quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - Marco Polo e Kublai Kan - As cidades invisíveis (IX)


Kublai Kan apercebeu-se de que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a paisagem de uma para a outra não implicasse uma viagem mas sim uma troca de elementos. Agora, de todas as cidades que Marco lhe descrevia, a mente do Grão Kan partia por sua conta e risco, e desmontada a cidade peça por peça, reconstruía-a de outro modo, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os. Marco entretanto continuava a informá-lo da sua viagem. mas o imperador já não o ouvia, interrompia-o:
   - De agora em diante serei eu a descrever as cidades e tu verificarás se existem e se são como eu as pensei. Começarei por perguntar-te de uma cidade em degraus, exposta ao siroco, sobre um golfo em meia-lua. Vou falar de algumas das maravilhas que contém: uma piscina de vidro da altura de uma catedral para seguir o nadar e o voar dos peixes-andorinhas e deles extrair auspícios; uma palmeira que com as folhas ao vento toca harpa; uma praça tendo à sua volta uma mesa de mármore em ferradura, com a toalha também de mármore, posta com comidas e bebidas todas de mármore.
   -Sire, estavas distraído. Estava precisamente a falar-te dessa cidade quando me interrompeste.
   - Conhece-la? Onde é? Qual é o seu nome?
   Não tem nome nem lugar. Repito-te a razão por que a descobri: do número das cidades imagináveis temos de excluir aquelas cujos elementos se somam sem um fio condutor que os ligue, sem uma regra interna, uma perspetiva, um discurso. São cidades como sonhos: todo o imaginável pode ser sonhado mas também o sonho mais inesperado é um enigma que oculta um desejo, ou o seu contrário, um terror. As cidades como os sonhos são construídos de desejos e de medos, embora o fio do seu discurso seja secreto, as suas regras absurdas, as perspetivas enganosas, e todas as coisas escondam outras.
   - Eu não tenho desejos nem terrores - declarou o Kan -, e os meus sonhos são compostos ou pela mente ou pelo acaso.
   - Até as cidades julgam ser obra da mente ou do acaso, mas nem uma nem outro bastam para suster as suas muralhas. DE uma cidade não desfrutas as sete ou as setenta e sete maravilhas, mas sim a resposta que dá a uma tua pergunta.
   - Ou a pergunta que te faz obrigando-te a responder, como Tebas pela boca da Esfinge.

Italo Calvino. (2011). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal, páginas 53 e 54.
Imagens - Copyright: Josh Dorman

A palavra e o mundo - Breviário Mediterrânico (II)

A filologia do mar- rico de inteligência e de poesia, no que mistura de rigor e de temeridade, (...) de precisão científica e de epifania do infinito. 

A viagem, a descoberta de novos espaços iniciou a construção do que somos como civilização. A nossa identidade forjou-se nos espaços azuis do céu, nas gotas de sal que emergem das ondas, nos portos e faróis onde nos abrigámos. Nesta iniciação ao mundo onde se erigiram descobertas e saberes, sabores, alimentos e perfumes, a Europa nasceu e por ela expandiu formas culturais ao mundo. 

Dos mares, às rotas terrestres, da mareia às fortalezas marítimas, foi a viagem pelo mar que nos fez culturalmente, como civilização. Este mar no qual nascemos para o conhecimento do mundo, por onde contactámos a história romana com a explosão grega, o desafio árabe e a afirmação europeia é o Mediterrâneo.
 
Predrag Matvejevitch descreveu em Breviário Mediterrânico, a luz solar, o perfume das laranjeiras, o vento silvestre no olival, onde as azeitonas e o sal fermentam os dias. Com ele aprendemos, o que sentimos nas cidades onde o mar fez soprar o seu encanto por onde perdemos a voz com as sereias. Se a viagem nos fez descobrir o que somos,o mar, com os seus rios interiores e exteriores deu-nos a alegria de redescobrir outras paisagens, outras formas de ser. 

O Mediterrâneo é esse caminho estrelar por onde o sol e a luz abrem formas particulares de organização social e económica. O Mediterrâneo, tal como a viagem, a navegação constrói-se na lenda, na geografia, no perfume alto dos pinheiros, nas encostas de figueiras onde já prenunciam as areias do deserto e nas cidades que reflectem as suas aventuras. Todas as palavras são instrumento e memória da linguagem precisa e enérgica que é o milagre do mar. Dando consistência ao particular, juntando no quotidiano as formas imaginativas da civilização. É um pequeno grande livro que constrói uma epifania de uma geografia e que completa de modo poético o livro, O Mediterrâneo de Fernand Braudel.
Imagem - Salento, na zona mais meridional da Itália Copyright - The Thinking Traveller

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - O nome - As cidades invisíveis (VIII)


Há um planalto que faz anunciar uma cidade. Subindo da encosta sul chegamos a ele e do de uma das suas margens avistamos uma cidade que se destaca pelas suas luzes. Irene é uma cidade que se apresenta às horas em que as primeiras iluminações se acendem, quando as habitações de fundo rosa se avistam do planalto. A cidade está rodeada de elementos, de sombras e em noites estreladas Irene é uma cidade como uma clarão que se anuncia na distância.
O planalto que nos faz chegar a Irene é utilizado por pastores, caçadores de pássaros e eremitas. todos falam de Irene, a cidade que se anuncia como uma visão do planalto.
Os que frequentam planalto ouvem muitos sons, uns de paz e outros de guerra, uns iluminados, outros de sombras por desvendar. Este viajantes perguntam-se o que se passará na cidade, se visitar Irene nesse dia pode ser bom ou não. Perguntam-se não por quererem ir a Irene, pois os seus acessos são precários, mas porque lá a cidade magnetiza os que olham e os que pensam dos que estão fora, dos que estão na orla do planalto.
Kublai Kan aguarda a chegada de Marco Polo. Kublai Kan pretende saber como será Irene vista do seu interior. Marco não pode aceder ao pedido de Kublai Kan. A cidade destes viajantes, essa cidade que eles chamam Irene não é reconhecida por ela mesma. Mas isso que parecia importante não o é, pois Irene é apenas o nome de uma cidade observada de fora, de longe, do planalto. quando se entra nessa cidade o seu nome muda.
Afinal a cidade observada de longe, aquela em que não se entra é uma, sendo uma outra quando se é conquistado pelas suas casas, pelas suas ruas. Uma cidade a que se chega é uma cidade diferente quando se parte, ou aquela a que nunca mais se volta. Em cada forma de olhar uma cidade, há uma cidade diferente, uma cidade invisível, ou talvez os nomes dessas cidades invisíveis sejam as que conhecemos um dia sob o nome de Irene.

A partir da leitura de Italo Calvino. (2011). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal.
Imagens - Copyright: Collen Corradi

A palavra e o mundo - Breviário Mediterrânico (I)


 Não sabemos ao certo até onde vai o Mediterrâneo, nem que parte do litoral ocupa, nem onde acaba, tanto em terra como no mar. Para os Gregos, de leste para oeste, estendia-se do Fásis, no Cáucaso, até às colunas de Hércules; consideravam implícita a sua fronteira natural a norte e às vezes não se preocupavam com os seus limites a sul. 
Os sábios da Antiguidade ensinavam que os confins do Mediterrâneo se situam onde a oliveira se detém. Nem sempre, nem em toda a parte é assim: há lugares na costa que não são marítimos, ou que o são menos que outros, mais afastados dela. 
Há lugares em que o continente não se alia ao mar, em que se revela difícil a concordância entre eles. Noutros pontos, o carácter mediterrânico abrange mais vastas porções do continente, penetra-as mais com a sua influência. O Mediterrâneo não é apenas uma geografia

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - As trocas - As cidades invisíveis (VII)


Eufémia encontra-se no fim de uma planície de vento. Vêmo-la depois de  o vento mistral nos encaminhar a um porto de mar. Eufémia é uma cidade que reúne nações diversas, as de cada solstício e de cada equinócio. Eufémia é uma cidade portuária. A ela chegam navios com cargas diversas. Gengibre e algodão, sementes de papoila e sacos de noz-moscada passam pelos porões dos barcos que aportam a Eufémia.

Estes homens de diferentes equinócios e solstícios percorrem distâncias, sobem rios, atravessam desertos para encontrar as mercadorias que em todos os bazares do Grão Kan existem. O que tem Eufémia então para oferecer que desperte os povos de tantas e diversas latitudes?

Não é o comércio que atrai povos a Eufémia, mas sim o encontro junto das fogueiras que inundam o seu mercado e sobretudo a possibilidade de encontrar palavras. De cada palavra, "lobo", "irmã", "amor", cada um encontra uma história, a sua narrativa pessoal para dar substância e cor a cada uma dessas palavras.

Os mercadores reunidos junto do fogo em Eufémia sabem que em cada viagem, em cada sopro do vento, em cada deserto atravessado, as nossas memórias transformam essas palavras em realidades. Como se falando de um lobo, aquele que é nosso se pudesse transformar noutro. Como se falando de uma irmã, dessa palavra e dessa memória reconstruida nascesse outra irmã. Como se, da batalha da nossa vida fosse possível nascer outra batalha, uma cidade invisível feita por nós. Eufémia é uma cidade de trocas, mas é antes disso uma cidade de memórias. As nossas.

A partir da leitura de Italo Calvino. (2011). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal.
Imagens - Copyright: Collen Corradi

A palavra e o mundo - Viagens (II)


"... nem cristão, , nem pagão,  sarraceno ou tártaro, nem nenhum homem de nenhuma geração viu, nem explorou tantas maravilhosas coisas do mundo, como o fez o senhor Marco Polo..."

 Viagens de Marco Polo narrados por Rusticiano de Pisa, que fez a compilação desta aventura é um dos grandes livros da História Universal.  Chamado Livro das Maravilhas conta-nos uma viagem ao interior da Ásia mais remota. Conduzidos pela ideia da descoberta e de encontrar formas de apoiar o comércio de Veneza no Mediterrâneo oriental chegaram a locais tão distantes como o Mar Negro, a Mongólia ou a China. Contactaram a Pérsia e a Arménia chegando à presença do Grande Khan, imperador chinês. Este confiando em Marco Polo confiou-lhe missões diplomáticas em terras distantes. Marco Polo foi o primeiro ocidental a chegar tão longe e a ter uma proximidade tão íntima com extensas áreas do Oriente.

Marco Polo regressaria a Veneza. Foi numa  batalha naval entre Génova e Veneza que Marco Polo conheceria uma importante figura de Pisa, Rusticiano que compilaria as narrativas de viagem de Marco Polo sob o nome Il Milione que se traduziu num enorme sucesso. A edição francesa dar-lhe ia o nome Le Divisiament du monde (A Descoberta do Mundo) ou Livre des Merveilles (Livro das Maravilhas). A importância do livro para a época é significativo pela amostra de paisagens humanas e civilizacionais que mostra. O livro tem a grandeza de ser escrito numa abordagem quase antropológica de relato do que se observa, da diversidade humana. Não se encontram condenações morais ou religiosas, pelo que é uma rica fonte de conhecimento do Oriente no final do século XIII.

O livro foi um sucesso pelo público a que procurava chegar, mercadores e cortes, missionários e geógrafos. Ainda o é, pela experiência que foi, pelo itinerário que nos permite conhecer e que certamente justificaria um conjunto diverso de publicações no blog, mas também pelo imaginário literário que criou. Italo Calvino criou um livro maravilhoso a que temos dado uma particular atenção, onde colocou justamente Marco Polo e Hublai Khan a falar sobre as cidades invisíveis de famosos reinos. Livro das Maravilhas de Marco Polo faz-nos lembrar uma outra viagem, a de Fernão Mendes Pinto e a sua Peregrinação.É desconcertante a diferença, pela partida com diferente motivação e de resultados também diversos. Dois séculos depois a Ásia e os homens parecem ter mudado para um sentido mais violento. 

Livro das Maravilhas é ainda uma grande livro pela lição civilizacional que nos oferece para os tempos de hoje. A sua mensagem de tolerância e curiosidade pelo mundo é ainda algo que devemos valorizar. Maravilhas do Mundo é ainda e talvez isso seja o mais importante, uma clara confiança no homem como construtor de cidades, de civilizações de trocas, de memórias, de sinais, de nomes, onde se reconhecem formas multiculculturais do viver humano.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - A subtileza - As cidades invisíveis (VI)

Zenóbia é uma cidade admirável. Está situada em terreno seco, mas surge erguida sobre grandes palafitas. As casas são de bambu e zinco e nelas se encontram muitas varandas de diferentes alturas. As casas em Zenóbia sobrepõem-se umas às outras e ligam-se por escadas e passeios que se encontram suspensos. O que terá conduzido os seus habitantes a dar esta forma à cidade de Zenóbia? Não se sabe a origem desta opção, desta face da cidade assim construída. Ninguém na cidade o sabe explicar. E, no entanto, pedida a descrição de uma cidade feliz, capaz de dar aos seus habitantes alguma felicidade eles sentem que a cidade só poderia ser assim, com as suas palafitas e com as suas escadas suspensas. Poderia ser uma cidade diferente, mas sempre com esta ideia original de casas suspensas. Poderíamos dizer que Zenóbia é uma cidade feliz? Não é correta esta divisão, entre felicidade e infelicidade. Mas antes, entre as cidades que se prolongam pelos anos e pelas suas próprias transformações no caminho para dar forma aos desejos dos seus habitantes e as outras cidades. Aquelas em que "os desejos ou conseguem aniquilar a cidade ou são elas aniquiladas". É essa a subtileza, a de procurar a concretização do sonho.

A partir da leitura de Italo Calvino. (2011). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal.
Imagens - Copyright: Collen Corradi

A palavra e o mundo - Os sinais - As cidades invisíveis (V)


O Homem está só. Caminha pelo natural e só raramente vê sinais de algo, como a pegada de um tigre, um fio de água, uma flor de hibisco. O mundo não se revela, apenas existe. No eixo do olhar mais distante surge uma cidade. Chama-se Tamara. A cidade anuncia-se em palavras, instruções em paredes, como notas informativas. Mas o visitante não se apercebe de nenhuma coisa, apenas encontra imagens de outras coisas que têm outros significados. Em cada objeto há uma imagem, são as imagens a dar significado às coisas.

O quotidiano social é ilustrado por estas imagens, possibilidades e proibições. Os templos estão ornamentados por deuses, onde se encontram os seus atributos. Um Deus é reconhecido para que o fiel não se engane na sua divindade. Nesta cidade a arquitetura concebe uma ordem, uma função aos espaços. Tudo em Tamara vale pela função, pelos sinais encontrados em objetos, em espaços. São eles a construir os sinais das coisas e é com o olhar que o viajante vê a cidade como um livro de páginas decifradas.

Tamara constrói um sentido à vida dos seus habitantes, diz-lhes o que pensar, o que é permitido, o que é proibido. Tamara é uma repetição de gestos e cada um dos nossos nomes é já uma repetição com que a cidade se define a si própria. O viajante não existe em Tamara. Fora dela é o vazio, dentro dela é "um invólucro de sinais", o que ela deixa compreender. Um viajante que saia de Tamara e encontre nas nuvens os desenhos dos objetos, o real feito uma casa, um veleiro, um animal não saberá que deixou a cidade que se fixa fora do horizonte.

A partir da leitura de Italo Calvino. (2011). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal.
Imagens - Copyright: Collen Corradi

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - O desejo - As cidades invisíveis (IV)


Anastásia é uma cidade banhada por canais e por onde voam papagaios de papel. É uma cidade de mercadorias e mercadores, de sabores e fragâncias.

Em Anastásia sentimos o orégão, as cerejeiras em flor e vemos lindas mulheres banhando-se em piscinas rodeadas de jardins. Anástasia é uma cidade de desejos, onde todos eles nos inundam de uma só vez.

É por eles que vemos a cidade como um todo e só por eles que a podemos compreender. Mas Anastásia é uma cidade enganadora. Ela impõe aos seus habitantes um trabalho duro. É no encantamento da cidade que ela escraviza os seus habitantes, nas longas horas de trabalho que perfuma o desejo que brevemente alguns podem ter.

A partir da leitura de Italo Calvino. (2011). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal.
Imagens - Copyright: Collen Corradi

A palavra e o mundo - Viagens (I)


O senhor Nicolau e o senhor Mateus e Marco, filho do senhor Nicolau, caminharam tanto que chegaram junto do Grande Cã, numa cidade chamada Chemenfu, muito rica e grande. aquilo que encontraram no caminho não se conta agora, pelo que se contará mais tarde. Demoraram três anos a percorrê-lo devido ao mau tempo e aos rios, que transbordavam, quer de Inverno quer de Verão, e, por isso, não podiam cavalgar. quando o Grande Cã soube que os dois irmãos vinham, ficou muito satisfeito e mandou os mensageiros ao seu encontro quando faltavam ainda quarenta dias de viagem; e foram muito obsequiados e venerados.

Quando os dois irmãos e Marco chegaram à grande cidade, foram ao palácio real, onde estava o Grande Cã com muitos fidalgos e ajoelharam-se diante dele, cumprimentando-o com a máxima reverência. Ele mandou-os levantar e mostrou muita alegria, e perguntou quem era aquele jovem que estava com eles.

O senhor Nicolau disse: "Ele é vosso homem e meu filho". O Grande Cã disse: "Que ele seja bem-vindo, dá-me muito prazer". Entregues as cartas e privilégios que traziam do Papa, o Grande Cã ficou muito satisfeito, e perguntou como tudo lhes tinha corrido. "Senhor, bem, já que o encontrámos em esplêndido estado de saúde". Aqui houve uma grande alegria pela sua vinda e durante todo o tempo que permaneceream na corte tiveram maiores honras que qualquer outro barão. 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - A memória - As cidades invisíveis (III)


Zora é uma cidade que se instala na memória. Surge-nos após um conjunto de cadeias montanhosas. Zora fica-nos na memória, não como outras cidades, como imagem, mas numa recordação de cada um dos seus pontos, das suas ruas, das suas casas. Zora não é especialmente bonita, mas a nossa memória permanece nas suas ruas, nos seus muros.
Há em Zora um modo como a nossa vista percorre as imagens, as figuras erigidas, como se fossem um desenho musical, uma coerência que não podemos mudar. Zora encaminha uma memória como um quadrado geométrico, onde os seus habitantes, os seus objetos, os seus sonhos se perfilam como uma constelação. Zora constrói um elo de pontos que nos dá uma memória viva da cidade.
Zora não se apaga da nossa mente. A memória de Zora faz-se de uma armadura, onde podemos ir procurar caixas, ou outros objetos, onde podemos lembrar homens famosos, virtudes, números, material vegetal ou mineral.
Os homens que a conhecem são homens sábios, são homens que guardam a memória. Quando me propus visitar Zora ela desapareceu, pois obrigada a ficar imóvel ela definhou, estagnou e desapareceu.
Zora tornou-se a terra esquecida.

A partir da leitura de Italo Calvino. (2011). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal.
Imagens - Copyright: Collen Corradi

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - As cidades invisíveis (II)


"(...) quem ouve só fixa as palavras que deseja (...) Quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido" (pág. 142)

Em As cidades invisíveis, Italo Calvino revela-nos como a cidade se constrói, se delimita, se habita com o seu nome, com a morte, com os espaços celestes, com a respiração de um tempo infinito. As cidades ocultas, as que apenas se pressentem e as que indiferentemente conhecemos, as que estão em toda a parte. E que gestos, que modos fazem transformar a cidade, os seus espaços, a sua transfiguração, de modo a que ela seja "cristalina, transparente como uma libélula"(pág. 165). A cidade dos enraízados e a dos que viajam, dos que sonham, dos que ambicionam o sonho da errância, como se revivem, como se libertam? E não é cada cidade uma junção de todas as que nela viveram, ousaram ser um espaço acima de qualquer tempo?

As cidades invisíveis dá-nos ainda um diálogo fascinante entre Marco Polo e Kublai Kan, o imperador dos Tártaros e remete-nos para as possibilidades da construção do Império,  de qualquer um. O que pode o viajante Marco Polo explicar ao Imperador pelas suas viagens, as suas descrições. As palavras, o pensamento, a memória, o desejo de Marco Polo permitirá a Kublai Kan compreender a filigrana que organiza a cidade? A viagem de Marco Polo ou o Império de Kublai Kan são apenas o reconhecimento do pouco que a sua vida terá, que a nossa vida terá, no sonho do tanto inconcebível de concretizar, das cidades fixadas em palavras, ou perdidas em fórmulas inverosímeis.

No fim, pode ser traçada uma ordem invisível que governe as cidades, que nos faça compreender a sua orgânica como organismo vivo? O  real, a materialidade do império reduzido à sua essência, conduz-nos a um intrigante nada. A inútil concretização do nada, nas ruínas dos conquistadores.

Na inútil tentativa de encontrar a cidade descontinuada no espaço e no tempo, encontrá-la significa que no desconcerto da vida, precisamos saber reconhecer a força bela que a poderá fazer renascer, o que de melhor pode viver em nós. É a cidade invisível que vive acima do que é visível, do que não vemos, das ruínas do tempo. A cidade invisível também como formulação de uma esperança, a energia para uma libertação, a que permite construir caminhos novos, o progresso civilizacional que alguns sonham e que importa reconstruir em cada geração.

Italo Calvino.(2012). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal, pág. 142
Imagem, "Ciutat", Tomasz Pietryk

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - As cidades invisíveis (I)

…  Recém-chegado e ignorando completamente as línguas do Levante, Marco Polo não podia exprimir-se de outro modo que não fosse retirando objectos das suas malas: tambores, peixes salgados, colares de dentes de facóquero, e indicando-os com gestos, saltos, gritos de espanto ou de horror, ou imitando o latido do chacal e o piar da coruja. (…)

Mas o que tornava preciosos a Kublai todos os factos ou notícias referidos pelo seu inarticulado informador era o espaço que ficava à volta deles, um vazio não preenchido por palavras. As descrições   das cidades visitadas por Marco Polo tinham esse dom: podia andar-se por elas com o pensamento, nelas podíamos perder-nos, para apanhar fresco, ou fugir a correr. Com o passar do tempo, nos relatos de Marco as palavras foram substituindo os objectos e os gestos: primeiro exclamações, nomes isolados, áridos verbos, depois pedaços de frase, discursos ramificados e frondosos, metáforas e hipérboles. (…)


Kublai Kan apercebera-se de que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a paisagem de uma para a outra não implicasse uma viagem mas sim uma troca de elementos. Agora, de todas as cidades que Marco lhe descrevia, a mente do Grão Kan partia por sua conta e risco, e desmontada a cidade peça a peça, reconstruía-a de outro modo, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os. Marco continuava a informá-lo da sua viagem, mas o imperador já não o ouvia, interrompia-o: – De agora em diante serei eu a descrever as cidades e tu verificarás se existem e se são como eu as pensei. (…)


Do número das cidades imagináveis temos de excluir aqueles cujos elementos se somam sem um fio condutor que os ligue, sem uma regra interna, uma perspectiva, um discurso. São cidades como sonhos: todo o imaginável pode ser sonhado mas também o sonho mais inesperado é um enigma que oculta um desejo, ou o seu contrário, um terror. As cidades como os sonhos são construídos de desejos e de medos, embora o fio do seu discurso seja o secreto, as suas regras absurdas, as perspectivas enganosas, e todas as coisas escondem outra. (…)


O Grão Kan contempla um império recoberto de cidades que têm peso sobre a terra e sobre os homens, a abarrotar de riquezas e de movimento, repleto de ornamentos e de incumbências, complicado de mecanismos e de hierarquias, inchado, largo, pesado. “É o próprio peso que está a esmagar o império”, pensa Kublai, e nos seus sonhos agora surgem cidades leves como papagaios de papel, cidades perfumadas como rendas, cidades transparentes como mosquiteiros, cidades nervuras de folhas, cidades linhas da mão, cidades filigrana para ver através da sua opaca e fictícia espessura.



Italo Calvino. As cidades invisíveis. Lisboa:Teorema. 2011.