domingo, 30 de novembro de 2014


"Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes« (1)

O apelido de Pessoa remete-nos para o teatro grego, as máscaras com que cada um enfrentava as dificuldades, os desastres a que não cediam de ultrapassar. Pessoa transporta-nos para essa noção de diversidade, de multiplicidade do individual. O poeta de que aqui falamos e que hoje se evoca o seu desaparecimento físico, há justamente setenta e nove anos, é uma figura marcante da cultura europeia e mundial. Representa a procura para num mundo coletivo, exprimir a voz do indivíduo, do seu olhar e das suas possibilidades.

Pessoa foi influenciado por um conjunto de circunstâncias, as suas, as do seu tempo, que lhe criou um ambiente histórico onde já se determinavam as dificuldades do Portugal Contemporâneo. A saber, O Ultimatum inglês, a decadência da monarquia, as dificuldades de afirmação da República, a instabilidade política e social, os acontecimentos trágicos à volta de Sidónio Pais. A confirmação de um regime onde a dignidade do ser não existia assegurou-lhe um Portugal cinzento, sem visão, nem futuro. Pessoa soube criar uma poética que respondia à multiplicidade individual, oferendo-nos a dimensão moderna, universal do homem como medida de realização de um todo. Afinal o que pode ser a vida?

Neste caminho em contínua aprendizagem que dimensão nos pode transportar para uma felicidade mais próxima da respiração de cada um? Um trajeto em que apenas o visível pelos sentidos se pode apreender, acima de qualquer ideia moral, como em Alberto Caeiro, ou o modernismo tecnológico do mundo de Álvaro Campos, ou os constantes valores culturais da memória de Ricardo Reis? Afinal não são os heterónimos diferentes possibilidades de olhar para a afirmação do género humano nessa aventura que é viver?

Em todo este complexo modo de ser, Pessoa afirmou-nos que é pela força das ideias que o País poderá ter a sua única possibilidade de se afirmar no mundo desenvolvido. A Mensagem, mais do que um relato de feitos do passado transporta-nos para essa ideia de um Quinto Império em que Portugal para ser autónomo, diferente, melhor, só o pode concretizar se for autêntico, se souber assumir a sua verdadeira dimensão.

Pessoa afirmou-se modernista pela sua tentativa de transformar o futuro do País pelas ideias, pela arte, pela cultura, no sentido de cada indivíduo poder participar na construção de uma comunidade. Quantos que governaram este País, inclusivé no presente, se esqueceram deste simples princípio? Pessoa é

um criador universal, porque soube criar as diversas possibilidades do indivíduo, a sua multiplicidade onde se encontram inscritos, os valores humanos. Afinal o que poderemos ser em cada dia, reconstruindo o futuro quotidianamente, é uma das suas grandes ideias. Partindo de uma experiência individual, as suas palavras reforçam a nossa humanidade, como valor universal.

Só os homens geniais conseguem acima da espuma dos dias, verificar o movimento mais profundo e compreender como poderemos ser mais dignos como País, nas palavras de Almada. Existir é pouco para uma dimensão mais consciente da vida. A genialidade de Pessoa é essa. A de revelar a necessidade de quebrar a incerteza que reina nestas praias em sucessivas gerações. Mariano Deida afirmou, há alguns anos, que o poeta de Autopsicografia inventou a própria literatura, no sentido não de ter criado palavras novas, mas de nos revelar dimensões novas do sentir/sentido humano.  

O autor de Guardador de Rebanhos ou de Mensagem ou de Tabacaria é o maior dos nossos poetas, o filósofo das partidas esquecidas e dos sonhos de conquista do infinito universo. Chamou-se Pessoa, Fernando Pessoa, andou por aqui durante os milénios dos seus sonhos e faz hoje setenta e nove anos que adormeceu. Continua a interrogar o real tão feito de aparentes compromissos de verdade e imaginação.
(1) Ricardo ReisOdes
Imagem, in f.Pessoa.com

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Columbano Bordalo Pinheiro

(Columbano Bordalo Pinheiro - O grupo do Leão)

Um dos quadros de um dos mais importantes pintores portugueses, exposto no Museu do Chiado e que expõe um dos encontros de artistas e amigos que se reuniam na cervejaria Leão, em Lisboa. Funcionava como espaço de convívio e de tertúlia, com Silva Porto, expoente da pintura contemporânea e que em Lisboa contribuiu para um ambiente de tertúlia pouco comum na capital, e que se animou muito, sobretudo após o regresso daquele de Paris. Enquadra-se no período do realismo, já na fase de abandono das projecções românticas e com a preocupação de revelar o olhar mais cru do artista

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Memória das palavras de Cecília Meireles


Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de noite fria.

O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.

Repara a canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.

É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.

Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.

E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura

por eternidades serenas.

(No nascimento de Cecília Meireles, uma das poetas mais importantes da língua portuguesa do século XX, que nos deu poemas de procura da simplicidade, entre os elementos mais característicos da natureza humana, a nossa transitoriedade, nesse jogo difícil entre o efémero e o eterno). 

Cecília Meireles, «Serenata», in Da Viagem (1939)
Imagem, in folhademinasgerais.blogspot.com


Um escritor no mês - Albert Camus


"Bem pobres são aqueles que precisam de mitos. Descrevo e digo: 'isto é vermelho, azul, verde. Isto é o mar, as montanhas, as flores.' Tenho eu necessidade de falar de Dionísio para dizer que gosto de esmagar bolas de lentiscos debaixo do meu nariz?"  (1)

Há um pouco mais de cem anos nascia um dos grandes (a palavra é pobre para o exprimir) pensadores sobre a condição humana. Foi identificado como um dos que pertenceu a um século onde alguns homens pensavam a sociedade ou para indicar possibilidades ou para forjar caminhos alternativos, os chamados intelectuais. A palavra não lhe faz completa justiça, pois ele foi sobretudo uma voz moral, acima da pequena política, das intrigas de palácio, onde soube falar sobre a natureza humana e dar-nos esse ânimo na voz que caminha entre a desistência mais passiva e o não afirmativo, comprometido, solidário por uma causa. A sua causa foi a da democracia da beleza, conceito, nobre à procura de uma revolução, sim a a da vida, como ele também expressou.

Filho de outro continente, das geografias humanas colonizadas, dessa mistura de povos e culturas, filho nas margens da sociedade, cultivou a resistência e o estudo como a verdadeira porta para se ser livre. É assim filho dessa ideia, que a França cultivou de que uma educação republicana, poderia fazer nascer um País desenvolvido. E escreveu sobre nós, as nossas ambições, a fragilidade humana na efemeridade do tempo e os valores morais que devemos vestir em qualquer contexto. Tony Judt chamou-lhe o 'Melhor homem de França' e esta sente-lhe a falta, desde que se tornou passivamente indiferente à contemporaneidade.

Escreveu O estrangeiro, A peste, O mito de Sísifo, Os discursos da Suécia, A morte feliz e O primeiro homem. Foi Prémio Nobel da Literatura em 1957 e é das poucas vozes coerentes do século XX onde podemos ainda ver o caos e a angústia dos tempos modernos como uma forma de expressão da humanidade, da nossa natureza. Compreendeu os limites das tiranias do século XX, antes de algumas das suas vozes mais sonantes e devemos-lhe isso, essa coerência pelo que somos. Caminhou sozinho, com a voz interior de um oráculo que se quer descobrir a si nos outros.

Essa felicidade que procurou, que procuramos, entre múltiplas imagens, na procura da memória mais bela a fundir no sonho, entre o universo visível que nos é dado a ver e a nossa experiência humana. Chama-se Albert Camus e nasceu há muitas décadas para que o visitemos nestes tempos obscuros que exigem um conhecimento de um homem essencial do século XX, de múltiplos séculos, nessa luta essencial entre o absurdo e a revolta, para a construção do possível humano.