quarta-feira, 31 de maio de 2017

A palavra e o mundo - No meu peito não cabem pássaros (III)

Este azul é cor de sítio nenhum. Um lugar que foge aos sentidos por medo e finitude. Olha-se como não vendo, porque é tanto mar que não cabe em gente. Chamar-lhe mar ou chamar-lhe céu, chamar nomes às coisas que riem de nós e de deus. O mar inventou-nos a nós e depois a deus.
No mar vai um barco e no barco vai um homem por ser, um rapaz que deixa um lugar por outro. na cabeça do rapaz há muitas ideias misturadas, também contradições e medos e o tempo infinito de tudo o que se desconhece.

O barco é uma cidade lenta de gente incógnita. pelo convés e pelos corredores, cruzam-se olhos desamparados que se fazem maus porque estão sós e longe. No meio dessa gente vai Fernando virado para dentro e nada o surpreende, nada o pode assustar mais do que já está. É um rapaz que vê a vida mudar de rota, como o barco ou outra coisa grande. Fernando acabou de jantar e fechou-se no camarote, dentro há uma cama pequena, um baú com o que é seu e uma secretária roída onde se pode escrever. Fernando escreve.

"Da última vez estavas igual, tinhas já essa cor de ir e vir dentro de ti. Lembro-me, tu sabes que me lembro. Agora eu sou maior e tu continuas como sempre. Ganho eu. Tens vantagens claras, claro que tens, nós estamos de passagem, agarrados ao que ficou e incertos no que será, tu não.
Se eu fechar a escotilha ficas todo lá fora, sozinho contigo, sem deuses que te aturem, és demasiado grande para chegares a mim, não tens dedos que me agarrem nem olhos de ver ao perto. as tuas ondas poderiam ser rugas se eu quisesse, sabes que o posso fazer? És um bruto desajeitado que esmaga os brinquedos e faz birras a fingir ódio. Entretanto nós passamos, baixamos os olhos e rezamos baixinho para que tu vejas e tenhas pena, mas eu rio por entre as rezas e tu não me vês.

Gosto de te ter por perto, assim como estás agora, ao alcance de te querer. se eu quisesse juntava-me a ti e seria mar também. Mas não quero, ainda não. Tenho os meus deuses para inventar e acredito ainda em cores que não são tuas. Um dia, um dia é o tempo de tudo o que haveríamos de ter sido, e eu ainda tenho dias para mundos maiores do que tu. Se eu quisesse, tu eras um segundo pequeno de uma vida por fazer, sabes o que posso querer? Agora durmo, agora és noite e tens a cor de tudo o resto (o mar não dorme, pois não?).
Não sonhas, mas és sonhado e não há nada que possas fazer.

O tempo das ondas parece-nos curto porque as vidas pequenas que vivemos nos deixam ainda ver tantas. Para o vento as ondas são montanhas azuis. Homens que viajam são o vento de quem espera e de quem fica. Tempo que vai e volta e se esquece no passar. Os homens eternos chamam deuses aos ventos e riem sozinhos ao acordar."

As palavras escritas ficam ali sobre a secretária a baloiçar com o barco nas ondas. Fernando deita-se e fica à espera do sono ou de chorar. Um corpo deitado não espera muito e entrega-se ao que vem.
O barco é uma máquina de mudar vidas, um movimento certo como o tempo. Dentro vão as vidas de gente (....). Um corpo que viaja a velocidade constante perde a noção do movimento mas não esquece que é um corpo, faz o que tem a fazer e depois dorme e é já outro dia e outro lugar.

Nuno Camarneiro. (2013). "Oceano Atlântico", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.

A palavra e o mundo - No meu peito não cabem pássaros (II)

Por alguma razão quis acreditar que entre tanta folha escrita haveria algures de estar o próprio. Passou muito tempo à procura em enciclopédias, compêndios e romances, mais tarde em contos e poemas, já com menos vida pela frente e outras ambições. Num momento certo soube desiludir-se e mudar de estratégia, passando a escrever-se.

Quando um achador de terras se cansa de procurar caminhos, resta-lhe desistir ou abrir uma estrada nova, assim com os seus avós, assim consigo. Por uma estrada inventada chega-se a qualquer lugar e por palavras escritas chega-se a qualquer vida em qualquer época. Começa-se devagar, com descrença, e vai-se andando encostado ao desespero até que as palavras visitem os sonhos e tomem conta deles. Primeiro uma vida, depois outras que a suportem e justifiquem. Vidas ao lado e vida antigas, vidas que hão-de vir e outras que nunca chegam a ser. Todas fazem falta, todas servem.

Os animais e as plantas são máquinas de criar complexidade num universo onde é mais fácil destruí-la. De um lado as estrelas a queimar a matéria, do outro células a fazer células. Um dia, por acidente ou excesso de zelo, os animais fizeram o homem e muito mudou. A humanidade é uma gigantesca indústria do complexo, capaz de fazer línguas, leis e até livros. Somos o contrário das estrelas e vamo-nos admirando com respeito e temor. Só por distracção e fastio nos vamos impedindo de criar universos a cada instante. A vida que somos forçados a viver é só a que nos dão, e é só uma, dentro temos milhões de alternativas à distância curta de pensar nisso. Bastaria para tanto fazer um futuro e alguns passados, o presente vai no resto.

Jorge tratou de inventar o que lhe foi necessário e muito mais. Entre os muros do jardim e as paredes da sala dos livros, viajou mais do que tantas andorinhas, foi muitos homens com todos os defeitos e todos os destinos. não lutou contra o tempo porque o tempo correu para o sossegar. Afinal o tempo sossega-nos sempre.

É dever dos homens envergonhar deus, mostrar-lhe que há mais histórias do que a que se pratica, derrotar-lhe a inventiva e o estilo. Fazer muito com o pouco que nos deu e pedir-lhe que faça mais com tudo o resto.

Nuno Camarneiro. (2013). "Buenos Aires", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.
Imagem – ©: Hauptfriedhof Frankfurt

segunda-feira, 29 de maio de 2017

A palavra e o mundo - No meu peito não cabem pássaros (I)

É muito grande Nova Iorque. Por todo o lado há edifícios altos como casas sobre casas. É uma cidade excessiva e áspera, onde se encontram mais ângulos rectos do que em qualquer outro lugar. É também cheia de brilho e de ruído, de máquinas e corpos e milhões de verbos conjugados no presente. Uma cidade de aldeias empilhadas trazidas de longe, da Europa, de África, da Ásia, homens pobres e desesperados que dão a vida por pouco, que gastam os corpos pelas esquinas afiadas da cidade e à noite se deitam nas suas entranhas.

Quem acorda na cidade desculpa-se por ter dormido. Lá fora há já multidões que correm atrás de uma coisa qualquer que lhes diga que existem. O direito ao nome ganha-se a cada dia e não é certo, nada é certo nesta cidade. O tempo, o pouco tempo de alguns, é o avanço de quem chegou primeiro e não chega para terminar um cigarro.

Quem não sabe para onde ir vai indo sem saber para onde. a cidade empurra, a multidão empurra, a fome empurra, o desejo empurra. Quando alguém pergunta "quem és?" está na realidade a perguntar "o que fazes?", a resposta deve ser rápida e sem hesitações, um verbo e um substantivo. Daí se escolhem afinidades ou a indiferença, nesta cidade um homem é uma máquina de fazer coisas, um verbo, uma função que prescinde de tudo o resto.

Quando é domingo, há muitos homens perdidos pelas ruas, e Karl com eles. Nova Iorque não sabe o que fazer com as horas vagas, a cidade e os cidadãos tornam-se coisas ocas, olhos vazios, pés que caminham porque não sabem fazer mais nada.

A família salva muita gente do tédio, nas famílias todas as horas têm nome: hora de comer, hora de passear, hora de voltar, hora de comer outra vez. Os apartamentos de Nova Iorque enchem-se de famílias e de luz aos domingos, tornam-se faróis tristes para quem anda só por andar. Nas horas vazias dos domingos fazem-se perguntas que não têm resposta e alguns homens matam-se. Há muitos homens a morrer nos domingos da cidade.

Karl percorre as ruas como se fossem partes de um labirinto. Procura o fim daquilo, uma meta para o que lhe falta: alguém com quem falar, uma refeição quente, um lugar tranquilo e bonito onde haja árvores e raparigas. 

Nuno Camarneiro. (2013). "Nova Iorque", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.
Uma memória, um ícone de uma civilização urbana - The Big Apple.
Imagem – Alfred Stieglitz, 1910, Baixa de Manhattan,
© Alfred Stieglitz Photography

sexta-feira, 26 de maio de 2017

A palavra e o mundo - Mozart (II)

«Aquele que possui em si a plenitude da virtude
É como uma criança acabada de nascer» (1)

Mozart e a sua família viajaram por diferentes cortes. Nelas, o jovem Mozart tentou revelar os seus excelentes dotes musicais. As cartas, por ele deixadas e escritas à sua família, quando já era adulto revela-nos um compositor habitado por elevados valores humanos. Revela-nos que as suas dificuldades financeiras foram muito devidas à sua ingenuidade, a essa ideia de que o génio, a capacidade de fazer será sempre reconhecida pelos outros. No século XVII os serviçais da Corte ainda valiam mais que um músico, mesmo do valor deWolfgang Amadeus Mozart.
Mozart é um dos mais elevados marcos da música universal e do pensamento. Criança prodígio na execução dos sons, compositor de centenas de obras musicais tentou por sua conta e risco mostrar o seu talento sem a sombra de patronos. Tendo sido um dos maiores compositores universais onde a complexidade nos é transmitida de forma simples, morreu jovem. Homem otimista, esforçado nas suas tentativas para ser livre, viu postumamente o seu génio ser reconhecido. Músico brilhante nunca quis abdicar da sua honra e da sua consciência, mesmo perante os mais poderosos.

Mozart é igualmente um marco na história do pensamento porque representou um esforço para libertar a sociedade humana do controle realizado por aquilo que foi chamado A Cidade de Deus. No século XVII a Europa Continental ainda estava longe de tolerar diferenças religiosas. Algumas das óperas de Mozart, procuraram mostrar que no serviço a Deus existiam diferentes caminhos. A tolerância e a procura do próprio conhecimento é um direito do Homem. Don Giovanni representa a tentativa de procurar esse caminho novo, ao encontro de uma liberdade que seja acessível ao género humano.

A condenação final que ouvimos em Don Giovani é ainda a confirmação de uma sociedade velha onde o controle apertado da religião sobre os indivíduos é manifesta. De uma forma geral, pelos sons que criou Mozart, perto dos finais do século XVII, ajudou a construir esse trajeto que levaria à liberdade individual do Homem «e à possibilidade de este criar o seu próprio caminho. Naturalmente pela vida que teve e pelo património que deixou, podemos concluir com Zhu Xiao - Mei «Mozart é uma criança (...) que tudo conheceu. Uma criança que teve a profundidade de um velho sábio».

(1) Zhu Xiao-Mei. (2007). O Rio e o seu Segredo. Lisboa: Guerra e Paz.
Imagem - As viagens entre as Cortes da Europa

segunda-feira, 22 de maio de 2017

A palavra e o mundo - Mozart (I)

A vida de Mozart foi também uma viagem que ele retratou em palavras e sons. Foi igualmente uma viagem feita de um génio humano, de determinação, vontade, mas sempre preenchida pela consciência da sua voz. As suas cartas é o livro em destaque nestes últimos apontamentos de #A palavra e o mundo.

"Ainda estou vivo, e muito bem disposto (...) temos a honra de conviver com um certo dominicano, que é considerado santo. Eu não acredito (...)" - 21 de Agosto de 1770

"(...) no aposento do imperador se toca música que afugenta os cães." - 13 de Novembro de 1777

"(...) outros, que de mim não sabem nada, observam-me com olhos grandes, igualmente risíveis. Pensam que, por eu ser pequeno e jovem, não poderá haver em mim nada de grande e adulto (...) - 31 de Outubro de 1777

"Dêem-me o melhor piano da Europa, mas com uma audiência que nada percebe, ou que nada quer perceber, e que não sente comigo aquilo que toco, e perderei todo o prazer (...) Pois também aqui tenho os meus inimigos, mas onde é que os não tive? No fim de conta, é sempre um bom sinal (...)  Se houvesse aqui um sitio onde as pessoas tivessem ouvidos, um coração para sentir e percebessem apenas um pouco de musique, e tivessem gusto, então rir-me-ia destas coisas de todo o coração, mas assim encontro-me entre meros brutos e bestas (no que diz respeito à música)" - Paris, 1 de Maio de 1778

"(...) vejo por aqui tantos medíocres que fazem carreira, e eu com o meu talento não deveria ser capaz? - 31 de Julho de 1778 

"(...) infelizmente acredita mais no falatório e rabiscos de outras pessoas que em mim (...) permanecerei o mesmo homem honrado de sempre (...) [falando do pai e da incapacidade deste em compreender o sentido de liberdade e consciência]" - 5 de Setembro de 1781

"(...) a minha honra está para mim (...) acima de tudo. - 19 de Maio de 1781                          

  Wolfgang Amadeus Mozart. (2006). Mozart - Uma vida secreta - Seleção

sexta-feira, 19 de maio de 2017

A palavra e o mundo - O enigma da chegada (II)

"Eu via uma floresta. Mas não era realmente uma floresta; era a penas o velho pomar nas traseiras do casarão em cuja propriedade se encontrava a minha casa. Aquilo que via, via-o muito claramente. Mas não sabia para que estava a olhar. Não tinha nada em que pudesse encaixar aquilo que via. Sentia-me ainda uma espécie de limbo." (1)

V. S. Naipul tem uma obra longa e premiada, com destaque para o Booker Prize de 1971 e o Prémio Nobel da Literatura em 2001. Natural de Trindade, nas Caraíbas descende de uma família de origem indiana, cujos antepassados vieram da Índia para as Antilhas no processo de globalização económica que foi o Império Inglês no século XIX. V. S. Naipul concilia uma ironia e uma observação britânica com um espírito de análise e um minimalismo de vida ligado ao hinduísmo e à sua memória.

Partiu jovem para Inglaterra para estudar Literatura em Oxford e a sua vida de escritor   mistura-se, a partir de certo momento com a do homem. Processo e descoberta difícil, enquanto o escritor não compreendia que homem o habitava, nessa relação de culturas que viveu de forma intensa. O enigma da chegada, livro de 2008 é um testemunho deslumbrante desse percurso de vida e do nascimento do escritor e dos temas que o fundiram com o homem, o adolescente e criança em Trindade e o adulto em Oxford.

O enigma da chegada descreve-nos a evolução de um escritor, os locais por onde viveu, com destaque para o lugar que o fez renascer. Justamente um vale perto de Stonehenge, onde habitou uma casa que integrava uma grande propriedade rural, o que nos permite conhecer uma região, a sua ocupação humana no tempo. Espaço pertencente à aristocracia rural, nela vemos desfilar as personagens que lá trabalhavam, as suas motivações e compreendemos a atmosfera que as envolvia, o seu trabalho, a sua visão do mundo, a sua intimidade com as coisas. A casa habitada pelo autor e as experiências vividas nessa propriedade deram-lhe a possibilidade de encontrar o sentido, o significado para a efemeridade da vida humana.

O enigma da chegada faz a descrição precisa da paisagem, como o autor a via nos seus passeios e permitiu-lhe abordar um microcosmo, a sua relação com a sociedade e como o tempo vai desfazendo sentidos antigos. O enigma da chegada é um livro que pertence a uma categoria muito restrita. Aquela que tem a capacidade de dialogar com o leitor, como se falasse com ele directamente. O enigma da chegada é uma longa e aprazível conversa, onde se revela uma grande sensibilidade na observação. Os passeios de V. S. Naipul dão-nos uma observação muito cuidada da Natureza, da sua evolução no tempo. "O jardim de Jack" e os trabalhadores da mansão dão oportunidades de reflexão ao autor sobre a vida, as escolhas que se fazem e delas extrai sentidos que parecendo particulares são absolutos sobre a própria existência.

O passado, os seus fragmentos sem memórias, os vestígios, relíquias de outras vidas, de outros sonhos procuram dar um significado para a ideia de ruína e degradação. Sendo um livro auto-biográfico é muito, uma obra literária sobre o Homem no Tempo. Uma geografia antes dos homens, o trabalho humano como uma declaração poética, um sentido vivo da vida ou só mais uma ruína, são questões colocadas. Como lidar com essa mutação da vida, dos seus objectos no tempo, como compreender a degradação contínua, a mudança constante em nós, no nosso tempo?

A experiência do que vivemos e a linguagem, como instrumentos de uma memória e de uma exaltação são tentativas para obter uma resposta. E ainda a consciência final de que sobre a melancolia e as nossas dores é importante compreender "que a vida, o ser humano, era o mistério, a verdadeira religião dos homens, a dor e a glória" (p.438). E compreendê-lo com assombro pela vida e pelos homens. E aceitar que a vida é sempre o recomeço de nós próprios. E verificar mais uma vez que a Literatura pode ser em alguns circunstâncias um instrumento de contextos, de significados poéticos para uma sobrevivência. A da memória .

(1) V. S. Naipul. (2013). O enigma da chegada. Lisboa: Quetzal.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Uma Biblioteca... entre os livros e as pessoas...


Uma Biblioteca Escolar é um espaço de construção de uma intimidade com as palavras, de afecto com os livros e de apoio à aprendizagem pelos recursos que estão disponíveis e pelas actividades que se promovem. Uma Biblioteca é isto e um pouco mais. Deve ser um espaço de pessoas, um espaço de comunidade. Nos últimos três anos lectivos foi isso que tentou ser. Falou-se sempre em colectivo, pois é dele que deve nascer uma participação colaborativa daquilo que nos importa.

Os textos do blogue (perto de oitocentos nestes três últimos anos) foram identificados quando se publicaram mensagens ou trabalhos dos alunos. Os outros textos foram na grande maioria por mim escritos, o que nem é muito positivo, pois seria desejável que uma larga fatia de elementos desta comunidade participasse com as suas ideias. O Rainha em Folha, A Cozinha Experimental, os textos dos alunos e as apresentações de biografias no Caderno Digital foram a exceção.

Nunca achei que fosse preciso colocar o meu nome porque sempre me pareceu que a Biblioteca deve ser um espaço de todos. Da coleção às pessoas é o sentido de uma Biblioteca. Um texto por mim escrito: SalvadorSobral - Uma canção de milagre nas estrelas, levantou a algumas pessoas um sentido de desconforto. Embora me pareça excessivo aquilo que ouvi e em algumas das formas como foi feito, deu-se a possibilidade de o eliminar, ou que alguém quisesse exprimir alguma ideia sobre a sua temática que fosse diferente. Foi sempre a procura de participação aquilo que se tentou dinamizar em diferentes níveis e abordagens.

Devido a estas dificuldades e por sugestões recebidas, colocarei o meu nome nos textos por aqui publicados nos últimos três anos. Farei isso se o conseguir realizar, até 31 de julho, visto que são muitos textos.  Nas publicações de introdução de códigos HTML não farei essa alteração, até porque foram todos revistos pela equipa da Biblioteca. 

Sempre achei que eles, os textos e as publicações realizadas eram um modo de abordagem de uma Biblioteca. Tenho pena que com tanto tema estudado e abordado, em tantas e diversas disciplinas e, com o mundo a fazer-nos questionar sobre tanto assunto não se consiga trazer a voz escrita e o pensamento dos diversos elementos da comunidade educativa. Reconheço ampla e completamente o que escrevo e não queria fazer disso uma afirmação, porque o que mais importa é um sentido de um espaço essencial.  Foi apenas o que se tem procurado fazer. Abrir caminhos de pensamento.


quarta-feira, 17 de maio de 2017

A palavra e o mundo - O enigma da chegada (I)

Jack vivia no meio de ruínas, no meio de coisas que já não serviam para nada e tinham sido substituídas por outras. Porém, esta visão de Jack e do ambiente que o rodeava só me surgiu mais tarde, e impôs-se com mais força agora, à medida que vou escrevendo. Não foi a impressão com que fiquei da primeira vez que, num dos meus passeios, passei por lá.

Essa ideia de ruína e degradação, essa sensação de deslocamento, era algo que eu experimentava em mim mesmo, algo que transportava em mim: um homem de meia-idade, originário de um outro hemisfério, com um passado completamente diverso, procurava repouso numa casa de uma propriedade meio abandonada, uma propriedade cheia de recordações de um passado eduardiano, com escassas ligações ao presente. (...)

No entanto, quanto a Jack, eu via-o como um elemento mais na paisagem. A sua vida parecia-me autêntica, enraizada, adaptada: a vida de um homem que encaixava perfeitamente na paisagem. Via-o como um vestígio do passado (cuja desagregação era anunciada pela minha própria presença).

Quando dei aquele primeiro passeio e me limitei a ver a paisagem, tomando aquilo que via como simples elementos desse mesmo passeio, coisas que podíamos encontrar no campo em redor de Salisbury, coisas imemoriais, apropriadas, não me ocorreu que Jack viva no meio do lixo, no meio das ruínas que tinham quase um século; que o passado que envolvia a sua casa podia não ser o seu passado; que podia ter sido, num dado momento, um recém-chagado ao vale; que o seu estilo de vida podia ter sido uma opção, um ato consciente; que, do pequeno terreno que lhe coubera em sorte juntamente com a casinha de trabalhador ruaral, Jack criara uma casa especial para si mesmo, um jardim onde (embora rodeado de ruínas, recordações de vidas desaparecidas), ele se sentia mais do que feliz por levar a vida que levava e onde, como numa versão de um Livro de Horas, ele celebrava as estaçoes. (....)

E, no entanto, ainda demorei algum tempo, à medida que ia ganhando consciência das estações, a descobrir o jardim. Até então, o jardim estivera simplesmente ali, qualquer coisa no caminho, um ponto de referência, nada que merecesse grande atenção da minha parte. E, no entanto, eu amava aquela paisagem, as árvores, as flores, as nuvens, e era sensível às mudanças de luz e temperatura.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Salvador Sobral - Uma canção de milagre nas estrelas


O fim-de-semana de 12 e 13 de maio prometia algumas possibilidades. Como todos sabemos superou as melhores expectativas. Na ligeireza que nos caracteriza a comunicação social juntou tudo num pacote. O País terá vivido um milagre, ou um conjunto de três milagres. E, no entanto são coisas muito diversas.

1. Fátima é aquilo que se conhece. Existem os que acreditam e os que duvidam. A canonização interessa sobretudo aos crentes e ao discurso da Igreja Católica. Em Fátima esteve o Papa, uma figura inspiradora, o único líder que o Mundo dispõe com credibilidade para a sensibilização de uma ideia de justiça. Mas não foi um milagre. O Papa ainda vai onde quer e a sua vinda foi para celebrar um evento do imaginário de uma religião. E, como sabemos nem todos professam uma ligação ao sagrado, nem se reconhecem nesse imaginário. Ficou-se com a alegria de um homem de que se espera o impossível, justamente a reforma de uma pesada hierarquia para uma ideia de espiritualidade mais próxima das pessoas.

2. O Benfica também não se enquadra num milagre. A equipa está habituada a ganhar, às vezes ano sim, ano sim, outras vezes nem tanto. A vitória do Benfica enquadra-se dentro da estatística de probabilidades que um clube pode obter. É verdade que são muitos milhões a torcer por um clube e um desporto, mas não é, nem nunca foi um milagre. A magia que alguns vêem é apenas a azelhice dos adversários, ou as capacidades olímpicas que os seus felizes jogadores possuem. Milagre? Não me parece!

3- Salvador Sobral chegou a Kiev e conseguiu pela primeira vez obter o primeiro lugar no Concurso da Eurovisão. E apesar de vos parecer um exagero, foi aqui que os jornais acertaram. Foi um milagre. Não por que tenha sido a primeira vez em cinco décadas que Portugal o conseguiu. Não! As razões são outras. Miguel Esteves Cardoso falou do seu humor no momento de conhecer a vitória, do reconhecimento feito aos músicos, do sentimento, da emoção e da sua evidente humildade. 

Salvador Sobral realizou um milagre por muitas razões.
Pela vitória que é indiscutível e pela forma como recolou as pessoas a verem um formato de media ultrapassado nos seus conteúdos há décadas. Por ter apontado a necessidade de a música se dirigir para a contemplação interior de uma emoção, não adereços externos projetados para um exterior vazio. Por ter falado nos direitos humanos e por essa ideia que todos devíamos aprender. A de que quando temos um palco devemos utilizá-lo, projetar mensagens que façam pensar os outros, que os façam refletir, sobre os gestos que todos em conjunto podemos tentar influenciar ou alterar. A dádiva de ver e de sentir o essencial. E sobretudo pela língua, essa Pátria de que falou Pessoa.

E já agora, convinha aprendermos alguma coisa. Não dizermos, como o fizeram filas de jornais e televisões, à saída das primeiras imagens, como crianças sem pensamento. A de que este fim-de-semana foi a materialização da famosa fábula de Salazar, “Fátima, futebol e fado”. Não foi! Foi outra coisa. Pode ser outra coisa. Iluminar palavras e não ter a pretensão de ser o máximo e juntar arte e sentimento, como disse MEC é um milagre e um princípio. Depende de cada um compreender isso e tentar construir essa essência que mora na melodia das coisas.


sexta-feira, 12 de maio de 2017

A palavra e o mundo - Breves notas sobre música (II)

"E, sim, um grande especialista em música e na natureza humana poderá dizer com acerto, pela observação da fisionomia dos ouvintes. Mozart!, Bach, Chopin! E talvez até isto: silêncio". (1)

A música. Um voo de pelicano no azul, ou o som das hortênsias no vale das Flores, uma ilha a escutar o mar, como uma caixa de música. O silêncio. Ouvi-lo como uma substância que sobra da música, que se espalhou pelos objectos, pelos nossos espaços. E ela própria, como a ver, pois não tem a música, uma luz própria, e assim, saberá qualquer um ouvir um som, construir essa iluminação? Em cada rosto que ouve um som, como encontrar aquilo que não se ouve, como se vê esse silêncio em cada um? É essa a porção capaz de mudar as coisas individualmente?

A batida dos sons podem eles fazer mudar a substância material dos espaços e nesse caso, a música seria um pensamento, o elemento vivo, uma forma de absorver instantes e de os reconduzir a um elemento único, vivo, nós. O silêncio é esse ponto, onde a luz musical se completa, onde se sustenta a raiz do som que contemplamos, a sombra que saiu desse espanto e o ombro que nos dá conforto.

No fim o som, todo ele, para anunciar um sentimento, formas essenciais de ser, essa forma de construção de um espaço, que é a atenção a cada biblioteca de sons individuais. Produzir música, ouvir um som que é também a contemplação a um mundo exige pois olhar, ver o que nos chega com curiosidade e espanto.Breves notas sobre música de Gonçalo M. Tavares é um pequeno livro sobre como o pensamento pode questionar os sons e compreender-nos a nós, dentro dessa magia do silêncio.

(1) - Gonçalo M. Tavares. (2015). Breves notas sobre música. Lisboa: Relógio d´Água.
Imagem - Copyright - Emmanuel de Witte, Interior com uma mulher tocando virginal, 1665.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

A palavra e o mundo - Breves notas sobre música (I)

A matemática não é para ser cantada, mas podemos imaginar uma orquestra em que cada um dos seus elementos desenvolva equações. Que o canto ou o som de um instrumento sejam semelhantes ao percurso da matemática quando tenta resolver um problema difícil. Que o som seja uma forma, um percurso, em que se vai do complexo para o simples, da grande confusão para o número único que soluciona e acalma. Música como raciocínio que começa no primeiro som, que é problema, e chega ao fim da música fazendo existir o último som, o que soluciona.

Mas há músicas em que o final não finaliza, mas começa; em que o fim é portanto, ameaça ou expectativa, em que o fim não pede uma passividade satisfeita, mas exige, sim, ao ouvinte, pelo contrário, que se levante porque os seus músculos e o seu raciocínio lhe pedem acção.

Steiner lembra a misteriosa frase de Leibniz "quando canta para Si, Deus canta álgebra", Leibniz que associa a linguagem à "razão audível", à razão que se faz ouvir; razão, portanto, que ocupa o espaço que vai da boca que fala ao ouvido que ouve. Uma racionalidade que se faz som: falamos para os outros, ouvimos o outro.

Mas, então, como pode haver tanto mistério no canto por vezes aparentemente tão exacto?
Uma racionalidade misteriosa que se faz som - eis, talvez, uma definição da música que mais nos encanta.
Se Deus canta uma música exacta, se DEus canta o exacto; ou se Deus, pelo contrário, canta o confuso, o ambíguo, o não resolvido? - eis a dúvida que se pode colocar.

Deus canta versos crípticos ou Deus canta a resolução infalível de uma longa equação?
Meu caro, dirão uns: é sempre preferível entender.
Meu caro, dirão outros: apesar de tudo, apesar de tudo, é preferível não entender, não entender, não entender.

Gonçalo M. Tavares. (2015). Breves notas sobre música. Lisboa: Relógio D' Água.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

A palavra e o mundo - Cidade Aberta (II)

"Eu esperava ser tocado pela elegância, não pela imortalidade. (...) É uma prova daquilo em que acredito; as pessoas podem viver juntas, mantendo intactos os seus próprios valores. Ver aqui esta quantidade  enorme de gente de vários países toca o meu lado humano, o meu lado intelectual."

A cidade como um território de conhecimento, o espaço físico, social e cultural onde cada um estabelece relações de proximidade e de quotidiano. A cidade como espaço individual, de conquista de sonhos, da ternura escondida nos olhos, na luz das estrelas que nos visitam entre a dança das nuvens.
A cidade como construção, entre a solidão dos passos conquistados ao tempo. Num território com tantos olhares, o que podemos concretizar de descoberta, de encontro em avenidas de luzes, onde cada solidão tenta respirar uma possibilidade. A cidade, os nossos passos no desejo de conhecimento e conquista dos sorrisos e abraços que nos envolvam nas esquinas que percorremos entre as luzes e a solidão.  

Cidade Aberta, no sentido de um espaço social e cultural que se deixa conhecer, onde uma multidão de pessoas de diferentes origens convivem, onde experimentam a vida, a sua continuidade entre os dias novos e os espaços da memória. Cidade Aberta reflecte sobre esse encontro, sobre a nossa presença no quotidiano, sobre o multiculturalismo e o que significa ser estrangeiro numa cultura, o que significa a individualidade numa sociedade de écrans. 
Cidade Aberta é sobre esse espaço cultural e humano intrigante que é Nova Iorque, como a poderíamos habitar, como a vemos, como a poderemos viver com a insegurança, o medo, a perda que significou ali estar após o onze de Setembro. Teju Cole, pela voz de um médico nigeriano, Julius tenta fazer esse caminho. Um caminho onde o sofrimento e a solidão se realiza entre as dúvidas e a esperança de descoberta em cada esquina, em cada rua. 

Cidade Aberta procura ver, mais que olhar e tentar encontrar-se na Big Apple com o outro, com a sua descoberta para a construção de uma identidade, embora saibamos que assim sendo cidade aberta não deveria ser esse território de solidão e tantas vezes abandono. A fragilidade de tantos indivíduos e o modo como num espaço de consumo material as diferenças podem ser questionados, dará à individualidade possibilidades de ser aceite? 
Pode a igualdade ser diluída num mar de ideias vazias para com a respiração de cada um? Um livro imenso sobre a cidade, e a incessante luta da liberdade para configurar as possibilidades humanas que uma solidão numa cidade pode esvaziar e limitar o discernimento para se encontrar com os outros. É neles, nos habitantes da cidade aberta que a sociedade como um cosmos se desenvolve e onde o valor individual se inscreve.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

A palavra e o mundo - Cidade Aberta (I)


Nunca imaginei que fosse possível vê-las, com a poluição de luz a envolver perpetuamente a cidade e numa noite em que estivera a chover. Mas a chuva tinha parado enquanto eu descia as escadas e tornara o ar límpido. (...) Estrelas maravilhosas, numa nuvem de pirilampos ao longe: mas eu sentia no meu corpo o que os meus olhos não podiam alcançar, ou seja, que a sua verdadeira natureza era o persistente eco visual de algo que pertencia já ao passado. (...) nos espaços escuros entre as estrelas mortas, a brilhar, havia outras estrelas que eu não podia ver, estrelas que ainda existiam e emitiam uma luz que ainda não tinha chegado até mim, estrelas vivas e a emitir luz, mas para mim apenas presentes enquanto interstícios vazios. A sua luz acabaria por chegar à Terra, muito depois de eu e a minha geração e a geração seguinte nos encontrarmos fora do tempo (...). Olhar para esses espaços escuros era como ter uma perspetiva direta do futuro.

Teju Cole. (2012). Cidade Aberta. Lisboa, Quetzal.