segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - A sabedoria dos livros

Os livros são perigosos porque são aceleradores e intensificadores da nossa experiência humana, abrem portas e janelas que nem sequer sabíamos que existiam, são surpreendentes encontros de vida. Ao mesmo tempo são cúmplices inesperados da nossa aventura humana. Cada um de nós é também os livros que leu, os autores que encontrou. Os livros são esse alargar de horizontes que permitiram aquele encontro mais secreto e profundo com a nossa voz. O ato da leitura é um ato de exposição, mesmo quando parece muito inocente acaba por ser uma aventura da qual nenhum de nós sai verdadeiramente igual à forma como entrou.


A minha primeira biblioteca foi a minha avó, analfabeta, mas sabia romances de cor e era um encanto escutá-la. O que formou a minha alma foi a leitura dos poemas, que é feita mais de intensidade e de fulgores. A poesia dá-nos mais espaço para o silêncio, é como um relâmpago a que se segue muita outra coisa, que é da construção do leitor. A oração diária do livro dos salmos foi música no meu ouvido. A leitura da poesia foi uma espécie de iniciação ao ato de ler. Penso que a poesia é uma ordem mendicante, os poetas são mendigos do real. Por vezes temos uma atitude de dominação sobre as coisas e os outros, mas se cairmos em nós percebemos que somos e sabemos pouco. A aceitação dessa escassez é fundamental para nos abeirarmos do mundo de outra forma.


Acontece pensarmos que o nosso tempo se destacou como uma jangada de pedra ou metafísica da história humana, e acreditamos que somos radicalmente outra coisa diferente do que os homens foram, do que gravaram na pedra, do que escreveram. E de repente, ao lermos textos antigos e contemporâneos, percebemos que estamos muito próximos dos nossos antepassados, que são, de certa forma, também os nossos sucessores.


Job, por exemplo, o homem do protesto, que não aceita as respostas fáceis em relação ao sofrimento, que desentende o sentido de o homem justo ter de penar neste mundo; e quer falar diretamente com Deus, e Deus aceita essa espécie de duelo verbal com Job. Com a forma como esse livro está escrito, a sua arquitetura, as suas palavras, a raiva, percebemos que estamos inteiramente ali, aquelas palavras são as que nós diríamos.


Não consigo separar a sabedoria do amor; a sabedoria é uma inteligência, uma ciência, uma arte, mas é tudo isso como uma forma de amar. Quando pensamos na grande sabedoria, pensamos naqueles que, vivendo a grande depuração que o tempo opera em cada um de nós, são capazes de conservar uma inocência, uma pureza, um afeto. É sempre necessária uma porção muito grande de amor para chegar à sabedoria.


S. Paulo, no momento da conversão, ficou cego para começar a ver. A cegueira é uma metáfora de uma outra visão. É necessário um apagamento, um corte. Quer a experiência da tradução quer a da criação literária nasce de um corte primordial, que é muitas vezes a contemplação do mundo, o espanto perante o real. Esse corte obriga-me a ver as coisas de outra forma. Há que apagar o modo imediato, comum, mais óbvio e aceitar a escuridão, aceitar que não vemos, só tateamos.


Jesus perguntava: «Como ousas dizer ao teu irmão: “Deixa-me tirar o argueiro da tua vista”, tendo tu uma trave na tua?». Este exercício de humildade em relação à vida é muito importante para o ato da criação. Por outro lado devemos perceber que na escuridão nós vemos. Em criança temíamos o escuro, e mais tarde aprendemos que no escuro vemos muitas coisas que nele se revelam. E aceitamos como preciosas essas coisas que percebemos dessa forma. Há que ensaiar novas visibilidades, novas formas de compreensão do mundo, sabendo que a sabedoria pede de nós uma fome e sede inesgotáveis. Comove-me muito que o professor Eduardo Lourenço esteja aqui a tomar notas na primeira fila. É essa curiosidade infinita pelo mundo e pelos outros que é sabedoria, que creio ser a mais elevada forma de amor.


A relação pedagógica é uma grande paixão. É muito interessante ver chegar uma geração de estudantes. Em Teologia tenho o privilegio de não ter turmas muito grandes, é possível acompanhar o percurso de cada aluno. Isto é para mim muito estimulante. O trabalho do professor é muito do semear. Há coisas que vemos mas o mais importante é, por vezes, o que não vemos. Isto aproxima-se muito de uma definição que gosto muito de amor: amar é não controlar o que o outro vai fazer do amor. Há testes e exames, e aí o professor pode avaliar, mas sabemos que os percursos mais fecundos aconteceram para lá dos resultados: foi uma marca, um estímulo, uma palavra, um despertar que depois se tornou uma âncora para a vida e fez a diferença. Aprendo muito com os estudantes, e o que me interessa é passar um método, uma paixão por um determinado assunto, porque sei daqui a 10 ou 20 anos eles falarão deles com outras palavras, citando outros autores, mas o entusiasmo será o mesmo.


Quanto mais inúteis são as coisas de que me ocupo, mais feliz me deixam.


"A sabedoria dos livros" - Encontro entre José Tolentino Mendonça e Frederico Lourenço, 

Festa do Livro. Jardins da Presidência da República, Lisboa, 2.9.2016

Imagem - Copyright: Gustav Adolph Hennig, Lesendes Mädchen, 1828

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - em nome da terra - (II)


O teu corpo. O amor do teu corpo e tudo o que é possível acumular para uma vida, esse resgate permanente da tua juventude, da tua perfeição que é a nossa identificação para pronunciar Terra ou Universo ou Deuses. É contigo, com a tua expressão de amor que em átomos de energia e sorrisos, de pele branca que nos encontramos na mais desnudada imaginação.
É a construção da nossa mortalidade, mas é mais do que apenas material. É feita de deslumbramento, de mistério e de impossível, pois a ternura só se formula nessa criação de doçura. Uma doçura capaz de em momentos de tempo mais lento permitir a nossa criação, entre a tua agilidade, o teu riso de nuvem, os teus cabelos soltos em caracóis, as tuas mãos de chuva, a tua vitalidade de mármore feita corpo transbordante de alegria.

E agora que sucumbo às feridas do tempo, em que tropeço nas minhas mãos gastas, com linhas de chuva escorrendo, como gotas de vidraças ensombradas de vento vejo as áleas da janela que resistem aos dias seguidos de rotina. Decoram o mais longe, com braços esguios nascidos em rugas que o tempo acastanhou e de onde flores de vento se erguem como pequenos jardins. E deste amor que se lembra, como amar-te agora em rugas de silêncio, no tempo do acontece, na essência da eternidade, acima da memória descalcificada. O sublime é sempre uma iluminação, ama-se com esse sentido de circunstância, a forma de escrever eternidade, como quando os astros se juntam numa galáxia de luz.

É o ponto inicial e final de consumir beleza, o fascínio encontrado nos teus olhos, o amor do qual não sabíamos sair, o mundo que não existe, as formas maciças de toda a expressão corporal, o fundamento da terra. E em casas, como árvores ouvíamos a folhagem, o silêncio do absoluto, os seres da terra, a sua música e talvez também Deus. E era para superar a nossa mortalidade e o seu poder, a sua omnipotente vaidade que nos amávamos até que perdemos o que era o amor, essa canção sem lobos.

E dos momentos em que partiste tornou-se impossível recuperar as formas e o movimento de como, de quanto te amei. As formas possíveis do que fomos, a nossa ontologia, como uma natureza viva que já não se recupera no desenho do teu rosto, pois já não sobra do real que vejo. O amor éramos nós nesses tempos de rio e bosques e com o universo fomos só uma forma de eternidade. O corpo que se transcende de angústia de tempo deu-nos essa totalidade de nós. O que farei desse sonho de nuvem?

Com as palavras de Vergílio ou o que elas me dizem. Vergílio Ferreira. (1990). em nome da terra. Imagem: © – Acompletelife.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - em nome da terra - (I)


E então disseste-me em alvoroço
- Vem ouvir!
E eu fui. Está aqui este louco a pregar, disseste ainda. Era uma voz rouca, inchada para baixo até às cavernas da profecia. "Porque vós estais todos enlameados na rotina animal e não quereis saber senão da gamela a horas, da canga a horas, do trabalho servil, e nem seque sabeis que existis.
- Que estação é esta? - perguntei. E tu disseste
- Não sei. Estava à procura da emissora e apareceu-me este pregador.
que existis. Todo o país está podre de estagnação, vós moveis um pé no lodaçal e ficais estoirados do esforço ao fim do dia. Mas nunca vos perguntais para quê, nunca vos perguntais o que isso quer dizer, nunca vos perguntais com que direito haveis de ser boi até ao fim da vida. Parai ó estúpidos, suspendei um momento esse vosso trabalho animal e perguntai-vos se é essa a vossa vontade, se num instante da vossa tarefa cavalar é isso com que sonhais para vosso prazer. Porque é que não fazeis aquilo que quereis? (...)

O que eu vos venho pregar é que vos perguntais para quê. O que tenho a dizer-vos é uma coisa elementar como a a água e o pão.   O que tenho a dizer-vos é se já vos perguntaste porque é que estais vivos, que é que fazeis da vida, porque é que amochais à vontade de outrem, porque é que alombais com um destino que não é o vosso. 

Tudo no universo tem um destino que é seu, vós nem sequer sabeis qual é o vosso porque antes de perguntardes já vos albardaram com um outro. O sol serve para aquecer, o mar para a navegação e o abastecimento piscícola, a pedra para fazerdes muros ou jogardes à pedrada - vós para que é que sois? Não vos trago mais uma doutrina política que já há de mais a apodrecer como a fruta excessiva, nem qualquer outra forma de serdes em rebanho nem que seja a de uma filarmónica. O que vos trago é apenas uma pergunta - porquê ou para quê. (...)

Estamos fora do tempo . Das idades. No susto de te desvaneceres. Tens os olhos cerrados mansos sobre ti para nada fugir de ti e eu ter-te toda no meu punho sangrento. E então soergo-me para que o meu imaginário se cumpra e se esgote. Perfeita inteira. Nenhuma linha se desvia pelo caminho da imperfeição. É a perfeição do embalo, a curva de um berço - e os seios. Fáceis leves como o teu corpo, mas não nascem dele. Seios de si mesmos, sem auréola, seios de puberdade. Tem já o desenho para a boca infantil de um dia, há-de haver essa boca quando entrares no tempo, na história corruptível da criação. Sem tempo agora, forma absoluta de uma geometria, que é a essência do incorruptível. Há um modo de o corpo ser, eles são esse modo. Integrados como a linha de um gesto. Ou uma flor. Ou uma pedra. Ou um cão. Integrados numa linha como um destino, que estupidez querer explicar o ser. Ou o azul. Ou uma cor que não existe e é a tua. Ou a harmonia do repouso da minha vida inteira aí.

Vergílio Ferreira. (2015). Em nome da Terra. Lisboa: Quetzal, páginas 155, 157 e 158

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - A noite abre os meus olhos (II)


Amo os que atravessam os campos
desamparados
mais do que se pode

Amo suas verdades:
algum ânimo, vitórias inúteis
um sentido impróprio para a inocência
nada ou quase nada diferente
do perigo

ninguém soube ao certo donde vinham
para encontrar uma vida
ou coisa mais pura ainda

entregues como este verão já no fim
às folhas secas
que voam

José Tolentino Mendonça. (2010). "Levada do Castelejo", in Baldios. Lisboa: Assírio & Alvim.
Imagem - Copyright - Vítor Caldeira.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - A noite abre os meus olhos (I)

«No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas

Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos

Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva

Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito

Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio

Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios

Isso foi antes
de aprender a álgebra» 


José Tolentino Mendonça,"A infância de Herberto Helder", in A noite abre meus olhos.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - A Ilíada - (II)

A palavra e o mundo tem-nos trazido durante alguns meses numa viagem pela literatura de viagens, e igualmente na descoberta de obras que nos conduzem pelo mundo com as as palavras, ou fazendo-as nascer nessas viagens. A Ilíada será um dos casos mais substantivos desta ideia de relação entre a palavra e o mundo. A Ilíada é na forma um conjunto de poemas, como a Odisseia também o foi. As duas obras, cuja data certa ignoramos forjaram o espírito grego nessa ideia de que a Poesia com os seus cantos era uma forma de educação de um povo, de uma cultura. As duas obras procuraram forjar uma ideia de educação, uma integração de comunidades humanas numa forma de sociedade.

Os dois poemas são os dois testemunhos literários mais antigos da civilização grega e a sua autoria é entregue a Homero num período que se pode situar entre os séculos IX e VIII a.C., com o progressivo domínio da escrita e estabelecimento das polis. As epopeias homéricas retratam em seus cantos, os costumes, as formas de vida das populações micénicas. Nelas vemos as famílias aristocratas e a sua fundação através de um herói. A guerra dos Aqueus contra Tróia é só um exemplo desta construção de um poder que se fundasse num herói, ou tivesse alguma ligação ao divino. Importa reter que estes poemas homéricos formaram a paidéia, a língua, as artes e a construção religiosa sublimada nos deuses do Olimpo. A formação educativa e ética dos Gregos passou por estes textos, tal como a sua ideia de um cidadão que se desejava justo e sábio.
As epopeias homéricas representam momentos distintos. A Ilíada é do tempo da guerra, dos heróis e a Odisseia, dos homens que já têm uma cidade a que se ligam, que fazem viagens, navegam pelo Mediterrâneo, alargam uma civilização. Na Ilíada, a figura central é o guerreiro. A sociedade e o comportamento dos homens não está voltado para a vida pública. Concentra-se, antes na guerra e nas suas atitudes face a ela. A figura do herói aparece sempre inserida numa batalha e é ela que determina as suas virtudes, como coragem, lealdade, ou espírito de luta. No herói o mais importante são a luta e a vitória e é da sua valentia que nasce o respeito de todos. Parecendo uma narrativa distante, o que nos diz A Ilíada aos nossos valores contemporâneos?

A Ilíada traz-nos Heitor e Aquiles, traz-nos a dor de que se reveste o mundo, a capacidade para a entender, no sentido que ela é inseparável da existência humana. A Ilíada é um poema que revela "uma cólera", uma luta por uma conquista, mas diz-nos mais do que isso. Diz-nos que é preciso entender o sofrimento humano e que não é possível pensar a vida, vivê-la e estar à sombra desse sofrimento. Os valores que importam podem obrigar a uma luta, onde ele entre nós e temos de o descodificar, de o compreender, de o materializar em nós.

A Ilíada é no fundo uma forma diversa protagonizada por Aquiles e Heitor sobre como responder a essa condição de sofrimento que está presente no mundo humano. Neles vemos uma luta entre uma defesa de algo, de valores, embora a cólera de Heitor seja mais compreensiva, pois está a lutar pelos outros. Aquiles compreenderá que a dor fica, mesmo quando vinga Pátroclo matando Heitor e apenas na restituição aos deuses tem um apaziguamento dessa dor. 

Aquiles tem no seu encontro com Príamo um conforto por esse sofrimento que viveu. Aquiles compreendeu que a vida tem custos e que qualquer batalha, mesmo com os valores de um herói pode significar uma perda. A vida não pode fugir a isso, ou nós nela. Na batalha de Tróia, os Gregos receberam a lição maior de um herói, Heitor pela defesa de uma cidade, de um conjunto de pessoas, o valor do altruísmo. Aquiles compreendeu que na natureza humana a ausência de sofrimento não é uma garantia, independentemente do ethos de quem combate. É por esta envolvência que A Ilíada é um texto intemporal, uma construção de mundos através das palavras de Homero.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - A Ilíada - (I)

Trecho do Canto VI - Heitor retorna ao palácio, na altura em que os troianos sofrem perdas com os ataques dos gregos. Ele encontra então Andrômaca e seu filho, na muralha:

Assim falando, partiu Heitor do elmo faiscante;
e depressa chegou ao seu palácio bem construído.
Não encontrou na grande sala Andrômoca de alvos braços:
é que ela, o filho e uma criada bem vestida tinham se
posicionado na muralha, chorando e lamentando-se.
Quando Heitor não encontrou a esposa irrepreensível,
foi até a soleira e assim falou no meio das servas:

“Agora, ó servas, dizei-me a verdade: em que direção
saiu Andrômaca de alvos braços do palácio? Será que foi
à casa das minhas irmãs ou das minhas cunhadas de belas vestes?
Ou terá ido ao templo de Atena, onde as outras
Troianas de belas tranças propiciam a deusa terrível?”

A ele deu resposta a atarefada governanta:
“Heitor, uma vez que ordenas que se diga a verdade,
não foi à casa das tuas irmãs nem cunhadas de belas vestes,
nem foi ao templo de Atena, onde as outras
Troianas de belas tranças propiciam a deusa terrível;
mas foi para a grande muralha de Ílion, porque ouviu dizer estarem
os Troianos acabrunhados, sendo grande a força dos Aqueus.
Ela dirigiu-se logo à muralha, muito apressada e igual
a uma tresloucada. Com ela foi a ama com a criança.”

Assim falou a mulher governanta. Heitor saiu às pressas

de casa, e percorreu o mesmo caminho pelas ruas bem construídas.
Quando, tendo atravessado a grande cidadela, chegou
às Portas Esqueias, através das quais ia a sair para a planície,
eis que correu ao seu encontro a esposa generosa,
Andrômaca, filha do magnânimo Eécion –
Eécion, que habitava sob a arborizada Placo,
em Tebas Hipoplácia, onde regia os Cilícios:
e era a sua filha que desposara Heitor armado de bronze.

Ela veio ao seu encontro, e com ela vinha a criada

segurando ao colo o brando menino tão pequeno,
filho amado de Heitor, semelhante a uma linda estrela,
a quem Heitor chamava Escamândrio, embora os outros
lhe chamassem Astíanax; pois só Heitor era baluarte de Ílion.
Sorriu Heitor, olhando em silêncio para o seu filho.
Mas Andrômaca aproximou-se dele com lágrimas nos olhos
e, acariciando-o com a mão, chamou-lhe pelo nome:

“Homem maravilhoso, é a tua coragem que te matará!

Nem te compadeces desta criança pequena nem de mim,
desafortunada, que depressa serei a tua viúva.
Pois rapidamente todos os Aqueus se lançarão contra ti
e te matarão. Mas para mim seria melhor descer para debaixo
da terra, se de ti ficar privada. Nunca para mim haverá
outra consolação, quando tu encontrares o teu destino,
mas só sofrimentos. Já não tenho pai nem excelsa mãe:
meu pai foi morto pelo divino Aquiles,
que arrasou a cidadela bem habitada dos Cilícios,
Tebas de altos portões. Assassinou Eécion, porém não
o despojou das armas, por respeito a seu espírito;
mas cremou-o vestido com a rica armadura,
e por cima fez um túmulo: ao redor plantaram ulmeiros
as ninfas da montanha, filhas de Zeus detentor da égide.
Quanto aos sete irmãos que eu tinha no palácio,
todos eles num só dia desceram à mansão de Hades:
matou-os a todos o divino Aquiles de pés velozes,
no meio do gado de passo cambaleante e das brancas ovelhas.
E minha mãe, que foi rainha debaixo da arborizada Placo,
para cá ele a trouxe com o resto dos despojos,
mas depois libertou-a, tendo recebido incontável resgate;
no palácio de seu pai foi abatida por Ártemis, a arqueira.
Heitor, tu para mim és pai e excelsa mãe; és irmão
e és para mim o vigoroso companheiro do meu leito.
Mas agora compadece-te e fica aqui na muralha,
para não fazeres órfão o teu filho e viúva a tua mulher.
Quanto à hoste, posiciona-a perto da oliveira brava,
donde a cidade pode ser melhor escalada e a muralha está
exposta ao assalto. Já três vezes naquele sítio os mais valentes
experimentaram o assalto, na companhia dos dois Ajantes,
do glorioso Idomene e dos Atridas e do valoroso filho de Tideu.
Será porque um bom conhecedor de auspícios os avisou,
ou porque o próprio espírito os incitou e impeliu a fazê-los.”

A ela respondeu em seguida o alto Heitor do elmo faiscante:

“Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu me
envergonharia dos Troianos e das Troianas de longos vestidos,
se tal como um covarde me mantivesse longe da guerra.
Nem meu coração a tal consentiria, pois aprendi a ser sempre
corajoso e a combater entre os dianteiros dos Troianos,
esforçando-me pelo grande renome de meu pai e pelo meu.
Pois isto eu bem sei no espírito e no coração:
virá o dia em que será destruída a sacra Ílion,
assim como Príamo e o povo de Príamo da lança de freixo.
Mas não é tanto o sofrimento futuro dos Troianos que me importa,
nem da própria Hécuba, nem do rei Príamo,
nem dos meus irmãos, que muitos e valentes tombarão
na poeira devido à violência de homens inimigos –
muito mais me importa o teu sofrimento, quando em lágrimas
fores levada por um dos Aqueus vestidos de bronze,
privada da liberdade que vives no dia a dia:
em Argos tecerás ao tear, às ordens de outra mulher;
ou então, contrariada, levarás água da Messeida ou da Hipereia,
pois uma forte necessidade terá se abatido sobre ti.
E alguém assim falará, ao ver as tuas lágrimas:
‘Esta é a mulher de Heitor, que dos Troianos domadores de cavalos
era o melhor guerreiro, quando se combatia em torno de Ílion.’
Assim falará alguém. E a ti sobrevirá outra vez uma dor renovada,
pela falta que te fará um marido como eu para afastar a escravatura.
Mas que a terra amontoada em cima do meu cadáver me esconda,
antes que ouça os teus gritos quando te arrastarem para o cativeiro.”

Assim falando, o glorioso Heitor foi para abraçar o seu filho,

mas o menino voltou para o regaço da ama de bela cintura
gritando em voz alta, assarapantado pelo aspecto de seu pai amado
e assustado por causa do bronze e da crista de crinas de cavalo,
que se agitava de modo medonho da parte de cima do elmo.
Então se riram o pai amado e a excelsa mãe:
e logo da cabeça tirou o elmo o glorioso Heitor,
e deitou-o, todo ele coruscante, no chão da casa.
Em seguida beijoou e abraçou o seu filho amado
e a Zeus e aos outros deuses dirigiu esta oração:

“Ó Zeus e demais deuses, concedei-me que este meu filho

venha a ser como eu, o melhor entre os Troianos; que seja tão
ilustre pela força e que pela autoridade seja rei de Ílion.
Que no futuro alguém diga ‘este é muito melhor que o pai’,
ao regressar da guerra. Que traga os despojos sangrentos
do inimigo que matou e que exulte o coração da sua mãe!”

Assim dizendo, nos braços da esposa amada pôs o filho.

Ela recebeu-o no colo perfumado, sorrindo entre as lágrimas.
Mas ao aperceber-se de como ela reagia, o marido sentiu pena;
e acariciando-a com a mão, chamou-lhe pelo nome:

“Mulher maravilhosa, não me entristeças demasiado o coração.

Nenhum homem além do destino me precipitará no Hades;
porém digo-te não existir homem algum que à morte tenha fugido,
nem o covarde, nem o valente, uma vez que tenha nascido.
Agora volta para os teus aposentos e presta atenção
aos teus louvores, ao tear e à roca; e ordena às tuas servas
que façam os seus trabalhos. Pois a guerra é aos homens
todos que compete, quantos vivem em Ílion; a mim sobretudo.”

Assim falando, o glorioso Heitor pegou no elmo

com crinas de cavalo. Sua esposa amada regressou para casa,
voltando-se muitas vezes para trás, em choro abundante.
Em seguida chegou depressa à casa bem construída
de Heitor matador de homens; lá dentro encontrou
muitas servas e no meio de todas elas ergueu o lamento.
Elas choravam Heitor, ainda vivo, na casa dele:
pois pensavam que ela já não voltaria da guerra,
tendo escapado à força e às mãos dos Aqueus.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - Carta ao futuro - (II)


O que era o País e o mundo em 1957? À exceção de Sophia e de Jorge de Sena, o País era na década seguinte ao fim da 2ª Grande Guerra a manipulação cinzenta de uma fantasia de crianças. O Mundo após o terror alemão conduzido pelos nazis emergia no que alguns consideravam o homem novo, os amanhãs que cantariam.

Em fins da década de cinquenta o País e o mundo eram a mais profunda sonolência, uma anestesia de vontade por algo que significasse decência e humanidade. É desse ano que Vergílio Ferreira escreve um livro que devia figurar nas estantes de qualquer pessoa com sonhos de compreender a vida e ter nela um papel substantivo.

Vergílio tornou-se mais conhecido. Um pouco mais. Não muito mais. Pois ainda é possível ouvir doutores da formalidade invocar a sabedoria de sebentas, onde palavras comuns desenham gramáticas de compreensão pouco empenhadas nesse sentido que  foi a sua escrita. A da justamente invocar a nossa verdade emotiva, aquela que nos faz apreender o mundo, por cima de códigos ideológicos, ou de confissões do nada. Vale a pena lê-lo. Ele foi um percursor da substância que mora em nós, um leitor da brevidade e da magia de estar vivo.

Muitas vezes desdobramos palavras de quem gostamos ou que nos dizem algo pela sua relevância curricular, pela sua ligação a um património cultural e civilizacional. Com Vergílio Ferreira, escritor do mês na Biblioteca em janeiro aprendemos muito. Aprendemos palavras, ideias, formas de pensar a vida e a existência. Aprendemos com os alunos formas de pensar possibilidades de criar no real a nossa própria forma de sermos humanos. Partindo com o receio de não o saber apresentar pela sua dimensão complexa ficou-nos a satisfação de termos com os alunos e alguns professores dado a conhecer um homem essencial da cultura portuguesa e europeia do século XX.

Com Vergílio Ferreira aprendemos a difícil ética de sermos humanos, compreendemos a necessidade absoluta de olhar o mundo através de um sentimento estético, que apenas a arte nos permite obter. Com Vergílio percebemos que a leitura do mundo faz-se pela nossa emotividade, a quilo que nos faz ter sentido, "a verdade humana" que nos orienta. É no nosso diálogo com uma dimensão estética da vida que o mais essencial de nós se afirma. Nos cem anos do seu aniversário percebamos tão grande lição dada quando muitos gritavam revoluções e impérios universais. Obrigado amigo!

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - Carta ao futuro (I)


"O sentimento estético da vida não é exclusivo das obras de arte. Nós o sabemos das horas silenciosas em que a sua face se adivinha e não há ainda uma obra de arte a traduzi-la. a integrá-la numa manifestação. Assim nos não é possível imaginar um mundo sem arte, por mais que admitamos o esgotamento das formas que herdámos, por mais que admitamos que a arte terá de ser inventada de novo através de formas que mal ainda vislumbramos.
Mas ainda que fosse possível imaginar um mundo sem arte, sem obras que o exprimissem, jamais seria imaginável um mundo estendido fora do sentimento estético, fora da qualidade emotiva que no-lo explica à nossa relação humana com ele.
Porque é dentro da emotividade que o mundo tem sentido, e a verdade humana, e a orientação fundamental de tudo o que nos orienta. Porque o sentimento estético é uma comunicação original com a essencialidade da vida - como esta que se abre na voz obscura da chuva que dura ainda.
Eu a ouço, eu a ouço, desde os confins da memória, balançando na rua a solidão dos espaços. Eu a escuto na vidraça como um apelo clandestino para um encontro de outrora. Que a água de pureza que te trespasse, e seja tu, rememore a água obscura do nosso horizonte - e a vida se continuará, una, indestrutível, igual e sem margens, como é igual na sua total presença, a vertigem da noite e a iluminação do dia.
Saúde, amigo.

 Vergílio Ferreira. (2010). Carta ao Futuro. Lisboa; Quetzal, páginas. 101 e 102