segunda-feira, 20 de agosto de 2018

As palavras e o tempo


Deixou-se afogar numa frase. Tinha uma relação íntima com as palavras. sentindo sede, lia a palavra 

Água

escrita numa folha, às vezes sobre a pele, a própria ou a de alguém que pudesse sentir como sua, e desapareciam-lhe todos os desertos do mundo e da boca.

A cada página, um biejo dado, uma montanha escalada, uma estátua erguida. Livros houve que fizeram dele o maior pintor de todos os tempos, mesmo que fora dos livros não fosse capaz de distinguir um traço de uma cor, eram conceitos esquivos.

A fome, matou-a com a pontuação de frases estudadas, cusoiu na cara dos infractores, governantes de mais nada a não ser de si próprios, exoloeadores, conspiradores, esclavagistas.
Mais que viajar no tempo, fez o tempo viajar em si, foi o primeiro organismo unicelular, a flutuar no líquido amniótico do planeta, um mar de esperanças, de probabilidades, de fantásticos acontecimentos e rotineiras evoluções. Foi a água que nos divide, foi muitos em simultâneo, tempo infinitos e dispares com deiferentes traduções, cada caminho uma linguagem. Foi a vitória genética a caminhar sobre a terra e a perfeição aquática que se instala nas profundezas, foi o pássaro que se fez levar pelas correntes aéreas, o azul da natureza na sua etérea condição.

Subiu às árvores e tocou o dia, seguiu a matilha e uivou à lua, os seus dias foram horas que foram séculos que foram milénios, andou de pé, um passo de cada vez, dois apoios sobre o verde, a terra molhada e depois seca, foi o caminho que seguiu, todos os que pôde seguir, não decidiu onde estar, escolheu tudo o paralelo de tudo. Num frenesim evolutivo, descobriu o fogo. Pedra lascada, inventou a roda, construiu cidades, foi todas elas, os impérios que ergueu, as civilizações que fez cair, foi a agridoce extinção, foi perpétuo. Morreu, renasceu, foi ressureição e fim trágico, doce, esperado, adiado, inevitável. 

Foi povos inteiros em jornadas pelos continentes, caminhou sobre as placas tectónicas quando ainda estavam juntas, foi às profundezas, foi o tremor a rasgar o solo, foi a incerteza de gente que se viu afastada, a ânsia do regresso, de uma descoberta, foi fascínio e medo. Foi todos os bravos que atravessaram os oceanos apara chegar ao outro lado, foi os mares e o chão, foi a brisa que dá a volta ao mundo, foi o próprio planeta, feito de pó das estrelas, foi o sol, todas as constelações, o insecto esmagado na palma da mão, a sua e todas as outras. Foi gueereiro e foi à guerra, o assassíno e a vítima, a morte e o choro de todos os bebés, os nascidos e os eternamente por nascer, foi a civilização que grassa e conquista terreno sem dó nem piedade, foi todos os sentimentos que assombram os apaixonados, os prisioneiros, os condenados.

Foi cliente num café de bairro e sentou-se sem exigir nada a ninguém, trouxeram-lhe um copo de água escrita que não soube agradecer, o empregado ficou à espera de um qualquer pedido que nunca veio, um bolo, um galão, um pão de leite com um pouco de manteiga, só uma das metades barrada, caprichos de pequeno-almoço ou do lanche a meio da tarde, hábitos que ajudam a matar o tempo e o bicho. Nada, nunca pediu nada, nem silêncio nem outro ruído que não fosse o ocasional estilhaçar de uma chávena no chão ornado de guardanapos e migalhas.

Deixou-se afogar numa frase e esqueceu-a por momentos que duraram uma vida. Quando lhe perguntaram qual era, nunca soube o que dizer. Viveu bem assim, até fachar o livro.

Filipe Homem Fonseca, "O tempo que viaja", in Revista Bertrand.
Imagem: Copyright - Hans Silvester, Man reading a book with sika deers, Nara Park, Japan, 1960's