemplo de uma escrita em que Steinbeck alia a descrição rápida com o sentimento das personagens fazendo correr a narrativa com um brilho que nos faz ler com grande prazer. O escritor de Salinas é um dos grandes escritores do século XX pela capacidade de construir personagens que são memória e fruto desse património, a ruralidade, aqui num espaço localizado, numa cultura de pescadores.

A Pérola acaba por ser uma visão do que pode ser a vida, entre a maior rudeza, as necessidades mais essenciais e a conquista pelo privilégio do dinheiro e do poder pelos que já o têm. O fim do livro é uma pequena vitória para Kino e Juana, mas há nessa restituição ao mar algo de protecção à cobiça dos mais ricos, dos instalados no poder. E, no fim o valor da Natureza como consagração da essência que o homem tenta destruir. Fim que não deixa de ser desolador por um sonho que morre perante os contrafortes da ignorância, alimentada em universos dominados pela corrupção e pela insensibilidade.

A Pérola é assim um livro eterno de um escritor essencial, narrador da América, das condições de trabalho das pessoas, mas também um escritor do mundo, pela sua consciência universal. Uma escrita a envolver-nos com essa grandeza, que aqui Kino dá conta, "tinha perdido o seu mundo anterior e agora tinha de se agarrar a um mundo novo. Porque o seu sonho de futuro era real e não podia ser destruído" (p. 498). A grandeza de pensar um mundo e torná-lo real faz de A Pérola um livro notável e de Kino uma das grandes personagens da Literatura.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Dia Internacional das Bibliotecas Escolares


A biblioteca terá que ser o centro da sociedade. O homem é um animal leitor, leitor do mundo. Procuramos a constelação das narrações: quem são os outros e onde estamos. Desenvolvemos o poder da imaginação. Somos capazes de criar o mundo antes mesmo da criação do mundo.Temos que aprender a conduzir-nos no mundo e a contar histórias. Criamos bibliotecas porque precisamos de saber quem somos, de onde vimos e para onde vamos. As bibliotecas são a memória pública e a memória privada.

A biblioteca é a autobiografia de cada um. É o rosto de cada um de nós. As bibliotecas são também a biografia da sociedade, a sua identidade. As bibliotecas públicas são o rosto da comunidade. Nós somos o que a biblioteca nos recorda o que somos. Um livro conta a experiência de cada um, onde estão as paixões mais secretas e os desejos mais íntimos. “Clínica da alma” é a melhor definição de biblioteca. A centralidade da atividade intelectual está na clínica da alma!

Alexandre Magno viajava sempre com o livro A Ilíada. O livro fazia-o aprender que as vítimas são tão importantes como os triunfadores. Um rei da Pérsia levava sempre os livros da sua biblioteca quando viajava - 117 mil livros - por ordem alfabética. No séc. XV, o conquistador Pedro de Mendoza levou 7 livros para fundar a cidade de Buenos Aires, autores como Petrarca, Virgílio, etc. Um conquistador leva a história de um outro povo para fundar outro povo, para que a biblioteca seja universal.

Duas figuras simbólicas: o Papa Gregório I (séc. VII) decidiu que a Biblioteca Palatina não devia ter autores pagãos e decide queimá-la, elegendo só alguns autores para lá permanecerem; S. Isidoro de Sevilha que afixa à porta da biblioteca “Aqui há obras cristãs e não cristãs”. Temos que deixar S. Isidoro acompanhar-nos nas bibliotecas, na procura da universalidade.

Falar da universalidade para a biblioteca virtual é uma ambição: ter todos os livros do mundo e continuar a ter os mesmos problemas da biblioteca de Alexandria. Os bibliotecários de Alexandria para resolver o problema da pesquisa de um documento precisavam de um motor de busca para encontrar o livro. Temos que estabelecer uma forma de pesquisa na biblioteca universal, o motor de busca perfeito. A biblioteca virtual não pode bastar-se a si mesmo.

Vivemos num mundo incoerente, absurdo, as bibliotecas dão uma certa coerência ao mundo. Não podemos esquecer-nos. À porta da biblioteca eu colocava “Clínica da alma- aqui se encontram livros de todo o género”, e colocava também uma pergunta “para quem são estes livros, para quem é esta biblioteca? Para quem é a tecnologia? Isto dá responsabilidade à biblioteca!

Alberto Manguel. “Reading and libraries”. (resumo aproximado). 02.2012.


A palavra e o mundo - A Pérola (I)

Estava prestes a amanhecer quando Kino acordou. As estrelas ainda brilhavam e o dia espalhava apenas uma desbotada claridade no horizonte. (...) Kino ouviu o rebentar das ondas matinais na praia. Gostava de o ouvir - Kino fechou os olhos de novo para escutar a sua música. Talvez mais ninguém o fizesse ou talvez toda a sua gente tivesse feito o mesmo. O seu povo tinha sido outrora grande cultor de canções, de tal modo que tudo o que via ou pensava, ou fazia e ouvia, se transformava numa canção. Mas isso já tinha sucedido havia muito tempo. No entanto, as canções tinham permanecido. (...)

O povo de Kino tinha cantado tudo o que acontecia ou existia. Tinham feito canções aos peixes, ao mar enfurecido e ao mar em calmaria, à luz das trevas e ao Sol e à Lua, e essas canções estavam todas em Kino e na sua gente - todas as canções que tinham sido feitas, até mesmo as que estavam esquecidas. E, enquanto enchia o seu cesto, a canção soava dentro de Kino e o ritmo da canção era o bater do seu coração, a queimar o oxigénio do fôlego retido, e a melodia da canção era a água verde-acizentada e os pequenos animais que fugiam precipitadamente e as nuvens de peixes que adejavam junto dele e desapareciam. Mas, dentro da canção havia um pequeno canto interior e secreto, quase imperceptível, mas sempre presente, doce, secreto, fiel, quase escondido na contra-melodia, que era o Canto da Pérola Ambicionada, porque cada concha atirada  para o cesto podia conter uma pérola.

(...)
Olhou por momentos para o cesto. Talvez fosse melhor deixar a ostra para o final. Tirou do cesto uma ostra pequena, cortou-lhe o manto, pesquisou entre as dobras de carne e atirou-a para a água. Então pareceu ver a grande ostra pela primeira vez. Acocorou-se no fundo da canoa, pegou na ostra e observou-a. As estrias brilhavam em tons de preto e castanho e tinha poucas cracas agarradas à casca. Kino hesitou em abri-la. Sabia que o que vira podia ter sido um reflexo, um pedaço de concha arrastado por acaso ou pura e simplesmente uma ilusão. Naquele golfo de luz incerta havia mais ilusões do que realidades.
Mas os olhos de Juana estavam cravados nele e ela não conseguia esperar mais. Pousou a mão sobre a cabeça tapada de Coyotito. - Abre-a - disse suavemente. Kino introduziu habilmente a faca entre as valvas da concha. Sentia a resistência do manto contra a faca. Usou a lâmina como uma alavanca e o músculo cedeu e a concha abriu-se. A carne semelhante a um lábio contorceu-se e depois descaiu. Kino ergueu a carne e lá estava ela, a grande pérola, perfeita como a Lua. Captou a luz, sublimou-a e reflectiu-a em incandescências prateadas. Era tão grande como um ovo de gaivota. Era a maior pérola do mundo.


John Steibeck. (2015). A Pérola. Porto: Livros do Brasil, páginas. 7, 20, 21 e 22

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

"Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço." 
Fernando Pessoa. (19712). Mensagem. Lisboa: Ática

Fernão de Magalhães é uma das figuras maiores da História, no sentido em que se propôs realizar a primeira viagem de circum-navegação ao mundo. Nele combinam-se a irreverência, a aventura, a tenacidade dos gestos, o apelo à descoberta e também o valor comercial que a viagem poderia-lhe dar e ao seu patrocinador. É muito difícil definir a figura humana de Magalhães naquilo que ele era interiormente. Sabemos os factos, as decisões que tomou e é por elas que podemos desenhar um pouco do que foi Magalhães.


O que construiu é de uma dimensão excepcional. Da História Universal e dos homens chamados navegadores, ele é um dos três maiores e dentro da nacionalidade portuguesa nenhum se lhe compara. O seu nome está associada com descobertas de diferentes tempos. A sonda da Nasa enviada a Vénus em 1989 chamava-se justamente Magellan.
Duas galáxias que atravessam a noite no Hemisfério Sul e que se podem ver a olho nu chamam-se Nuvens de Magalhães. 
O seu nome está ligado aos mares do fim do mundo quando o continente americano se dissolve entre dois oceanos. O nome da Patagónia por ele atribuído em função do tipo de pessoas que habitavam a América do Sul deve-se também a ele. A cidade de Montevideu é sua filha, pois foi ele que lhe atribui o nome "monte videm". Até o nome científico dos pinguins do Atlântico Sul lhe devem o nome, Spheniscus magellanicus.

Sobre ele próprio e antes de chegar à armada das Molucas foi outras coisas. Esteve como pajem na corte da rainha D. Leonor, foi escudeiro do rei D. Manuel, funcionário da Casa das Índias, integrou o serviço de Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque, quando estes eram vice-reis da Índia. Participou ainda na conquista de Azamor e em expedições em Marrocos.


Magalhães conhece o seu valor, exige-o ao rei D. Manuel. A proposta de atingir as Molucas não lhe é reconhecido pelo rei. Magalhães é humilhado nas suas pretensões. Os reis de Espanha dar-lhe-ão o que ele pede. Atingir as Molucas com uma armada que chegue às especiarias fora do decidido no Tratado de Tordesilhas. A armada partirá de Sanlúcar, no dia 20 de Setembro de 1519. Em Outubro de 1520 atravessam "O cabo das mil viagens", o famoso estreito que ficará com o seu nome e que o conduziria ao oceano Pacífico. Em 1521 morre nas Filipinas num gesto que combinará escolhas que o parecem destinar para um fim escolhido. O que restava da armada chega à Europa a sete de Setembro de 1522.


terça-feira, 18 de outubro de 2016

A palavra e o mundo - Nos passos de Magalhães (I)

Um português ao leme de uma ideia, de uma empresa, de um projecto comum europeu: o do conhecimento da verdadeira dimensão do mundo. A figura de Magalhães, Magellano, Magellan, Magallanes, tão válida para símbolo da União como Leonardo, Guttemberg, Newton, Mozart ou Galileu.

Hoje, é fácil defender esta proposta. mas no regresso da Armada das Molucas, o nome de Magalhães foi ignorado, a sua importância menosprezada. Um final não feliz. A circum-navegação do globo não trouxe quase nenhum valor comercial, a expedição deu um lucro marginal à coroa espanhola, a rota descoberta pelo Pacífico para chegar às Ilhas das Especiarias não era viável, ou pelo menos não podia competir com a rota portuguesa pelo Cabo da Boa Esperança, e as próprias Molucas revelaram-se afinal na parte portuguesa do tratado de Tordesilhas, inutilizando a pretensão espanhola de as explorar. O custo em vidas humanas da expedição foi desmesurado.

O feito marítimo foi recebido nas cortes europeias como uma curiosidade. Só anos mais tarde a primeira circum-navegação do globo ganharia o valor simbólico que tem na história da Humanidade. Com Magalhães, os erros de cálculo da dimensão do mundo, que perduravam há milénios, foram corrigidos e o planeta expandiu-se à sua dimensão máxima possível dentro da realidade, ou seja, expandiu-se na sua dimensão correcta. Um lugar para mais fantasias.
A partir de Magalhães, todas as viagens de exploração limitaram-se apenas a reduzir os limites, a distância e o mistério do mundo, até o tornar na pequena aldeia global em que vivemos hoje. E onde nos é tão fácil viajar.


Gonçalo Cadilhe. (2011). Nos Passos de Magalhães. Alfragide: Leya, págs. 176/177.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

A palavra e o mundo - A volta ao mundo em oitenta dias (II)

“Phileas Fogg ganhara, portanto, a aposta - e efectuara em oitenta dias a viagem à volta do mundo! Utilizara nela todos os meios de transporte, paquetes, comboios, carruagens, iates, navios mercantes, trenós e um elefante. O excêntrico cavalheiro desenvolvera nesta empresa os seus maravilhosos dotes de sangue-frio e de exactidão. Mas, afinal, o que tinha ganho nesta deslocação? O que alcançara com a viagem?
Nada, hão-de dizer. Nada, na verdade, a não ser uma sedutora mulher, que - por muito inverosímil que isto pareça - o tornou o mais feliz dos homens!
Em rigor, não se faria ainda por menos a volta ao mundo?" (pág. 283)

A Volta ao mundo em oitenta dias é um livro da literatura universal que cumpre um conjunto de objectivos de grande significado. Retrata uma época, introduz-nos na viagem como possibilidade humana e dá-nos o desafio da superação humana, o tempo individual face à geografia. O protagonista da história é um senhor inglês, Phileas Fogg, um cidadão de Londres que vive uma vida solitária e calma feita de rotinas.

É no Reform Clubé, onde passa grande parte do dia, e onde pela leitura dos jornais que toma conhecimento do roubo num banco. Discutindo sobre o paradeiro do ladrão defende a ideia de que poderia estar em qualquer ponto da Terra. Faz assim uma aposta de que em oitenta dias poderia dar a volta ao planeta. Livro de iniciação à viagem é também uma curiosa forma de ler o tempo. Mesmo com os transportes ainda em início de grande transformação, a utilização do vapor dá-lhe esse desafio, ainda que complementado com outras formas de locomoção. Hoje seria muito fácil fazê-lo. Na época de Júlio Verne essa aventura é o que lhe dá o sentido de um clássico. O sentido do desafio.

Assim o cavalheiro inglês acompanhado do seu criado, o francês Jean Passepartout atravessa oceanos em navios a vapor, utiliza estradas usando a carruagem, o comboio e até o meio pedestre ou o transporte por animais. É uma viagem cronométrica feita em oitenta dias, com partida e chegada a Londres. Na viagem depara-se com obstáculos e figuras tradicionais do romance como a jovem em apuros que é salva pelo nosso viajante.


A volta ao mundo em oitenta dias é assim um clássico pela integração de um conjunto de situações. Embora o livro tenha momentos e situações de romantismo foi escrito numa atmosfera de ficção e é como tal que o devemos ler, mesmo quando a sorte ou o dinheiro são a forma de ultrapassar dificuldades. A viagem é ela própria uma forma de superação, mas também de reencontro com ele próprio, com o encontro com o amor. A volta ao mundo em oitenta dias é um produto de imaginação e uma narrativa fascinante de um autor marcante do século XIX.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

A palavra e o mundo - A volta ao mundo em oitenta dias (I)

"Phileas Fogg, deixando Londres, nem fazia idéia, sem dúvida, da grande repercussão que sua partida iria provocar. A notícia da aposta espalhou-se a princípio no Reform Club, e produziu uma verdadeira comoção entre os membros do respeitável círculo. Depois, do club, esta comoção passou para os jornais, por intermédio dos reporters, e dos jornais ao público de Londres e de todo o Reino Unido. 

A “questão da volta ao mundo” foi comentada, discutida, dissecada, com tanta paixão e ardor como se se tratasse de uma nova questão do Alabama. Uns tomaram o partido de Phileas Fogg, outros — e formaram logo uma maioria considerável — pronunciaram-se contra ele. Esta volta ao mundo a ser realizada, não em teoria e sobre o papel, neste mínimo de tempo, com os meios de comunicação atualmente em uso, não era apenas impossível, era insensato! 

O Times, o Standard, o Evening Star, o Morning Chronicle, e vinte outros jornais de grande circulação, declararam-se contra Mr. Fogg. Só, o Daily Telegraph o apoiou em certa medida. Phileas Fogg foi geralmente tratado como maníaco, louco, e seus colegas do Reform-Club censurados por terem aceito esta aposta, que denunciava um enfraquecimento nas faculdades mentais de seu autor." 

Algumas das capas de um livro que faz parte da cultura universal. Livro marcante de Júlio Verne, na edição de 1872 aqui com as ilustrações de Alphonse de Neuville e Lén Benett. A consultar. Aqui.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A palavra e o mundo - Viagens com Charley (II)

As cidades americanas são como buracos de texugo, rodeadas, todas elas, de rebotalho, cercadas por pilhas de automóveis destruídos e a enferrujar, e quase asfixiadas em refugo. Tudo quanto usamos vem em caixas, caixinhas e caixotes, as chamadas embalagens de que tanto gostamos. Os montes de coisas que deitamos fora são muito maiores do que as coisas que usamos.

Nisto, se não for por outro meio, podemos ver a exuberância desenfreada e perdulária da nossa produção, e o desperdício parece ser o seu índice. Seguindo o meu caminho, pensava como em França e na Itália cada uma destas coisas deitadas fora seria guardada e aproveitada para algo. Isto não é dito como crítica de um sistema ou de outro, mas pergunto a mim mesmo se não virá o tempo em que já não possamos permitir-nos o nosso desperdício – desperdícios químicos nos rios, desperdícios de metais por toda a parte, e desperdícios atómicos profundamente sepultados na terra ou afundados no mar. Quando uma aldeia índia ficava demasiado enterrada na sua própria imundície, os habitantes mudavam de lugar. Mas nós não temos lugar para onde mudar. (…)

O meu caminho seguiu para o Norte, pelo Vermont, e depois para o Leste, pelo New Hampshire, pelas montanhas Brancas. Os lugares à beira da estrada estavam cheios de abóboras-morangas douradas, de abóboras castanho-avermelhadas, e de cestos de maças vermelhas tão quebradiças e docas que pareciam explodir em sumo quando as mordia. Comprei maçãs e um garrafão de um galão de sidra recentemente espremida. Creio que toda a gente ao longo das estradas vende mocassins e luvas de camurça.

E também não há quem não venda doces de leite de cabra. Não vira até antão armazéns de venda direta das fábricas em pleno campo, vendendo calçado e roupas. Suponho que as aldeias são as mais bonitas de todo o país, limpas e pintadas de branco, e, não contando com os motéis e acampamentos turísticos, imutáveis há cem anos, exceto quanto ao trânsito e às ruas pavimentadas.

O clima mudou rapidamente para frio e as árvores rebentaram em cor, com vermelhos e amarelos que não podem imaginar-se. Não é apenas cor, mas um brilho, como se as folhas engolissem a luz do Sol de outono e a libertassem depois lentamente. Há uma quantidade de fogos nestas cores. Fui subindo as montanhas, tendo chegado muito acima antes do crepúsculo.

John Steinbeck. (2016). Viagens com o Charley. Lisboa: Livros do Barasil, págs 33 e 34.
Imagem: Vermont, (último estado a nordeste que faz fronteira com o Alasca).

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A palavra e o mundo - Viagens com Charley

"Por outras palavras, não melhoro, ou, indo mais longe, quem foi vadio é sempre vadio. Receio que a doença seja incurável. Menciono este assunto, não para ensinar os outros, mas para me informar a mim mesmo". (pág. 13)

Viagens com o Charley é um livro de John Steinbeck, publicado em 1962, nas vésperas de ele receber o Prémio Nobel da Literatura e que recentemente foi editado pelos livros do Brasil. Trata-se de um livro delicioso, uma daquelas obras raras que consegue ser uma conversação com o leitor. Escrito com grande honestidade, o livro funciona como uma leitura de um País, a
América no início dos anos sessenta e a revelação mais íntima de uma história de vida, de um conjunto de memórias e de um património cultural. Lendo-o, conhece-se melhor John Steinbeck, a sua personalidade, as suas opções de vida e os seus valores humanos.

A América de Steinbeck, aquela que ele nos dá é ainda uma América que não conhece ainda as contradições que o final da década acentuará, mas há já uma visibilidade das transformações de uma sociedade em mudança. O valor do livro passa por essa capacidade de revelação da América, mas também pela percepção da mudança. Com grandes descrições do natural, das paisagens de um conjunto alargado de estados, Viagens com o Charley é um convite para conhecer um escritor que faz da terra, das condições de vida e do património da América a matéria-prima da sua escrita.

Com Steinbeck e Viagens com o Charley compreendemos  como o particular pode ter uma dimensão universal. A escrita do autor nascido em Salinas tem em Viagens com o Charley um momento mais, de grande valor literário e cultural, pela descoberta que ele nos revela de uma América e para a compreensão dos seus valores mais característicos, no início de uma década, que em muitos sentidos mudaria o mundo.


Escrito numa linguagem dominada pelo humor e por algum cepticismo, Viagens com o Charley acaba sendo uma reflexão crítica sobre a América, a sua história, as suas paisagens humanas. Nele vemos já a discussão do que tem feito o mundo caminhar por linhas preocupantes de abandono do seu património natural. Viagens com o Charley em muitos aspectos é um alerta profético, uma campainha a tocar sobre a ideia que a mudança em si nem sempre serve o homem e a sua felicidade.