segunda-feira, 19 de junho de 2017

A palavra e o mundo - estender os sonhos (V)

"foi com Johann Bach que aprendemos, nós, que não temos ouvido, e não ouvimos a música, a forma técnica viva da consonância / dissonância que só na música realmente existe." (1)

A palavra e o mundo foi uma etiqueta para abordar a Literatura de viagens e fazer dela uma temática de agregação de ideias nos destaques de livros durante este ano letivo na Biblioteca. Percorreram-se quatro livros em cada mês e sobre os quais se destacaram excertos e apresentações que ultrapassaram os oitenta textos. Destes foram selecionados alguns para a construção de algumas exposições que relacionaram os espaços, as atmosferas sociais e culturais com a palavra.

A última proposta foi o livro de Pedro Eiras, Bach, que nos conduz a uma viagem pelas palavras e pela memória. É ainda a recuperação de espaços de intimidade e a forma como a linguagem consegue descrever esses sonhos estendidos pelos dias. Foi o único caso em que o título do livro se alterou da apresentação dos posts porque isso condicionava o que se queria revelar.

Bach, de Pedro Eiras devolve-nos naquilo que a palavra consegue recuperar os sonhos e as vidas de figuras tão diversas, como as seguintes:
  • Anna Magdalena Bach (1750);
  • Esther Meynell (1925);
  • Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (1968);
  • Gustav Leonhardt (1973);
  • Glenn Gould (1981);
  • John Cage (1961);
  • Gottfried Wilhelm Leibniz (1714);
  • Maria Gabriela Llansol (1984);
  • Martin Luther (1528);
  • Jeshua Ben-Josef (S/D);
  • Etty Hillesum (1943);
  • "ICH Habe Genug..." 
  • Albert Schweitzer (1959).
Bach, de Pedro Eiras percorre um conjunto de memórias tentando dar vida a figuras que marcaram a sociedade pelos seus sonhos a que procuraram dar forma. Bach, sem dúvida, Leibniz e essa tentativa de compreender o universo e as suas leis, Etty Hillesum, na fronteira entre o que se pode exprimir e o que se silencia pela confrontação do real no quotidiano, ou Lutero e a fragilidade de compor palavras humanas nos desígnios de Deus. 

No fim é sempre um ponto de partida semelhante, isto é, como cada um ouviu essa música, o infinito dentro do finito, os sons de Bach. O livro conduz-nos por uma banda sonora, a de Bach e desses pontos ligação, fios de personagens, memórias de pessoas e a ideia generosa e feliz que ainda podemos responder às vozes que se perderam. No fundo somos sempre a continuidade de um corpo, de um fragmento que até nós chegou. Um livro de uma enorme magia.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

A palavra e o mundo - estender os sonhos (IV)

Estou sentada em cima da minha mochila, no centro de um vagão cheio, e preciso de te ajudar, meu Deus. (...)
Estou sentada em cima da minha mochila, o vagão trepida, as crianças dormem e os velhos velam,  e eu vou no transporte e penso que tenho de te ajudar, meu Deus. Tu não tens forças para nos socorrer, por isso eu preciso de vir em teu socorro. Porque tu estás reduzido a tão pouco, e não podes valer a todos, então eu preciso de te dar as minhas forças. Precisas de ajuda, meu Deus, porque estás ferido e exangue. Precisas que eu trate de ti, que te vele, que te dê um pouco do calor que guardo em mim, dentro das camisolas de lã. Que eu guarde este calor por ti, dentro de mim.

Eu queria ser o coração pensante dos barracões, meu Deus, porque todos os outros estavam tão ocupados, sempre mais atarefados do que eu. Porque os outros tinham filhos pequenos e os pais a morrerem, e estavam terrivelmente assustados. Mas eu não tinha medo, podia pensar por eles. Podia levar os pensamentos deles até ti, meu Deus, como um correio que não abrisse as cartas para as censurar. Queria ser o coração pensante, quando os outros não tinham tempo para pensar, à procura de comida, agasalho e notícias. E queria ajudar-te a pensar com eles, pensar os pensamentos deles.

Eu ajoelhava em frente ao urzal, meu Deus, o urzal atrás do arame farpado. E tu estavas ali, pobre, atrás do arame farpado. Os raios de sol nas urzes, na água gelada, atrás do arame farpado.
Deixa-me agora ser o coração do vagão, meu Deus. 
Estão demasiado cansados, mal conseguem falar. Mas se eu levar o meu pensamento pela noite fora, toda a viagem de comboio, até ao fim, é como se guardasse um pouco de calor, intacto, por nós todos. Deixa-me guardar o resto do pensamento. Mesmo  a tremer, mesmo a cair de cansaço ainda hei-de conseguir um pouco de força para te amparar. (...)

Eu aceito tudo , meu Deus. Continuo a ajoelhar, e ajoelharei no vagão e no campo, como ajoelhei em frente ao urzal. Se eu não te ajudar, meu Deus, quem te levará até à morada da morte?
Espreito pela frincha, o ar entra, tudo está morto. Montanhas e florestas.
Tenho tudo dentro de mim, mesmo quando é tão difícil.

Partimos de Westerbork há dois dias. Como se a viagem durasse anos de vida. Pode-se envelhecer vidas inteiras num vagão, durante uma noite. Todos nós, mesmo as crianças, somos agora muito velhos. Com mais velhice do que cabe numa vida. Amanhã chegaremos ao campos, e ninguém sabe o que acontecerá. Correm rumores horríveis. mas seja o que for que nos espera, meu Deus, eu aceito. Mesmo na morada da morte te ajudarei.

Olho pela frincha. Lá em cima, a Ursa Maior, clara, nítida, e fria. Que nos acompanha desde a partida. Por que é que as estrelas andam quando eu ando, perguntou-me uma criança em Westerbork, e param quando eu paro?
Uma pequena força dentro de mim. 

As estrelas brilham sobre a neve. Uma claridade branca começa atrás dos montes, o dia nasce do lado para onde o transporte avança. Vejo um caminho, uma casa. Um regato gelado. Luzes ao longe, uma cidade. Uma placa a indicar a direcção. 
Consigo ler a placa: "Leipzig".

E a neve recomeça a cair.
Uma pequena força, meu Deus, dentro de mim.

Pedro Eiras. (2014). "Etty Hillesum", in Bach. Porto: Assírio& Alvim
Imagem - Capa do livro que junta os Diários de Etty Hillesum (1941-43) e que como Anne Frank vivia em Amesterdão; Copyright - persephonebooks

quarta-feira, 14 de junho de 2017

A palavra e o mundo - estender os sonhos (III)

Quase dou razão aos meus adversários: o que há aí, nesses volumes de escolástica, que me sirva hoje? Mesmo nos meus escritos, volume a volume as mesmas ideias recomeçadas, o ensaio infinito do pensamento: que existe nos capítulos para continuar a pensar? Volume a volume, tantos textos, tantas vezes as mesmas palavras. 
Resisto. Abro o meu pequeno discurso de metafísica, estas folhas gastas, leio as linhas que caem sob os meus olhos:

"toda a substância é como um mundo inteiro e um espelho de Deus, ou de todo o universo, que cada uma exprime à sua maneira, como uma mesma cidade é diversamente representada segundo as diferentes posições de quem as vê. Assim, o universo está multiplicado tantas vezes quantas as substâncias existentes, e a glória de Deus redobrada por tantas representações diferentes da sua obra."

Assim escrevi, há tanto tempo. Recordo. Assim eu mesmo em frente a esta janela exprimo todo o universo de acordo com o meu ponto de vista. A mónada que eu sou -substância simples e indivisível - perspectiva o infinito das coisas de tal modo que, se se desdobrassem inteiramente as minhas percepções, o universo inteiro estaria contido, presente, passado, futuro, na minha substância. E como eu sou apenas uma mónada sobre o infinito, Deus é o infinito das mónadas, e a glória.

Mas se cada substância simples espelha Deus, se a mónada exprime o infinito, exprime-o e espelha-o de modo imperfeito, claro no pensamento, obscuro quando os olhos se prendem na janela embaciada e os ouvidos no barulho que as rodas das caleches fazem na rua, lá em baixo, som amaciado pela neve, quando eu apenas percepciono o presente e ignoro o s tempos pretéritos, mas alcanço o futuro. Pois se Deus é presente em cada substância, o ponto de vista de cada substância torna o distinto confuso. (...) 

bebo o chá. Expiro, e sigo a nuvem de vapor a sair da minha boca.
Assim como as ondas, também o som da neve caindo sobre os caixilhos, e o som do vapor que expiro e se desfaz no ar. Pois essa música composta é perceptível, ainda que eu não saiba discernir cada parte. E assim ouvimos mas somos surdos, percebemos o universo e somos cegos. (...)

De novo a pena se suspende. É vão o que escrevo? Tratados, cartas, discursos, o sonho de uma matemática universal. E contudo, eu descobri o infinito em todas as coisas, eu soube que mesmo na unidade se dobram todos o números, que um valor finito é a soma de infinitos valores, pois pode-se desdobrar sempre um corpo, ver o universo num floco, numa pequena pedra, nestas tulipas sobre o parapeito da janela, pétalas a estalarem, as bordas carcomidas já, oxidadas, queimadura minúscula. (...)

Sim - e que nesse mundo determinado, harmónico, o melhor de todos os mundos possíveis, exista uma razão para a própria dor, um fim último desejado, uma razão para a dissonância tal como se apresenta aos nossos ouvidos, parte de uma harmonia maior que só o concerto das mónadas poderia ouvir, a unidade de todos os entendimentos de Deus. Assim uma razão para a neve, para Hanôver, as tulipas no vaso e as dores nas articulações do meu corpo. Uma razão para ecscrever e para não escrever, para a música e o silêncio, uma razão, por todas as coisas distribuída, uma pequena razão. (...)

Arrasto a cadeira, limpo a humidade dos vidros, avisto a rua. A rosácea de sangue sucumbiu sob a neve. Não vejo a criança ferida, e não ouço choros, queixas, consolações. O manto branco esquece tudo.
Tenho frio.

Pedro Eiras. (2014). "Gottfried Wilhelm Leibniz", in Bach. Porto: Assírio& Alvim
Imagem - Friso do pórtico principal da Câmara Municipal de Hanôver

A palavra e o mundo - estender os sonhos (II)

As longas horas, uma imagem quase imóvel no ecrã.
"O que importa conservar é a diminuição da luz, é o movimento da câmara que corta a luz da janela, no início do plano vemos a janela inteira (...) as mãos que tocam na película. O pequeno candeeiros. Um corte. A penumbra. As mãos quase cegas sobre as imagens. Tactear. (...)

"Há um momento em que a luz lhe salta dos olhos, é muito difícil, mas se pudéssemos conservar essa luz - "
Fique com essa luz, mas não lhe dê nenhuma expressão, a ele. O Leonhardt é uma estátua, um mineral, e as árvores ao fundo são tão importantes como ele, feitas da mesma matéria, e a janela, o trinco da janela, aquela rachada na moldura da janela, não perca isso, é imp0rtante. É importante a mão - "
"Eu sei!"
"É importante a mão na janela, porque o Leonhardt não está a agarrar nada, ele só toca na janela para saber onde ela está, não a vê - mas, bom... Precisa de tocar na madeira para saber. (...)

"Mostrar as coisas. Construir por cima das coisas. Os anjos. Já falámos disso. Tantos anjos nas igrejas, no filme. Um exército de anjos barrocos esculpidos. Não é para comover. Mas filmamos os anjos e eles significam o poder da igreja. O Brecht dizia: o preço das coisas. Dizer quanto custa. É igual. O valor de uso, o valor de troca. Dizer isso num filme. Faz um bocado de mado, não?"

Jogo de luzes. A luz na janela, através das árvores.A tira do caixilho de madeira deita uma vaga sombra sobre Leonhardt. Mas a luz artificial, dentro de casa, ilumina o actor, faz reluzir os cachos da peruca barroca, E Leonhardt faz sombra sobre a moldura da janela. A câmara, num ligeiro contrapicado, mostra breves sombras na cara: o queixo, a testa, e junto dos olhos.
O prelúdio coral.

Como se filma a cegueira? Quem está cego? Quem está mergulhado no mundo e não vê o mundo, não vê o que tem em frente aos olhos e toca uma janela, caixilho, madeira, para saber que há ali realidade, o vidro, as árvores? O tempo destas mãos, destes dedos, agora sem teclado: dedos para sentir o mundo, em vez dos olhos cegos. Dedos para ver. Para enrolar a película, cortar, dedos para colar. Paciência.
O charuto em brasas. Straub continua:
"Resistir."
Continua.

"Resistir é regressar aos documentos, fazer os microfilmes das partituras, das cartas, das dedicatórias, tirar o pó aos arquivos e perceber que esses documentos ainda estão no nosso futuro, ainda nos esperam, que a História não está terminada. Nem sequer o século XVII, o século XVIII, nada terminou, ainda estão a acontecer, ainda - de cada vez que você fotografa uma partitura, e depois o Leonhardt toca um cravo branco, e a voz da Anna Magdalena lê os textos - então, nós percebemos que a vida de Bach ainda está por decidir." 
Paciência, paciência

"E também é isso que eles não nos podem perdoar. Na Europa, na Alemanha. O que aconteceu aconteceu, dizem eles; uma pedra em cima, um túmulo. Para o bem e para o mal, esquecer depressa. Fazer o monumento, esconder as ruínas. Mas resistir é negociar outra vez, voltar a fazer contas: quanto custou. Quanto doeu. Pegar nas peças e voltar a construir a Alemanha. mas construir de outra maneira, com fidelidade. Imperdoável! Resistência e fidelidade. A resistência é a fidelidade..."

Pedro Eiras. (2014). "Jean-Marie Straub e Danièle Huillet", in Bach. Porto: Assírio& Alvim

segunda-feira, 12 de junho de 2017

A palavra e o mundo - estender os sonhos (I)

Se alguém escreve a biografia de um compositor do século XVIII, escreve a sua própria biografia. Aporta, entreaberta, afinal dá para o nosso próprio quarto. Espelho, anacronismo. pequena ilusão pessoal e humaníssima, desejo infantil de ver, tão forte. E quando se escreve não é para espiar Johann Sebastian compondo, na sua solidão eternamente perdida, mas para interrogar a própria fantasia, a fantasia própria. Interrogar a imaginação. 
Esther Meynell escreve sobre Esther Meynell, sobre a sua paixão por Bach, disfarçada de biografia.

Mas se toda a fantasia é anacrónica, se Anna Magdalena não surpreendeu Johann Sebastian a compor, nem nunca fugiu com lágrimas nos olhos, se uma autora em 1925 só pode imaginar, se interrogamos com as nossas palavras de hoje o passado perdido, nós, cheios de desejo, então vale a pena lutar contra a inverrosimilhança, então é preferível inventar o passado, assumir o fingimento. Não se pode ressuscitar o século XVIII; mas inventa-se o passado conforme o nosso desejo. Por isso, é o nosso desejo que inventamos.  Por iiso, nunca Esther Meynell é mais fiel do que quando descreve a cena mais inversímil: Anna Magdalena surpreendendo Johann Sebastian a compor, fugindo e chorando, como nós choramos hoje. (...)

Não se pode ressuscitar o passado, mas pode-se escrever sobre o passado, no presente; e misturar os tempos. Receber o que resta de antigas vozes, assinaturas, a dobra da linguagem, suas cerimónias e seus implícitos, a surpreendente consciência de que estas pessoas existiram. (...)

Tentação pequena, infantil, de fantasiar: quem seria este violinista, esse organista, aquele viajante? nomes, maledicências, testemunhos, um simples registo: a única marca, a única prova de que alguém viveu, com os seus entusiasmos, medos, as suas crenças, alegrias, esperanças, a sua morte.

Leio estas páginas, sites, fac-similes com os seus olhos extemporâneos; leio, interrogo, comparo, trezentos anos depois. Ignoro tanto sobre estes nomes; mas sei o que eles não souberam: que o mundo deles acabou, tudo quanto parecia eterno se revelou perecível, a ordem da sociedade e das nações mudou mil vezes, o que era proibido tornou-se corrente e o necessário escusado, crime e inocência confundiram-se, mas nessa violenta desordem das coisas - a que devagar nos fomos habituando, quase inconscientemente, no ciclo das gerações - a música do Kantor, irascível, envelhecido e fora de moda, sobreviveu.

Em cada palavra destes documentos setecentistas leio o passado, o presente, e o que persiste do passado no presente, o destino que nenhum setecentista ousou adivinhar. Organizo, recupero: copio os nomes dos mortos para este texto. Penso que essas vidas não estão terminadas, que nada terminou, leio e releio estes nomes, escrevo, reescrevo, interrogo: trezentos anos depois, respondo.

Pedro Eiras. (2014). "Esther Meynell", in Bach. Porto: Assírio& Alvim

sexta-feira, 9 de junho de 2017

A palavra e o mundo - Sonhos azuis pelas esquinas (VI)

Para onde vou
Ferve a luz
Debaixo dos tectos
Há ontem e amanhã
Amores com pele de líquen
Sonhos azuis pelas esquinas
Ali não é preciso nada
Ali não é preciso nada
Guardamos o lugar
Com palavras
[...]

Paula Tavares~. (2010). Como veias finas na Terra. Lisboa: Caminho.

....

A palavra e o mundo - Sonhos azuis pelas esquinas (V)

Azul? Essa cor toda enorme…”
(a criança)

Já pouco se movem os corpos no fim desta tarde. Ouço vozes que terão vindo de outros lugares.
A verdade é que isso me incomoda. Prefiro vozes que condigam com aquilo que olho. De repente, ou do calor ou do vinho, já não sei bem da geografia do lugar onde me encontro.

Pequenas palavras caem como pingos de chuva. Pequenas ideias, murmúrios de sonhos, restos de coisa dita superficialmente. Talvez a minha missão nesta cidade seja catar estes restos e montar um puzzle maior. Talvez eu não tenha missão alguma. Talvez eu não esteja aqui. E o pior de não se estar num lugar é o esforço de definir um outro lugar onde se esteja.

- Usa uma âncora...
A frase antiga, é do meu avô paterno. O pescador. 
- Ferra a âncora - ouço-o dizer-me.

Defino, com esforço, que ele esteja aqui comigo.
Agora. Mas a âncora é o presente. Ele talvez seja a canoa. Ou ele - ou eu.
Ancorar-me. Olhar o que posso ver, ajustar as vozes aos corpos. Encaixar o que foi - fôr - dito aos corpos que respiram e se movem. Libertar-me do calor e do peso. Não ser um, mas "mais um".

- Ferra a âncora, agora!
Obedeço. Humedeço os olhos com o tom da sua voz. Eu queria uma estória. uma estória de pescador. O que elas têm de mágico é quase sempre fugirem ao banal. Lembro-me de pensar isto desde criança: são de verdade as estórias dos pescadores. São sempre simples. São sempre breves. Límpidas. São belas sem se afastarem da textura do sal. A pele queimada, limpa: é isso que lembram as estórias dos pescadores.

Ferrei a âncora. Encontrei sons e sorrisos correspondentes. As vozes reencontraram-se com as bocas presas aos corpos. Respiro ainda devagar.
Na curva de uma chávena, vejo o reflexo do meu rosto. Sou uma criança sentada a rir das estórias breves do meu avô. E outra. e outra mais.

- Há muito silêncio nas tuas estórias. nos teus dias. No teu mar - provoco.
- É uma âncora. Tu gostas de palavras. Nunca serias pescador. Talvez poeta. Se eu disser "azul", tu vês o quê? - o meu avô faz uma careta de pele queimada.
Não respondi. Fiquei quieto. Os corpos moviam-se ao fim da tarde.
Ele insistia com essas palavras em pingos de chuva:
- Eu vejo o céu. Só o meu céu. Azul e simples.

Humedeço os olhos com o tom da tua voz. ele não tinha fugido ao banal. Mas, dito por um pescador, já não era banal.
- para mim "azul" pode ser a parte de dentro das pessoas - murmuro eu.
Ferro a âncora. deixo que a voz reencontre o meu corpo. Talvez eu não esteja aqui, em Moçâmedes, com o meu avô.
De repente, já posso respirar fundo.

Ondjaki. (2014). "Moçâmedes", in Sonhos azuis pelas esquinas. Lisboa: Caminho.
Imagem - Moçâmedes (http://mossamedes-do-antigamente.blogspot.pt)

quinta-feira, 8 de junho de 2017

A palavra e o mundo - Sonhos azuis pelas esquinas (IV)

Quando se aproximou, a mulher trazia vestida no corpo a carga de uma notícia. Eu não quis acreditar. Pensei que (eu) estivesse a ler sinais inexistentes. Mas, é sabido: há sinais inconfundíveis. Há factos que nos encontram. No mar ou no deserto. Na escuridão ou na maresia.

Havia ruído. A mulher teve o cuidado de esperar que a multidão se dissipasse. Eu sabia que não esperava nada. e quando não espero nada, posso estar muito tempo assim. Ela esperava não sei o quê. Mas esperou.

É verdade que se aproximou devagar e que esteve um largo pedaço de tempo à espera que a multidão seguisse o seu destino. Não deixa de ser curioso que duas pessoas sentadas num aeroporto, e paradas, podem fazer a vez de um polícia sinaleiro ou de uma esquina. Tanto um sinaleiro como uma esquina dão caminho a multidões.

"Se não é pesado, o silêncio não incomoda", começou a mulher. Disse-o como quem fala para quem quiser ouvir. Há coisas que só nos chegam se as quisermos ouvir. E se o nível de ruído circundante o permitir. Às vezes mesmo um aeroporto pode ser um lugar vazio. Os lugares, quando são grandes, contêm um vazio maior. Mas dentro de cada um, o vazio não se equipara ao tamanho dos lugares. É assim que uma pessoa pequena pode conter um enorme vazio e a pessoa grande conter um vazio menor.
Só cada dono poderá saber do tamanho do seu vazio.

A mulher apontou para o meu telefone:"essas coisas contêm música, não é?" Acenei afirmativamente. E pensei: "há coisas que têm e tocam música. Também as lembranças estão cheias de músicas." O vazio do aeroporto espalhava em nós uma tranquilidade avassaladora. 
De novo, apontou para o telefone. O seu dedo, pequeno, movia-se como uma pena. Leve. Muito leve. "Procure uma música chamada Rising." Uma pontada de tristeza invadiu-me o coração. "Lhasa é o nome da cantora", disse, ainda suave. "Eu sei." A música começou. Os olhos da mulher incharam-me de lágrimas. As músicas estão cheias de lembranças. "E de sensações...", disse a mulher.

A mulher, sem olhar para mim, foi dizendo que conhecia a música de Lhasa desde o início da carreira. Que tinha ido a muitíssimos concertos. E que tinha uma notícia para me dar. Que talvez eu já soubesse. Ou não. Mas, é sabido: há sinais inconfundíveis.

O seu dedo, leve, apontava para o telefone. "Ponha aquela canção de nome Bells. E prepare-se: tenho uma triste notícia para lhe dar."
Como seres humanos, estamos alguma vez preparados para uma triste notícia?

Vi as horas. em breve eu deveria partir. A mulher tinha-se sentado ali, tão perto de mim, para me falar da morte de Lhasa. De modo separado, chorámos juntos. Há factos que nos encontram. Na escuridão ou na maresia, todos os lugares são internos.
O silêncio não nos incomodava. Não dissemos mais palavras. Esperei que terminasse a música, e parti.
Tanto um aeroporto como uma música dão caminho a multidões.
Ou a um homem só.

Ondjaki. (2014). "Nairobi", in Sonhos azuis pelas esquinas. Lisboa: Caminho.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

A palavra e o mundo - Sonhos azuis pelas esquinas (III)

Tenho o corpo pisado pelas rãs e palavras abençoadas aguardam vez na minha boca. chove sobre mim. os meus dedos respiram. os meus olhos celebram a chuva numa alegria seca.
junto água à terra que os meus pés pisam, faço barro para cobrir o corpo. é no barro húmido sobre o corpo nu que as rãs deixam as peugadas que irei decifrar atravessando o tempo.

espero o tempo passar para entender o cântico do meu corpo junto ao teu; assistir, sem medo, à partida das rãs. invoquei-as e elas atenderam. esperei - sob o sol, tempestades, pequenas mortes, celebrações e fugas, e acreditei sempre na chegada delas. sei o que vivo na pele feita macia pela areia molhada.

o amor é uma palavra suada entre os meus dedos - devo isso ao destino e ao instinto.

sua, noite. entre dedos o meu corpo existe para celebrar o amor. empurro a palavra madrugada e é doce essa tarefa. pronuncio palavras ao teu ouvido. palavras que o esquecimento acolhe no seu regaço, palavras para reprogramar o teu sentir. que a travessia aconteça. que os camelos paralelos a nós possam transportar água suficiente e o sol nos seja brando. que o vento não anule as peugadas das rãs. de tempos a tempos necessitarei desse mapa.

quero o caminho de volta ao meu corpo interno vindo já cansado de pisar o teu. o teu corpo doce. as tuas mãos pequeninas. os odores que libertas ao amar - os que incorporo depois de os inventar para mim: sândalos, maresias, amanheceres, cabelos de gato, as danças que só acontecem contigo antes do teu corpo e durante tu.

se me deito entre o teu olhar e a sombra densa da madrugada, adormeço. e que pesadelo bonito tenho ao frequentar o teu sono, aí onde dormes quieta e leve, de curta penugem vestida e pele doce a acompanhar-te o corpo - sonhos pendurados, inofensivas adagas, humidades arremessadas à noite contra a solidão. beijo e brandura. mão e músculo. seio e sensualidade.

és a madrugada onde o tango prolifera.
a ausência dos dedos suados sobre um piano - soltam-se memórias em dias de primavera, um jorro de risos e noites se acumula, transborda, e tudo o que és se faz barca. entre um passo de dança e um passo dado, canta um pássaro delicado, a palavra saudade chega e se acomoda feita folha, tinta de entornar sonhos, gota de vinho  tão tinto.

canta, andorinha: dentro do meu peito bates. exausta.
entre veias, vives e vais. o teu destino é bater asas num espaço que não há, trémulas tentativas, forçadas caminhadas, felicidades furtivas. aqui dentro o espaço é este - já o amor se queixa de ser tão breve, já a dor depois de aquecer arrefece.

em mim, apenas o meu corpo por gaiola.

Ondjaki. (2014). "Zanzibar", in Sonhos azuis pelas esquinas. Lisboa: Caminho.

terça-feira, 6 de junho de 2017

A palavra e o mundo - Sonhos azuis pelas esquinas (II)

Vi que chovia.
Desconheço os meandros dessa poesia que faz uma chuva cair devagar. Nunca indaguei ninguém sobre a não-densidade de tal fenómeno. Gostaria mais de ouvir a resposta de uma criança do que a de um cientista. Só sei que gosto.
Madrugada. Primeiro é a voz.
Depois é a mão sozinha que me prende o olhar. Desacelero o passo. Sei que a mão são três: uma de menina e duas muito antigas. Vejo o que daqui posso ver.
Uma mão. mais duas. Uma varanda. A noite densa sob o não-luar. e a voz da criança que ainda não sei bem o que diz.
Quantas imagens me traz esta chuva repentinamente lenta! Sei que existe chuvisco. Pingo. Molha-parvos. Chuva torrencial. Cacimbo. Geada. Mas isto é chuva lenta. Talvez a minha preferida. Talvez. De madrugada, certamente a minha preferida.
Arrasto o passo quanto posso. Evito olhar - mas desconsigo. O velho não me viu. Nem verá.
A menina sim. Quieta. Tem sono? o que faz semidesperta, atravessando esta húmida noite como um viajante acostumado? Como sabe  que atraso o passo para saber dela, das mãos, do que a sua voz imprime no corpo da nossa madrugada?

Agora sei o que diz. Sorrio. Páro.
Tenho um misto de vergonha e timidez por não lhe saber dar uma resposta. Poderia fazê-lo, sem dúvida. Mas como negar a uma criança o meu mais sincero silêncio, entre o antónito e o embaraçado, que a sua súplica me deixa?

O que me faz voltar a caminhar é o abandono: a chuva abandonou a sua lentidão. A chuva - agora - quer chover. Nem eu, nem a criança, nem o velho, ninguém pode  abrandar a chuva. Ela quer chover, ela vai chover: a chuva.
Fazia madrugada em nós. Naquela varanda. Naquela voz. E na gaiola arejada.
A menina repetiu:
- E o meu passarinho? Aonde foi o meu passarinho...?

Ondjaki. (2014). "Dar es Salaam", in Sonhos azuis pelas esquinas. Lisboa: Caminho.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

A palavra e o mundo - Sonhos azuis pelas esquinas (I)

venho dizer destas ruas que o sol aperta, e as sombras e os panos e as tranças nas meninas que passam - crianças que olham o mar com a simplicidade das pedras, aqui onde todas as varandas penduram ausências de gentes por regressar. os pássaros voam parados, suspensos e próximos, dando sombra às árvores e graças ao céu azul. 

vejo telhados sobre as pedras e pedras sobre a ilha, mas o chão respira uma frescura humana, os panos vestem as pessoas e as pessoas buscam negócios de regateio. chega um barco cheio de palavras caladas. (...) mais tarde a noite dará voz às sombras, as sombras serão calmaria e escuridão. as árvores beijarão os pássaros. os dedos hão de alcançar um torpor de mansidão. (...)

o apito de partida é o sinal de chegada àqueles que decidem ficar.
é de tarde ainda e quase noite: são os pássaros que o dizem. no céu não existem lágrimas; chegou a lua; as árvores adormeceram e sinto no ar, nos restos desta tarde senegalesa, um arfar de madeiras. não vejo canoas, sinto apenas a sua dança, um embalar de braços e ondulações, uma cantoria de remos, um poema molhado no sal.

quero a lua sobre a mesa - junto ao peixe, ao molho, ao arroz que devolve à minha refeição o branco do luar. quero conchas rumando ao meu quarto vazio, quero lençóis plenos de uma maresia fresca - para que a noite resulte e, depois dela, nas frestas do meu lençol branco, a madrugada possa vir sorrateira aprisionar-me em mim.

quero um grilo calado, um pirilampo em sereno apagamento. vozes para voos rasantes, ou uma luz negra que, sem acordar, acabasse por adormecer. (...)

pela manhã, vi o sol no mar e as ondas do meu olhar. uma saudade amarela abateu-se sonre mim e eu ri - porque era cedo e porque as nuvens não tinham chegado ainda. havia um anzol no meu sorriso.
vi os homens perto do cais e as ondas por trás e os imbondeiros, perto das crianças que esquivam as pedras de sorriso aberto.

Ondjaki. (2014). "Gorée", in Sonhos azuis pelas esquinas. Lisboa: Caminho.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

A palavra e o mundo - No meu peito não cabem pássaros (VII)

"O mundo é um vazio desmedido que não queremos nem podemos aceitar, os homens também, as cidades, os países, os planetas também. Não há palavras que encham tanto vazio. Os livros que deixamos são obras de filigrana, fios ténues do sentido com que delimitamos o volume do que não entendemos."

Nesta etiqueta "A palavra e o mundo", por onde se destacaram perto de quarenta livros sobre a literatura e a viagem, a palavra e os espaços do mundo, um dos que em língua portuguesa mais longe chega nesse diálogo é o livro de Nuno Camarneiro, No meu Peito não batem Pássaros.

No meu peito não cabem pássaros junta três figuras maiores da Literatura do século XX, justamente, Franz Kafka, Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa.  Junta-as a partir da leitura da vida que se contrói, de um imigrante em Nova Iorque, de um rapaz que chega a Lisboa e de uma criança que inventa coisas, formas de anunciar o que acontecerá mais tarde.

No meu Peito não batem Pássaros realiza a narrativa de três figuras a descobrirem espaços urbanos, a carregar sonhos maiores que eles, a compor palavras com a linha comum de inventar um mundo. É um livro sobre criadores, é um livro sobre cidades e ainda um livro sobre três figuras que entre a solidão e a desilusão nos definem o assombro das palavras, a linguagem para compor aquilo que é a vida de milhões, o prenúncio do mundo moderno.

No meu Peito não batem Pássaros fala-nos da vida, da memória, da morte, do esquecimento, entre os caminhos que percorremos, com o sol a nascer em nós. A infância, o consolo das histórias vividas e inventadas entre os que no tempo forjaram o azul de um aconchego e nos deram a visão de um caminho.

Livro imenso, uma sabedoria de palavras, momentos intermitentes que nos dão a linha dos olhos que procuramos para recuperar a beleza, o encontro com a respiração do amor. ainda esse sonho antigo que nos faça ser um ponto brilhante nos dias esquecidos. A beleza e o sorriso entre as cicatrizes que nos caracterizam, que nos rasgaram o espírito e o corpo até chegar ao encontro, à mão, ao perfume solar capaz de nos fazer render um novo salto, a dos pássaros que em nós voam.

Nuno Camarneiro. (2013). "Lisboa", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.

A palavra e o mundo - No meu peito não cabem pássaros (VI)

O professor circula pelas bancadas distribuindo as dissertações corrigidas e classificadas. Ao chegar a Fernando, entrega-lhe a sua com um gesto lento e reprovador.
- É uma pena, senhor Fernando, uma verdadeira pena.
Depois afasta-se para iniciar a aula. Os colegas riem num escárnio acerado que fere o orgulho de Fernando.

A nota é miserável, a mais baixa que teve em todas as disciplinas. Fernando percorre as páginas sem encontrar correcções, uma ou outra vírgula, uma gralha evidente e nada mais. No final do texto está um comentário do professor.

"O senhor é sem dúvida dotado de uma finíssima inteligência, não há como negá-lo. O estilo refinado da sua escrita eleva a prosa e dá cor e alma a tudo o que trata. O senhor Fernando tem mão e cabeça de poeta, mas infelizmente deixa que seja a poesia a tomar conta de si, e não o contrário, como seria desejável.
O mundo, senhor Fernando, é para ser visto e entendido, não inventado."
A última frase ressoa imensa dentro de Fernando. sente-se a ponto de entender uma verdade, algo importante que lhe será claro assim que acalmar o espírito e a vertigem. O mundo não é para ser inventado, repete Fernando, o mundo é para ser visto e entendido.
A voz austera e grave do professor arremessa frases que os seus colegas ouvem como certas, hão-de guardá-las nos cérebros mansos nem que tenham de deitar fora outras que por lá andavam. Um dia vão repeti-las e multiplicá-las para que continuem a ser verdade, ouvidas e entendidas, nunca inventadas.

Como pode alguém domar a poesia? Um poeta é apenas um lugar por onde o poema passa. Se um escritor inventa mundos é porque há mundos que querem ser inventados.
A vertigem aumenta em vez de diminuir. Fernando teme uma nova febre ou uma apoplexia. Imagina as palavras a rebentarem dentro de si, derramando-as pelas entranhas e misturando-se no sangue. Palavras que saem de onde estavam e se perdem no corpo, fervendo, inchando, queimando. Como pássaros que não cabem.

A lição termina e os colegas levantam-se para sair. Ao passarem por ele, trocam alguns comentários em voz alta, para que os ouça e se sinta pior. Por fim, também ele se levanta e dirige-se em passo lento até à saída. Vai enjoado nos passos, mareado com tanto que acaba de entender. Aquela foi uma aula onde aprendeu muito, talvez a aula mais importante a que alguma vez assistiu.

Ao chegar à rua, levanta a cabeça e apercebe-se do ridículo de tudo. Do seu ridículo, do professor, dos colegas, da universidade onde o saber gira há séculos à procura de uma janela. Que inútil tanta pedra para guardar tão pouca coisa.

Nuno Camarneiro. (2013). "Lisboa", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.
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A palavra e o mundo - No meu peito não cabem pássaros (IV)

Um corpo sem peso que se escusa a pensar. A imponderabilidade dissolve hierarquias e ficam os pés iguais à cabeça e a dedos esticados. Um corpo que não tem peso não sente a terra nem os homens e entrega-se às correntes e ao tempo. O peso de um homem é âncora enterrada na realidade.
Os peixes e os pássaros não sabem cair e é por isso que guardam o mundo e o emprestam aos deuses que vão e vêm na cabeça dos graves. O deus de deus há-de ser um passarão que voa pelas coisas sérias.

Jorge está deitado num rio largo e fundo. A água fria sustém-lhe o corpo e enche-lhe os sentidos de um ardor vital, é tudo azul e fresco, tudo muito bonito. Para boiar nas águas, é fundamental deixar de ouvir, fechar os ouvidos por dentro e cair inteiro num silêncio líquido. É possível boiar na água sem água, basta encher-se de silêncio.

O Verão decorre sereno e igual, o sol alonga as horas e sobram dias inteiros em que nada tem de acontecer. Num quadro pendurado não passa o tempo porque nada muda, a beleza é uma arte de fugir ao tempo, de o confundir, de o tornar espaço e azul. Já em terra, Jorge embrulha-se numa toalha e encosta-se à família. Ninguém fala, estão concentrados no jornal, na renda e nos livros. Têm um modo de amar que prescinde de palavras, basta-lhes estar ali e saber que não estão sós. (...)

Pelo horizonte dissolvem-se planícies pintadas de erva. Faltam nomes para tantos tons de uma mesma cor e Jorge inventa-os: vesbellho, letusto, zafaio, lusvigo. Depois esquece-se a que pertencem, mas não têm importância.
As sombras das nuvens correm pela erva e essa é outra cor ainda, uma cor cor escura a correr. Que nome tem uma cor que foge? Jorge deita-se a observar as nuvens. É um jogo antigo, pegar no branco e moldá-lo com a imaginação até que ele seja um dragão, um monstro, uma sereia. Imagem, "imago, imitaginem." Quem foi o primeiro a fazer ideias com nuvens?

Um tigre passa-lhe por cma e é dourado como poucos. Leva um brilho novo e, ao desfazer-se, fica à vista uma bola amarela que não é daquele céu. Jorge fita a bola de luz até os olhos começarem a doer. é um sol de outros, pensa, uma luz que anda perdida. à memória chegam-lhe as histórias fantásticas lidas muitas vezes, mundos que acabam, viagens pelo espaço, seres longínquos capazes de destruir ou de criar. Aquele amarelo é cheio de possibilidades e não há nuvens que o possam voltar a esconder.

Nessa mesma noite, quando Jorge fecha os olhos para adormecer, a bola amarela espera-o brilhante. Foi a primeira vez que dormiu com uma luz acesa por dentro e passou a ser essa a cor da sua noite.

Nuno Camarneiro. (2013). "Rio Negro", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.