terça-feira, 28 de março de 2017

A palavra e o mundo - Navegações (I)

Era a rota do oiro
Porém nos grandes mares
Ou em praias baloiçadas por coqueiros
O espanto nos guiava -
Água escorria de todas as imagens
......................................
À luz do aparecer a madrugada
Iluminava o côncavo de ausentes
Velas a demandar estas paragens

Aqui desceram as âncoras escuras

Daqueles que vieram procurando
O rosto real de todas as figuras
E ousaram - aventura a mais incrível - 
Viver a inteireza do possível
....................................
Ali vimos a veemência do visível
O aparecer total exposto inteiro
E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar
Era o verdadeiro
.......................................
Difícil é saber de frente a tua morte
E não te esperar nunca mais nos espelhos da bruma
........................................
Através do teu coração passou um barco
Que não pára de seguir sem ti o seu caminho

Sophia. (2015). "II", "III", "V", "VII" e "XIV", In Navegações. Porto: Assírio & Alvim

sexta-feira, 24 de março de 2017

A palavra e o mundo - Mulher de Porto Pim (II)


 Sempre tão atarefados, e com membros compridos que agitam com frequência. E como são pouco redondos, sem a majestade das formas acabadas e suficientes, mas com uma pequena cabeça móvel em que parece concentrar-se toda a sua estranha vida. Chegam deslizando sobre o mar, mas não nadam, como se fossem pássaros, e infligem a morte com fragilidade e uma ferocidade graciosa. 
Permanecem logo tempo em silêncio, mas depois gritam uns com os outros com fúria repentina, numa algazarra de sons que quase não variam e aos quais falta a perfeição dos nossos sons essenciais: chamamento, amor, pranto de luto. E como deve ser penoso o seu amar-se: áspero, quase brusco, imediato, sem uma macia capa de gordura, facilitado pela sua natureza filiforme que não prevê a heróica dificuldade da união nem os esplêndidos e ternos esforços para a consumar.
Não gostam da água e têm medo dela, e não se percebe por que razão por que razão a frequentam. Também se deslocam em bandos, mas não levam fêmeas e adivinha-se que elas se encontram algures, mas sempre invisíveis.
Às vezes cantam, mas só para si, e esse canto não é um chamamento, mas uma forma de lamento pungente. Cansam-se depressa, e quando a noite cai estendem-se sobre as pequenas ilhas que os transportam e talvez adormeçam ou olhem para a lua. Passam deslizando em silêncio e percebe-se que são tristes.

Antonio Tabucchi. (2016). Mulher de Porto Pim e outras histórias. Lisboa: D. Quixote. 

quinta-feira, 23 de março de 2017

A palavra e o mundo - Mulher de Porto Pim (I)

"(...) as baleias, que mais do que animais parecem metáforas, e também os naufrágios, que na sua acepção de actos falhados e milagrosos parecem igualmente metafóricos" (1).
 
Mulher de Porto Pim e outras histórias é um livro reeditado em 2016 com a chancela da D. Quixote e com uma capa desenhada por Rui Garrido que nos traz um livro maravilhoso sobre "as ilhas ocidentais". Livro de 1982,  classificado pela World Literatura Today, como "uma ode aos Açores", é um objecto de grande valor cultural, que tenta trazer a paisagem, as pessoas, o mistério, o sonho, as histórias das "ilhas ocidentais", de uma forma concisa, breve e fascinante.  Mulher de Porto Pim e outras histórias é uma narrativa poética, quase um livro de viagens sobre um arquipélago atlântico, um relato e uma pesquisa de informação sobre as ilhas, as baleias, os naufrágios.

Dividido essencialmente em duas partes: I: Naufrágios, destroços, passagens, lonjuras e II. De baleias e baleeiros tem ainda um prólogo de abertura e um Apêndice, com uma nota final, um mapa e alguns livros sobre esta temática atlântica. Mulher de Porto Pim e outras histórias tem o grande mérito que caracteriza Antonio Tabucchi de misturar o real e o sonho tentando encontrar o que se revela por detrás das imagens, das palavras, dos gestos, dando aqui em pouco mais de cem páginas um quadro do sentido diferente e maravilhoso que são os Açores.
Mulher de Porto Pim e outras histórias integra horizontes de ficção com suporte de real como é o caso do texto (lindo) sobre Antero de Quental, ou misturando histórias ouvidas com o que a sua imaginação e as suas leituras permitiram construir. 
Um texto final de rara beleza, "uma baleia vê os homens" dá-nos essa ideia criada por Carlos Drummond de Andrade, a visão que os animais têm de nós. Observação que é uma metáfora sobre a forma como vivemos e usamos o espaço que habitamos. Mulher de Porto Pim e outras histórias é um livro fascinante de um grande escritor sobre um território habitado por "deuses do espírito, do sentimento e da paixão" (2).

(1;2) - Antonio Tabucchi. (2016). Mulher de Porto Pim e outras histórias. Lisboa: D. Quixote. 

segunda-feira, 20 de março de 2017

A palavra e o mundo - A Desumanização (IIA)


 Foram-me dizer que a plantavam. Havia de nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe. O meu pai, revoltado, achava que teria sido melhor haverem-na deitado à boca de deus. Quando começou a  chover, as nossas pessoas arredadas para cada lado, ainda vi como ficou ali sozinho. Pensei que ele escavaria tudo de novo com as próprias mãos e andaria montanha acima até ao fosso medonho, carregando o corpo desligado da minha irmã.

     Éramos gémeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte. (...)
     E eu acreditei candidamente que, de verdade, a plantaram para que germinasse de novo. Poderia ser que brotasse dali uma árvore rara para o nosso canto abandonado nos fiordes. Podia ser que desse flor. Que desse fruto. (...)
     Achei que a morte seria igual à imaginação, entre o encantado e o terrível, cheia de brilhos e susto, feita de ser ao acaso. Pensei que a morte era feita ao acaso. (...)
     Nos meus sonhos imaginava jardins de crianças. As árvores baixas dos corpos, falando, brincando com os braços e os pássaros pousando entre as folhas. Os braços deitavam folhas e seguravam ninhos nas mãos e as crianças eram sempre pequenas, animadas de ingenuidade, gratas pela vida sem saberem outra coisa que não a vida. E sonhava que as pessoas japonesas vinham ao jardim contemplar, e deitavam água de regadores coloridos que lavavam os pés-raízes das crianças-bonsai.
...
Chamávamos-lhe deus ou Islândia sem ter como atribuir a cada nome um significado. As palavras eram inúteis para abordar algo que estava proibido à pequenez humana. Qualquer nome não passava de uma blasfémia, como qualquer ideia que quiséssemos guardar segura acerca da grandeza infinita de deus, da Islândia ou da morte. Somos imprudentes ao arriscar conversar acerca destas coisas, confessava eu. Descobrir o nome e o significado de deus não compete a ninguém. Deve dar-nos medo a necessidade de o entender. Deve dar-nos medo a necessidade de entender deus. Ele é o desconhecido, se por ventura se der a conhecer então é uma falsidade. (...)
    O meu pai também dizia que a Islândia era deus e era a beleza de deus. (...) Talvez não entendamos o que é belo neste preciso momento. Podemos estar absolutamente enganados acerca de tudo quanto gostamos.

Valter Hugo Mãe. (2016). A Dezumanização. Porto : Porto Editora, páginas 11, 37 e 41.

sexta-feira, 17 de março de 2017

A palavra e o mundo - A Desumanização (II)

A Desumanização de Valter Hugo Mãe é um livro de assombro que assume na escrita um continente poético de uma ilha muito especial, a Islândia. Estamos aqui perante um livro alucinante de tristeza, de solidão, mas sempre a apostar na ternura, na reinvenção do coração. É um livro que tenta também ser uma obra plástica sobre a vida, a morte e os fantasmas que nos habitam. Um livro imenso, que deveria ser  mias conhecido, mais lido, pois é simplesmente fascinante pela forma como nos interroga. A Desumanização é um livro difícil, de uma beleza tocante e que é uma declaração de amor à Islândia, ao homem e à natureza como fonte contínua de redescoberta. 
A Islândia é uma paisagem entre a desolação, a solidão nos elementos e um sentido onírico, pelas viagens que nos permite fazer, a nós, emersos num natural imenso, do tamanho da fundação do mundo. Viver na Islândia implica fazer um diálogo com esse natural. Implica fazer das forças naturais, dos elementos, dos vulcões, das montanhas de gelo formas de pensamento e ver em tudo isso formas silenciosas dos deuses. A cada instante a água, o vento, a neve nos revela que há forças vitais a suportar esse momento que parece tão próximo da fundação do dia em Deus acordou para o mundo. Só um homem capaz de entender essa vitalidade e de a reconstruir no seu quotidiano, nas suas lendas, no sentido épico poderá viver num espaço desses.

É neste enquadramento que Valter Hugo Mãe compõe uma história, onde ao lado dos elementos naturais, feitos de uma dimensão agreste nos conta uma história de amor, uma narrativa de perda e uma reconciliação com a vida. 
Juntando referências da mitologia nórdica, a conteúdos da literatura de natureza épica (Jóhann Sveinsson Kjarval) ou à música dos hinos religiosos (Hallgrímur Pétursson),  ou a referências literárias muito significativas (Thor Vilhjálmsson), A Desumanização é um obra literária cheia de natureza e de poesia.

A Desumanização é um relato comovente sobre uma criança à deriva, sobre uma aldeia perdida num fiorde, mas é sobretudo a construção de uma viagem entre esses elementos naturais, os homens e Deus. Desse Deus não organizado em sentidos oficiais, mas aquele que se revela no natural, que se revela nas coisas, aquele que nos mostra que o homem é um ser à espera de um fim, pois "tudo na vida tem a ver com a morte". A conciliação final é uma redenção feliz para um conjunto de personagens à deriva num continente de gelo e desolação. A Desumanização é um livro imenso e não será exagerado dizer-se que é uma obra-prima da literatura.

segunda-feira, 13 de março de 2017

A palavra e o mundo - A Desumanização (I)

A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser- se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer.
Pintávamos os móveis de flores escuras. Demorávamos muito e a casa cheirava a tintas más, baratas, que demoravam a secar. O meu pai impedia-me de chorar pelo ofício da racionalidade.
Aprender a solidão não é senão capacitarmo-nos do que representamos entre todos. Talvez não representemos nada, o que me parece impossível. Qualquer rasto que deixemos no ermitério é uma conversa com os homens que, cinco minutos ou cinco mil anos depois, nos descubram a presença. Dificilmente se concebe um homem não motivado para deixar rasto e, desse modo, conversar. E se houver um eremita assim, casmurro, seguro que terá pelo chão e pelo céu uma ideia de companhia, espiritualizando cada elemento como quem procura portas para chegar à conversa com deus. Estamos sempre à conversa com deus. A solidão não existe. É uma ficção das nossas cabeças.
Os homens só percebem que há alguém na água, na pedra, no vento, no fogo. Há alguém na terra.
De qualquer maneira, expliquei ao meu pai, a mãe odeia-me. Isso faz-me chorar, deixa-me triste e ofende-me.
Ele insistia explicando-me que as crianças eram modos de espera. Queria dizer que as crianças não tinham verdades, apenas pistas. O seu mundo fazia-se de aparências e tendências, nada se definia. Ser-se criança era esperar. Também significava que queria de mim admirável força sem outro sustento que não o da idade. Deixava-me à sorte, cheia de palavras estranhas cujo significado me custava encontrar.
Olhei para os móveis velhos e achei que já eram tristes antes de os escurecermos. Eram os móveis do nosso eremitério.
Que maravilha, as fundas dos vulcões que respiram e aguardam. Que maravilha, a espessura das montanhas que deitam pé ao debaixo das águas e aguardam. Diziam os velhos carregados de ideias inúteis. Os profundos velhos. Gosto da coragem, aumentados da desconfiança. Palavrinhas acerca de como devia ser cada gesto, cada sentimento, cada sonho de futuro. Como se o futuro estivesse preparado para ser igual ao passado, aos dias que gastaram. Como se eu ainda fosse a tempo de lhes ser igual. Uma velha metida para dentro a conspirar inconfessavelmente contra tudo e contra todos.
Quem tem filhos, precisa do futuro. Ouvi-os falar assim.
Punham-se à espreita das águas a perceber se havia movimentos suspeitos. Quase todos queriam ver monstros. Ninguém se convencia de que os mares eram só para animais de clara ciência. Alguns juravam ter visto cabeças levantadas, feitas de dez olhos e bocas de mil dentes. Monstros oceânicos. Viam o oceano como sangue de cristal. Balanceava diante de nós sinuoso, muito belo, mas carregava-se de perigos e sonhava com afogar-nos a todos. O oceano desceu das veias puras de deus. Dizia um velho. Nas veias puras de deus vivem parasitas que são monstros.

Valter Hugo Mãe. (2016). A Dezumanização. Porto : Porto Editora, páginas 29-31.

sexta-feira, 10 de março de 2017

A palavra e o mundo - Açores, o segredo das ilhas (II)

Raul Brandão escreveu um livro inesquecível sobre as Ilhas, a da Madeira e essencialmente sobre o arquipélago dos Açores. A descrição do azul, as pessoas e um território fez de As ilhas desconhecidas uma referência na Literatura de viagens e nas narrativas sobre as Ilhas Atlânticas. 

João de Melo oferece-nos um livro próximo, mas muito diferente sobre a magia única das nove ilhas que compõem essa unidade habitado pelo espírito. Açores, o segredo das Ilhas é uma narrativa de viagem a nove ilhas, a descoberta de uma paisagem natural acima das palavras, desse nascimento telúrico e das actividades humanas. Mas é sobretudo um livro à procura do fundamento da terra no seio das suas formas. Da sua atmosfera de vento e nuvens, fogo e água, a terra nascida no momento inicial dos tempos.

Açores, o segredo das Ilhas é ainda uma visita onírica a nove ilhas e a descoberta nelas do fundamento inicial do mundo, a janela aberta do Cosmos. Cada Ilha do "mais belo mar do mundo" é descrita pela sua substância vulcânica e pelo modo como se definiu nesse azul imenso. "Corvo, a cornucópia do mar", Flores, Ilha de todas as ilhas", "Faial, onde estão as faias", "Pico, a montanha mágica", "São Jorge, o sáurio que dorme", "Graciosa, sentada a ver o mar", "Terceira, o mundo todo em volta", "São Miguel, uma doce melancolia" e "Santa Maria, o ninho do gurajau", são visitas a um arquipélago feito de substância de deuses do espírito, como o definiu António Tabucchi. 

Existem livros que são uma experiência sensorial, que nos fazem experimentar a nossa condição de vida, a nossa mortalidade, a descoberta dos nossos continentes interiores e a nostalgia de rios a correr, a descoberta do visível, a pura felicidade de ver o mundo acabado de nascer. Açores, o segredo das Ilhas é um livro de 2000 reeditado num formato mais acessível e de uma beleza indescritível.

Só alguém que conhece as Ilhas por nascimento ou por um amor imenso desses pedaços de sonhos no meio do mar, plenas "baleias azuis" as pode compreender e descrever como o faz João de Melo. Se As ilhas desconhecidas é um livro quase definitivo pela linguagem, a sua capacidade de compreender o  espaço e descrever as cores, Açores, o segredo das Ilhas é um presente de palavras, para essa missão impossível de dar conhecer os limites azuis de um sonho e de uma beleza rara. Um dos mais belos livros de viagens que se podem ler. Açores, o segredo das Ilhas é um livro que está disponível na Biblioteca para requisição domiciliária.

terça-feira, 7 de março de 2017

A palavra e o mundo - Açores, o segredo das ilhas (I)

 De que falamos nós, quando falamos das ilhas?
Creio que de formas. Das belas estranhas formas que  elas nos sugerem ao olhar. Se as vemos no mapa, não são mais do que corpos fixos, plasmados à superfície das águas, sem nenhum fogo na alma. Apenas corpos terrestres em contínua permanência nas voltas, volutas e luxúrias do mar. 

Porém, se olharmos de uma ilha para a outra, a perspectiva torna-se outra.  Diferente  da anterior. Diferem os sentimentos da lama; muda-se também a forma de ver as ilhas. O que dantes nelas era difuso e longínquo, agora como que se ilumina sobre a linha inesperadamente nítida da costa marítima. As cores, as coisas  e as luzes da paisagem emergem ao lado das sombras. 

E quando sobre as ilhas se descerra a imensa e húmida cortina que o mar segrega sob a forma de névoa e bruma, para as esconder de quem ali veio para olhar, outros relevos saem do encoberto para se acenderem no dia.  Então sim, passam a ser uma visão revelada, aparição que se configura de outro modo nos nossos sentidos. As ilhas ganham um rosto, e esse rosto uma expressão. Os olhos enchem-se de um brilho maravilhado. Tornam-se coloridas e amplas de luz as paisagens. E todos nós passamos do segredo misterioso ao conhecimento amado das ilhas.