quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - deambulando pelas ruas de Londres (II)

O século XIX fundou uma cidade nova. O século XX estabeleceu-a como um espaço de viagem, de evasão, a montra de mercadorias, a confluência de pessoas e grupos. Dentro dela nasceu a ideia de uma viagem, o recorte da imaginação para alimentar um sonho, aquilo que o real não pode fornecer. Fernando Pessoa fez infinitos passeios na Baixa Pombalina a alimentar um sonho, a criar mundos não existentes, a tentar ser algo de “substantivamente moderno”, na expressão de Rimbaud.
Se o século XIX enaltecia o campo, o século XX é a confirmação da cidade, os seus espaços a produzir uma viagem que podia ser física ou mental. A viagem física na cidade proporciona a descoberta de espaços, de lugares, de experiências. A cidade vive da mobilidade, mas pode também ser imóvel, parada nos seus artefactos. Nestes, os motivos de descoberta, a procura para registar vidas não narradas é muito evidente. Há na cidade uma deambulação, a que Baudelaire chamou “flânerie”, que permite uma procura, entre o m ais fugaz e alguma perenidade.
A cidade pode tornar-se numa paisagem feita de multidões, de solidão, de sombras e de melancolia, como o sentiu Cesário Verde, em “O sentimento de um ocidental”. Ela, a cidade pode ser também uma geografia de irreal, como o disse T.S. Eliot, “a cidade irreal / sob o nevoeiro castanho de uma madrugada de Inverno”. A cidade emerge assim como uma personagem entre o real e o sonho. Em diferentes latitudes, a cidade surgirá no século XX como uma grande metrópole, onde uma atmosfera definirá grandeza e misérias humanas, ruínas e sonho, imaginário do fantasmagórico.
Virginia Woolf viu na Londres dos anos vinte, do século XX “um poema”, “uma história” que se revelava nos seus passeios pelas suas ruas e espaços. A cidade e Londres em particular foi para a autora de “As Ondas”, uma personagem essencial da narrativa literária. O que “Mrs. Dalloway” nos revela é essa deambulação na cidade, o reconhecimento de ruas, a sua toponímia, a sua atmosfera, onde circulam personagens de diferentes tempos que se inscrevem como uma intimidade. A cidade como elemento formador de uma memória, onde circulam os espaços afectivos de diferentes pessoas, onde cada um se defronta com um mundo interior inacessível e um exterior, capaz de construir uma evasão no tempo. A cidade integra-se num movimento social e cultural e faz das suas ruas, dos seus edifícios um construtor de vivências. Estas manifestam-se entre a multidão que habita um urbanismo explosivo de verticalidade, espaços concentrados de um efémero, por onde a fantasmagoria se insinua de um modo persistente.
A atmosfera de fantasmagoria apreende-se na iluminação pública, ainda a criar atmosferas de imprecisão, de indefinível, ou dessa junção de real e visionário, um esatdo preparatório de um pensamento. A cidade formula uma atmosfera, onde estruturas físicas parecem dotadas para uma certa forma de viagem que se realiza na descoberta de objectos e onde eles próprios são indutores da ideia de evasão. Mas também s´~ao instrumentos de um registo, como o lápis ou os livros de uma livraria antiga. Viagem em si por aquilo que ela desvenda, pela recuperação de um tempo que se perdeu e a sua integração no presente, no quotidiano que se vive.
Viagem que edifica um pequeno momento de eternidade, quando essas relíquias se erguem para nós. 

Imagem, London, The Terrace, House of Parliament, 1929.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - deambulando pelas ruas de Londres (I)


Como é bela uma rua de Inverno! Ao mesmo tempo explícita e obscura. Aqui, é possível traçar vagamente avenidas direitas e simétricas feitas de portas e janelas; aqui, debaixo dos candeeiros, flutuam ilhas de luz coada, por onde passam, rapidamente iluminados, homens e mulheres que, apesar de toda a sua miséria e desmazelo, transportam qualquer coisa de irreal, um ar de triunfo, como se tivessem fugido da vida, iludida por quem a despojou, erra sem eles. Mas, mesmo assim, ainda estamos apenas a deslizar suavemente pela superfície das coisas. (...)

Como é bela uma rua de Londres, com as suas ilhas de luz, e os longos arvoredos de escuridão, e num dos lados, talvez, um espaço relvado salpicado de árvores, onde a noite se enrosca naturalmente para dormir, e quando se atravessa o gradeamento de ferro se ouvem aqueles pequenos estalidos e a agitação das folhas e dos gravetos, o que pressupõe o silêncio das campos em redor, o piar de uma coruja, e ao longe o ruído de um comboio a passar no vale.
Mas estamos em Londres, lembremo-nos; bem acima das árvores nuas há molduras de luz oblongas, de um amarelo-alaranjado-janelas; existem pontos de luz a brilhar, imóveis, como estrelas baixas - candeeiros; este espaço vazio que contém o campo e o seu sossego, é apenas um bairro de Londres, constituído por escritórios e casas ,...

os acenos das chamas nas lareiras, e as incidências de luz projectadas pelos candeeiros sobre a privacidade de uma qualquer sala, as suas poltronas, os papéis, a porcelana, a mesa de embutidos, a figura de uma mulher a contar atentamente o número exacto de colheres de chá que... Olha para a porta, como se estivesse a ouvir tocar, lá em baixo, e alguém a perguntar: "Ela está em casa?"
Virginia Woolf. (2016). Fastamagorias, deambulando pelas ruas de Londres. Feitoria dos Livros.

sábado, 19 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - O Spleen de Paris (II)


"Transporta-me, vagão! conduz-me tu, fragata!
Pra longe! aqui a lama são os nossos choros." (1)

Charles Baudelaire nasceu em Paris, em 1821. Desde a infância sentiu o lar como um sítio estranho. Andou de colégio interno em colégio interno e sucessivamente expulso por mau comportamento. Como adulto, quando já tinha crescido não encontrou um lugar para si na sociedade burguesa de Oitocentos em França. Viveu com um sentido de solidão, uma existência desalinhada que o conduziu para uma ideia de viagem. Viu-a como um convite permanente.
Na viagem encontrou uma forma de ordem e beleza. Teve algumas experiências de viagens menos conseguidas, mas ficou sempre nele essa ideia que expressa em Spleen, "as nuvens, as nuvens". Para Baudelaire o importante não era o destino a realizar numa viagem. A verdadeira grandeza da viagem era partir, era ir embora e dizia-o enfaticamente: "Qualquer sítio! Qualquer sítio! Contando que seja fora deste mundo!"

Baudelaire definiu-se assim ele próprio como um "poeta"  inquieto, afirmando nas viagens contínuas capazes de dar um sentido na vida, onde a família e os outros pouco lhe diziam. Desenvolveu um gosto muito particular por portos, estações de comboios ou docas, nessa ideia de que esses locais eram mais a sua habitação, tal como os hotéis do que o seu ambiente doméstico. Baudelaire soube criar uma poesia que dava uma expressão de beleza aos lugares de passagem, aos meios de transporte do século XIX. Elliot disse dele que tinha inventado "a poesia das partidas, a poesia das salas de espera."

Numa das suas visitas a sua mãe escreverá "Estes grandes e belos navios que oscilam imperceptivelmente nas águas tranquilas, estes sólidos navios, de ar sonhador e ocioso, não parecem murmurar-nos na sua linguagem de silêncio: Quando partiremos rumo À felicidade?» Para Baudelaire a partida alimentava o seu sonho, mas ele também era feito de uma mecânica de movimento, no caso dos transatlânticos. Pensava essas grandes embarcações como uma "grande imensa, complicada, mas ágil criatura, um animal inoculado pelo espírito, que sofre e alimenta todas as nostalgias e ambições da humanidade".

As nuvens e essa declaração de amor por elas no Spleen, "- amo as nuvens... as nuvens que passam... ao longe... a maravilha das nuvens!" Baudelaire via nelas o refúgio do mundo, de cidades decadentes como Paris, desse sítio onde terrores e lutos se fixam, obrigações e formalidades vãs se definem. A sua expressão "Pra longe! aqui a lama são os nossos choros!" é a construção de uma poética do lugar, da imaginação contínua da viagem, apenas por si, de fuga a um sentido de Ideal incapaz de se viver na cidade, justamente o Spleen.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - O Spleen de Paris (I)


– De quem gostas mais homem solitário? De teu pai, de tua mãe, de tua irmã, ou irmão?
– Não tenho pai, nem mãe, nem irmãos.
– Dos teus amigos?
– É uma expressão de que não sei o sentido.
– Da tua pátria?
– Não sei onde está situada.
– Da beleza?
– Amá-la-ia se a conhecesse, e a sua imortalidade.
– Do oiro?
– Odeio – o tanto como vós a Deus.
– Então que amas tu, singular estrangeiro?
– Amo as nuvens… as nuvens que passam… lá longe… as maravilhosas nuvens! (1)


(1) – Charles Baudelaire. (2007). “O estrangeiro”,
 in O Spleen de Paris, pequenos poemas em prosa. Lisboa: Relógio d' Água.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - Os Maias (III)

"A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete".

"No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, à luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarelos; ao fundo, o renque cerrado de antigas árvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente dessa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda cor de violeta escura, coroada pelo castelo da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro…”

Num claro espaço rasgado, onde Carlos deixara o Passeio Público pacato e frondoso - um obelisco, com borrões de bronze no pedestal, erguia um traço cor de açúcar na vibração fina da luz de inverno: e os largos globos dos candeeiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão suspensas no ar.”

“Pararam à porta do teatro da Trindade no momento em que, de uma tipóia de praça, se apeava um sujeito de barbas de apóstolo, todo de luto, com um chapéu de abas largas recurvas à moda de 1830”.
Diante deles, o hipódromo elevava-se suavemente em colina, parecendo, depois da poeirada quente da calçada e das cruas reverberações da cal, mais fresco, mais vasto com a sua relva já um pouco crestada pelo sol de Junho, e uma ou outra papoula vermelhejando aqui e além. [...] Para além, dos dois lados da tribuna real forrada de um baetão vermelho de mesa de Repartição, erguiam-se as duas tribunas públicas, com o feitio de traves mal pregadas, como palanques de arraial duas tribunas públicas, com o feitio de traves mal pregadas, como palanques de arraial.”

A palavra e o mundo - Os Maias (II)

José Maria de Eça de Queiroz nasceu na Póvoa do Varzim em 1845. Estudou entre o colégio da Lapa, na cidade do Porto, e a Universidade de Coimbra, onde entrou no primeiro ano, em 1861. Aqui, ligou-se a uma geração académica, admiradora das ideias de Proudhon e de Comte. Travou conhecimento com Antero de Quental e iniciou a sua carreira literária, com a publicação de folhetins que mais tarde seriam agrupados nas Prosas Bárbaras (1905). Em 1866, formou-se em Direito e passou a viver em Lisboa, onde exerceu a profissão de advogado. Cimentou a sua ligação a Antero de Quental e ao grupo do Cenáculo (1868), após ter dirigido o Distrito de Évora (1867). 

Em 1869, viajou até ao Egipto, para fazer a reportagem sobre a inauguração do Canal do Suez, de que resultará O Egipto, publicado apenas em 1926. Em 1871, participou nas Conferências do Casino Lisbonense. Entre 1869 e 1870, publicou diferentes obras, tais como Os Versos de Fradique Mendes, O Mistério da Estrada de Sintra, em parceria com Ramalho Ortigão e iniciou a publicação das Farpas. 
Em 1871, foi nomeado 1.º Cônsul nas Antilhas espanholas, transitando depois para Cuba, onde permaneceu dois anos. Entre 1883 e 1887, refez algumas das suas obras e publicou o Conde D’Abranhos e Alves & Companhia. Em 1874, passou a desempenhar a sua actividade em Inglaterra, foi em Newcastle que terminou O Crime do Padre Amaro (1875), ali ficando até 1878. Após esta data, foi para Paris, onde se dedicou à criação literária e onde faleceu em 1900. Em 1888, publicou a sua grande obra Os Maias e foi nomeado Cônsul em Paris. Continuou a escrever diferentes textos e obras, como A Ilustre Casa de Ramires ou a publicação na Revista Moderna, em Paris. 

Podemos ainda destacar da sua produção romanesca, entre outros, O Mistério da Estrada de Sintra (em colaboração com Ramalho Ortigão, (1871), O Primo Basílio (1878), O Mandarim (1879), A Relíquia (1887), A Ilustre Casa de Ramires (1900), A Correspondência de Fradique Mendes (1900), A Cidade e as Serras (1901), A Capital (1925), O Conde d'Abranhos 1925), Alves e Cia. (1925) e Contos (1902). Eça de Queiroz, tendo vivido na parte final do século XIX, soube, através da sua capacidade de analisar o quotidiano e a sociedade, traçar com humor algumas das características do nosso país. Fez o diagnóstico de uma classe política naufragada, onde os interesses particulares parecem não ser capazes de organizar institucionalmente o país. Vindo do século XIX, é um modernista na escrita e no pensamento que nos deixou. 

Eça é um dos maiores escritores de língua portuguesa, sendo em muitos aspectos uma figura que cria um mundo novo que alcança formas novas de exprimir um modernismo na escrita. É um dos escritores mais populares de língua portuguesa. 

A sua obra evoluiu de uma formulação inicial mais fantástica e influenciada por nomes como Baudelaire ou Heine, presente nos artigos e crónicas, para numa fase posterior se dedicar à crítica das instituições mais tradicionais, preocupando-se com a reforma social, dando-nos belos quadros de “crónicas de costumes.” 
Na última fase, encontramos uma escrita com mais esperança, com o culto da Natureza e de um certo regresso à simplicidade do homem, como se percebe em A Ilustre Casa de Ramires, A Cidade e as Serras ou a Correspondência de Fradique Mendes.

A palavra e o mundo - Os Maias (I)

Subitamente, Ega parou:
- Ora aí tens tu essa Avenida! Hem? Já não é mau!
Num claro espaço rasgado, onde Carlos deixara o Passeio Público pacato e frondoso - um obelisco, com borrões de bronze no pedestal, erguia um traço cor de açúcar na vibração fina da luz de Inverno: e os largos globos dos candeeiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão suspensas no ar. 
Dos dois lados seguiam, em alturas desiguais, os pesados prédios, lisos e aprumados, repintados de fresco, com vasos nas cornijas onde negrejavam piteiras de zinco, e pátios de pedra, quadrilhados a branco e preto, onde guarda-portões chupavam o cigarro: e aqueles dois hirtos renques de casas ajanotadas lembravam a Carlos as famílias que outrora se imobilizavam em filas, dos dois lados do Passeio, depois da missa "da uma", ouvindo a Banda, com casimiras e sedas, no catitismo domingueiro.
Todo o lajedo reluzia como cal nova. Aqui e além um arbusto encolhia, na aragem, a sua folhagem pálida e rara. E no fundo a colina verde, salpicada de árvores, os terrenos de Vale Pereiro, punham um brusco remate campestre àquele curto rompante de luxo barato - que partira para transformar a velha cidade, e estacara logo, com o fôlego curto, entre montões de cascalho.


Eça de Queiroz. (2013). Os Maias. Porto: Porto Editora, pág. 244

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - O livro de Cesário Verde (II)


"José Joaquim Cesário Verde nasceu a 25 de Fevereiro de 1855, num terceiro andar da Rua dos Fanqueiros, em Lisboa. Apesar da relativa estabilidade em que se vivia na altura, as chuvas anormais de primavera tinham provocado uma crise nos cereais, o que, num país sem caminhos-de-ferro, implicava literalmente a fome. 

Entre 1856 e 1857, devido às pestes – primeiro a de cólera e, depois, a da febre-amarela – Cesário passou uma longa temporada na quinta que a família possuía em Linda-a-Pastora. O pai era um lavrador dos arredores de Lisboa e o único proprietário da firma «J. A. Verde», uma loja de ferragens fundada em 1808.
A família Verde, oriunda de Génova, tinha emigrado para Portugal no século XVIII e pertencia aos sectores das classes médias atraídos pelos ventos revolucionários que vinham da Europa.

Aos dez anos, Cesário fez, com êxito, o exame de instrução primária. Não se limitou a estudar o que lhe ensinavam na escola: lia tudo o que lhe ia parar às mãos. Em casa, ouvira falar de autores – Montesquieu, Balzac, Dickens, Byron, Baudelaire, Zola – que o deliciaram. O pai notou desde cedo que o primogénito se interessava pelas artes e deu-lhe uma grande margem de liberdade. Liberal em política, era tolerante em casa. A família era, aliás, singularmente culta.
O desgosto provocado pela morte da irmã, aos dezanove anos, coincidiu com o final da sua adolescência. Pouco depois era envolvido pelo pai nos negócios da família. Tudo indica que apreciava aquela vida regrada, a ponto de ter imaginado novos empreendimentos.

Em 1873, matriculou-se no Curso Superior de Letras, fundado, uns anos antes pelo rei D. Pedro V, mas não o concluiu.
Após um ciclo de poemas dedicado a mulheres gélidas, publica, no verão de 1877, a sua primeira obra-prima, «Num Bairro Moderno», uma deambulação pelo que se supõe ser o bairro da Lapa. Há um certo paralelismo entre os poemas Cesário e um quadro impressionista. Em 1880, a sua melhor poesia ainda estava para vir, mas o que publicara era já muito bom. Mais realista do que Eça, que ostentava frequentemente um olhar moral, pretendia apenas mostrar o que via. A sua melancolia era calma, o seu pensamento, claro, e não acreditava em Deus porque nunca o vira. Para ele, a realidade era apenas aquilo que tinha diante dos olhos.

Embora tido como um poeta da cidade, também falou, e muito, do campo. Na sua geração, foi mesmo o único capaz de se referir às «serras» sem bucolismo.
«O Sentimento dum Ocidental» foi publicado em 1880 numa revista do Porto, Jornal de Viagens, por ocasião dos festejos do tricentenário da morte de Camões. Numa carta enviada a um dos diretores da publicação, Cesário refere que Lisboa, «em relação ao seu glorioso passado, parece um cadáver de cidade.» A forma como a descreve – vista como uma urbe pacata e escura – é curiosa. Lisboa é retratada como se o poeta tivesse tido acesso não a material de escrita, mas a uma câmara de filmar. Na parte II, subimos pela Rua Nova do Almada, até ao Largo das Duas Igrejas, onde, alguns anos antes, Eça colocara o padre Amaro a conversar com o cónego Dias.

Cesário é o autor daquele que é considerado o mais perfeito poema do século XIX, mas a reação do público não foi a que ele esperava e não estava preparado para o silêncio que se seguiu.
Em 1884, apercebeu-se de que estava doente. Nos dois anos seguintes, a sua atividade literária sofreu uma forte redução. Em 1886, foi viver para casa de um amigo da família, situada no Paço do Lumiar, onde morreu a 19 de julho de 1886. Os obituários, os poucos que apareceram na imprensa, foram todos de circunstância.
Cesário não precisou de ser um «poeta maldito» para escrever a poesia mais revolucionária da sua época. Disse o que tinha a dizer sem uma palavra a mais ou a menos. Não foram os temas que fizeram dele um génio, mas a sua imaginação, liberta como estava de todas as convenções".

Maria Filomena Mónica. (2007). Cesário Verde: um génio ignorado. Lx: Alêtheia Editores.

A palavra e o mundo - O livro de Cesário Verde (I)

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

    O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

    Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

    Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

    Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

    E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

    E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

    Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

    Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

    Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

    Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

Cesário Verde. (2007). O Sentimento dum Ocidental: I - Avé Maria", in
O livro de Cesário Verde. Porto: Porto Editora.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - A cidade e as serras (II)

Manuscrito revisto pelo seu autor em apenas algumas das suas páginas, Eça de Queiroz deu-nos em A cidade e as serras, um livro marcante da literatura contemporânea. Ele revela-nos a universalidade de Eça e desmistifica algumas das ideias feitas sobre o autor de Os Maias.

Formado em Direito, integrando uma carreira diplomática por diferentes países, compreendeu de uma forma profunda o que era substancialmente Portugal. Soube compreender a ondulação que fazia a onda maior, dando-nos páginas de análise dos costumes, dos hábitos e das instituições e de como estas formavam um País adiado de si próprio. Em As cidades e as serras, Eça dá-nos descrições naturalistas de grande significado, revelando-nos ter sido mais do que um crítico de costumes. Aqui revemos uma terra, uma cultura e uma memória em diálogo consigo própria.

A cidade e as serras propõe-nos um diálogo puramente atual que é o do Homem, o sentido que a sua vida poderá ter. Diálogo entre uma sociedade urbana, feita de conforto, onde a civilização se assume como um repositório de inovações técnicas e uma sociedade em comunhão com a Natureza. Diálogo entre a cidade, domínio de uma grandeza técnica, mas afastada do coração do Homem, da sua harmonia, pois é nela que a liberdade moral se perde e um campo que sublima os sentimentos humanos de uma forma genuína.

Era na cidade, que Jacinto no seu palácio de conforto e civilização vivia um mundo que o aborrecia. A cidade parece pois incapaz de conceber a felicidade humana - entre a dependência das modas, a pobreza dos rendimentos do trabalho e os rituais esquecidos. A cidade produtora de uma imensa indiferença, a maçada da vida. Com o campo Jacinto e nós descobrimos a natureza, a serra, uma das suas formas sublimes e nela um outro sentido para a vida - a comunhão com o Universo. A unicidade do Universo em formas múltiplas, leva-nos a compreender o homem, os animais, as plantas e os minerais.

É pois na Natureza que se descobre a diferença, o movimento animado de uma vontade que se expressa em formas de uma beleza rara. A que é feita de contemplação e de um silêncio que absorve a luz leve entre as folhas, onde nenhum pensamento outorga uma imanente felicidade. A cidade e as serras acaba por ser um manifesto naturalista, desenhando com um século de antecedência, "o mal" da cidade encerrada em si e nas ligações à exploração individual. Eça dá-nos já o que será a desumanização das relações sociais que na cidade se evidenciam.

É assim um livro de uma grande beleza, pelas suas descrições do Douro, das relações sociais no Portugal de oitocentos, do enquadramento temporal e pela oferta de uma possibilidade, que a cada dia mais carecemos. A Natureza como forma e expressão de satisfação e de encontro, com o mais importante - a beleza. É nela que desenhamos com harmonia a nossa respiração e a graça que nos envolve. É na Natureza que descobrimos o melhor de nós, as janelas que fazem nascer o sol com todas as possibilidades.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - A cidade e as serras (I)

Aos olhos piscos de um Zé Fernandes, logo que ele suba, fumando o seu cigarro, a uma arredada colina - a sublime edificação dos Tempos não é mais que um silencioso da espessura e da cor do pó final. O que será então aos olhos de Deus?
E ante estes clamores, lançados com afável malícia para espicaçar o meu Príncipe, ele murmurou, pensativo: - sim, é talvez uma ilusão... E a Cidade a maior ilusão!

Tão facilmente vitorioso redobrei de facúndia. Certamente, meu Príncipe, uma ilusão! E a mais amarga, porque o Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão? Na Cidade findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, aturar, rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel... 

A sua tranquilidade onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam!

Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. (...)

Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de Ideias e Fórmulas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já exprimidas - ou então, para se destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha q multidão como um mostrengo numa feira. (...)

- Sim, com efeito, a Cidade... É talvez uma ilusão perversa!
Insisti logo, com abundância, puxando os punhos, saboreando o meu fácil filosofar. e se ao menos esta ilusão da Cidade tornasse feliz a totalidade dos seres que a mantêm... Mas não! Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade os gozos especiais que ela cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos especiais que só nela existem. (...) Mas quê, meu Jacinto! A tua Civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá,nesta amarga desarmonia social, se o Capital der ao Trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da Cidade. Se nas suas tigelas fumegasse a justa ração do caldo - não poderia aparecer nas baixelas de prata a luxuosa porção de foie gras e túbaras que são o orgulho da Civilização.


Eça de Queiroz. (2009). A cidade e as Serras. Porto: Porto Editora, páginas 83 e 84.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - Curso intensivo de jardinagem (II)

"Não podemos escrever sem a força do corpo." (Marguerite Duras)

 Margarida Ferra publicou há já alguns anos um livro de poesia, Curso intensivo de jardinagem que nos introduz numa temática que é a chave temática escolhida este ano, a palavra e o mundo e neste caso, como em outros, a viagem pela cidade. Nesta primeira abordagem à cidade a poesia de Margarida Ferra revela-nos como o quotidiano, os objectos são formas de criação de imagens, de referência na memória.

O livro divide-se em quatro partes e há nele uma constância. A ideia de que o corpo é uma forma de conhecimento. Nosso e do que nos rodeia. E igualmente a ligação entre a jardinagem e o acto de escrever poesia. Ainda com esta ligação em mente deparamos com a tentativa de uma prática, de uma aprendizagem feita de energia, de brevidade pela observação, de rapidez na descrição e de utilização de recursos estilísticos mínimos. A poesia que encontramos explora locais, espaços, vivências, desencontros. Ela apresenta-se como uma exploração de procura que aposta na simplicidade do que encontra.

A epígrafe de entrada do livro de Marguerite Duras envolve-nos nessa observação que carece de uma energia. A que importa para as plantas e também para os versos, pois a beleza que se quer redescobrir e ver no quotidiano exige um esforço, uma atenção. Curso intensivo de jardinagem é um livro de poesia sobre o essencial, sobre o que vemos, sobre o que escolhemos ver. Acrescenta de uma forma muito luminosa imagens fotográficas dessa exploração do quotidiano.

 O sentido do corpo para a construção da poesia é verificável pela utilização da visão, ou do olfacto, ou ainda pelo som, ou pelo paladar. Existem muitos versos a confirmar esta forma de exploração do quotidiano. É na primeira parte do livro que este tipo de registo mais se apresenta. O quotidiano e os seus diversos gestos. Na segunda parte é a casa que é o centro do olhar da poesia. Lugar de acolhimento, mas também de desconforto. Há no entanto a procura de uma ligação entre os espaços numa observação dominada pela sensibilidade.

Nas últimas duas partes do livro os poemas caracterizam-se por serem breves. Ainda encontramos o corpo que percorre os espaços, que explora e observa em pequenas observações e nos dá ainda com um sentido de grande sensibilidade a sua transformação na poesia, na palavra, na capacidade de criar um corpo de memória. 

Imagem: Copyright - 半夏生の朝に - あたりまえの暮らしを護っていかれるのだろうか。


quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - Curso intensivo de jardinagem (I)

Percorria ao anoitecer os jardins
da cidade à procura das flores
oficiais - sobem amparadas
e perfumam com a memória
do chá as ruas irregulares.
Levava uma tesoura de unhas,
insuficiente e desnecessária porque
não colhia nada que fosse vivo.
Restavam-me frases livres,
páginas dobradas, cadeiras desiguais
e os pratos vazios deixados
aos gatos.
O primeiro poema encontrei-o
numa dessas buscas
debaixo da árvore maior,
no ferro que sustenta a copa,
preso com uma mola da roupa.


Margarida Ferra. (2010). "Nome comum: Jasmim-dos-Poetas", in Curso Intensivo de Jardinagem. Lisboa: &ETC