sexta-feira, 29 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XXIX - 3.º Ciclo)

"Laranja Helena sacudiu-se no seu ramo:
- Estarei pronta, maninhas? - perguntou.
As irmãs afinavam com este tratamento. Tinham ouvido o jardineiro da Câmara dizer a um miúdo que as ervas daninhas arruinavam tudo e tendo confundido "Daninho" com "Maninho" ficaram com horror a tal palavra. Então de cada vez que Laranja Helena lhe chamava "Maninhas" a perguntar se já estaria pronta, as irmãs só pensavam em vingar-se e respondiam sempre:
- Agora pronta! Ainda és uma criança! Olha para as tuas bochechas: verdes que nem alfaces! Bebe sol, be sol!


Laranja Helena estendia-se o mais que podia - e não podia muito, pois era redondinha - e toca de sorver o sol do outono sempre que ele conseguia atravessar as nuvens. Chupava os raiozinhos - chlop. chlop, - até ficar com a barriga cheia. Inchada não direi, porque Laranja Helena já era por natureza completamente redonda, mas... a sentir-se inchada, com uma indigestão de sol, se bem me entendem.
- Estarei pronta, maninhas? Estarei pronta?

Queria era saltar para a rua e correr mundo. Mas as irmãs, zangadas com o "maninhas", iam e respondiam:
- Qual pronta nem meio pronta! Só se fosses limão!
- Estás amarelinha que pareces doente. Toma sol, toma sol!

O que estava a tornar-se cada vez mais difícil porque vinha o inverno e o próprio sol, em vez de alaranjado, andava pálido como se tivesse adoecido com alguma gripe. Laranja Helena bem chupava - chlop. chlop - mas, em vez de fortalecer-se, enfraquecia. Passou por lá um melro e disse:
- Oh, que laranja tão apetitosa! Bastante mais madura que as irmãs!
- Madura, eu? - disse Laranja Helena muito, muito pasmada. - Estás a troçar de mim?

O melro não gostava que lhe dissessem aquilo. Tinha a mania da verdade e do prestígio. Quando ele falava, queria ser escutado e ser seguido sem a menor dúvida. Vai, deu uma bicada na Laranja.
- Ai, ai - chorou-se Helena, bastante apoquentada. - Não compreendo a vida. Vou é deixar-me apodrecer aqui.
 
As irmãs e o melro tiveram pena dela.
- Quem te disse que não estavas madura? - perguntou ele, a chilrear um pouco.
- Foram as minhas irmãs - respondeu Laranja Helena a soluçar.
- Que disparate foi esse? - disse o melro às irmãs, fazendo voz de juiz. Devo dizer que o melro adorava estas coisas.
- Bom, isto é... - começaram as irmãs. - Ela chama-nos nomes muito feios. "Maninha" quer dizer; que só faz mal, que destrói tudo em volta, coisa assim.
- É? - hesitou o melro, que não possuía grande vocabulário.
- Que ideia! - indignou-se Laranja Helena. - "Maninhas" quer dizer"manas", "irmãs". Nunca ouviram falar em diminutivos?
- É - repetiu o melro, atrapalhado- Nunca ouvira falar, mas não o confessou. 
 Vão ser ao dicionário, ignorantes! - disse Helena, sentido que podia desforrar-se. - Vejam no "D" e no "M", e peçam-me desculpa!...
Na laranjeira não havia dicionário. O melro ofereceu-se para ir buscar um. Pelo caminho aproveitou para ver os significados de "Daninhos" e de "Maninho". Quando voltou à árvore vinha mais confiante.
- Bem - disse ele -, eu trouxe o dicionário mas nem vale a pena vocês verem. Eu posso explicar perfeitamente. "Daninho" quer dizer "que causa dano" e "Maninho" quer dizer "estéril, inculto" e é também o diminutivo de "Mano", que por sua vez é uma palavra familiar para "Irmão".
O melro pigarreou e inclinou a cabeça À espera de que o aplaudissem. Mas havia um silêncio gravíssimo à sua volta.
- O que quer dizer "esterilinculto"? - perguntaram finalmente as irmãs Laranjas, que eram desconfiadas.
- Ai! - exclamou o melro, olhando para o relógio. - Está na hora da minha aula de canto. - E toca de voar antes que lhe fizessem mais perguntas.
Laranja Helena começou a pentear-se e a vestir o casaco.
- Obriga, maninhas - disse, a rir. - Graças a um equívoco, vocês obrigaram-me a tomar tanto sol que já estou mais que pronta para ir correr mundo. Enquanto as maninhas, coitaditas, estão ainda tão necessitadas de luz e de calor para alaranjar e á é inverno!...
- O que é equívoco? - perguntaram as irmãs.
Mas já Laranja Helena ia, saltinho aqui, pulinho ali, coradinha e lustrosa que dava gosto vê-la, a correr o seu mundo.

A luz de Newton / Hélia Correia. Lisboa: Relógio D´ Água, 2015.
Imagem: blog: plantei.br

Minutos de leitura (XXIX)

"Era uma vez uma casa muito arrumada onde morava um rapaz muito desarrumado. E o rapaz tinha a impressão de que não era feito para morar naquela casa. Ali os relógios estavam sempre certos mas ele andava sempre atrasado. Ele esquecia-se da bola na sala e dos livros no jardim. Ele deixava a caneta na cozinha, os sapatos no corredor, o relógio no lavatório. Porque jogava à bola na sala, lia no jardim, escrevia em toda a parte, despia-se no corredor e só se lembrava de tirar o relógio quando já estava dentro do banho. Por isso todos ralhavam com ele e pensava:
     - Esta casa é um tribunal.
     Havia horas certas para tudo, leis, regras, lugares para pôr as coisas.
     E o rapaz que se chamava Ruy deitava-se infeliz e cismando nas ervas do jardim.
     Era raro o dia em que ele não entornava ou um copo na mesa, ou um tinteiro nos cadernos, ou uma jarra no tapete, ou um cinzeiro em cima das visitas.
      Parecia-lhe que tinha braços e pernas a mais pois quando entrava numa sala tropeçava num tapete, pisava as senhoras e dava sempre uma canelada em alguém. Tinha que passar a vida a pedir desculpa.
     E à noite abria a janela do seu quarto, respirava o vento que vinha de longe, olhava as estrelas e pensava na liberdade. Já não era um rapaz pequeno mas ainda não era um rapaz crescido. Tinha ordem de ir de casa direito para o colégio e de vir do colégio direito para casa. O colégio ficava a vinte minutos de distância e ele conhecia palmo a palmo aquela rua.
     À volta da casa havia um grande jardim. E enquanto Ruy era pequeno o jardim parecia-lhe enorme com as suas tílias profundas, as suas magnólias de folhas brilhantes e as suas palmeiras despenteadas. Mas com o tempo o jardim foi diminuindo. Era como se o muro se fosse apertando lentamente como um laço. E tudo isto parecia irremediável. Mas um dia Ruy, depois de ter partido um copo e pisado uma visita, foi para o fundo do jardim e deitou-se na relava em frente ao muro, à sombra duma tília, sozinho e cismando.
     Era o fim dum dia de Primavera. Ruy sentia-se ao mesmo tempo feliz e infeliz. A leveza do ar, a cor vermelha do poente, o brilho e a frescura das árvores, o perfume das flores, a doçura quebrada da luz pareciam prometer-lhe uma felicidade maravilhosa. Mas ele não sabia nem como nem quando nem onde a poderia agarrar. Parecia-lhe que, algures no vasto mundo, se estava a preparar uma festa incrível a que ele não poderia assistir. Porque a festa se passava fora de muros e ele estava preso dentro dos muros. (…)
     Os dias foram passando, com aquela pressa que o tempo sempre tem quando não estamos a reparar nele. Todas as manhãs, os dois rapazes e a rapariga saíam para o treino. Todas as tardes, Ruy ensinava a Gela as letras e os números, tal como aprendera na escola, enquanto Yanko se distraía a inspecionar ninhos de pintarroxo, a estudar as rendas cuidadas de uma teia de aranha, a descobrir a toca de um toirão no buraco de uma árvore, seguindo o rasto deixado pelas suas pegadas durante a noite. Ruy agora que aprendera a respeitar o tempo e o espaço das coisas, descobria-se a fazer o que antes lhe parecia impossível. (….) Fontes corriam em cascata, o musgo cobria as pedras enormes, um curto vento agreste surgia entre as árvores. Ruy contemplava o vale trincando uma folha amarga de loureiro.
   - Gela - disse ele chamando a rapariga do arame.
   - Diz - perguntou Gela.
   - É aqui que vocês moram?
   - Gela olhou-o de frente.
   - Nós não moramos aqui nem em nenhum outro lugar - disse ela. - Nós não moramos, nós vamos". 
Os ciganos / Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XXVIII - 3.º Ciclo)

"Violeta, sob as sombras, definhava:
- Meu Deus! Que triste vida! Não acontece nada...  E eu, tão bonita, com tão doce cheiro, aqui presa no mato, debaixo destes tufos, sem poder correr mundo, vir nos jornais, entrar na sociedade!...



E vá de lamentar-se, chorar e pôr perfume; pôr perfume, chorar e lamentar-se, dia e noite, sem fim, que até fazia dó. "Fazia dó" é só um modo de dizer porque os vizinhos de Violeta não tinham pena nenhuma dela e andavam mesmo muito aborrecidos com aquele estardalhaço de choros e lamentos e um tal exagero de perfumes que abafava qualquer odor em volta.

- Ora esta! - exclamava um dente-de-leão. - Vem a gente para aqui para gozar os bons ares e parece que está no átrio de um teatro.
- Já é preciso azar - diziam as urtigas. - O que custou à nossa mãe-semente voar por essas serras contra todos os ventos para achar esta encosta recatada e tranquila... para afinal morarmos ao lado desta vampe que não faz outra coisa senão incomodar-nos!...

Eetcétera. Havia, por exemplo, um gafanhoto todo ecologista que acusava a Violeta de sufocar o aroma balsâmico das seivas. E havia mesmo um pé de hortelã-pimenta que se esticava todo para ver se saltava e se ia plantar um pouco mais além, onde os homens, passando, dissessem:
- Que bom cheiro a hortelã-pimenta!
Em vez de: - Que bom cheiro a violetas!

Para Violeta, estes elogios e aquelas invejas e recriminações não chegavam para dar sentido à vida. Queria sair da sombra, da mediocridade. E viu passar a brisa:
- Brisa, minha boa brisa, toma-me nos teus braços e leva-me contigo para uma cidade, onde eu possa brilhar, ser admirada, ganhar muito dinheiro, dar autógrafos...

A brisa estava com falta de paciência. Por todos os lugares onde passava havia sempre alguém que suspirava, punha os olhos em alvo e começava:
- Brisa, minha boa brisa, faz-me isto, faz-me aquilo...

Ora tomara a brisa que a deixassem em paz! Bastante apoquentada andava ela com o próprio destino: para cá, para lá, vem do mar, vem da terra, carrega agora o cheiro do pinhal, agora o cheiro da lenha, o cheiro a mosto, daqui para ali, dali para aqui, sem descansar... Para quê? Sim, para quê? Ninguém sabia.
- Estúpida Violeta! - disse a brisa que, além de impaciente, era mal-educada. - Ando eu aqui estafada de um lado para o outro e tu aí quietinha, bem comida, bem dormida, abrigada e bem-cheirosa e ainda me vens por cima com Literaturas! 
Literaturas baratas, já se vê, tiradas das cantigas que os homens trazem para o campo em rádios quando fazem piqueniques aos domingos. "Brisa, minha brisa, isto e aquilo..." Julgam que eu sou a mala-posta, ou quê? Não levo nada, não trago nada para ninguém. Ponto final!

Violeta ficou muito ofendida. Chorou, chorou, chorou: fez um laguinho com as suas lágrimas. Vai o sol, achou graça àquele laguinho. Esgueirou-se entre a folhagem e foi para lá brincar. Vai, fez-se um arco-íris: lindo, lindo!... Violeta sorriu. Olhou melhor. Uma das cores estava a dizer-lhe adeus.

- Olá - disse a Violeta. - Quem és tu?
- Eu sou  Violeta - disse a cor.
- És tão bonito... - disse a Violeta. - Seremos nós parentes?
- Temos muitas parecenças - disse a cor. - Olho para ti e até parece que me reconheço.
- Vem ter comigo - suspirou a Violeta.
- Vou tentar - disse a cor. E deu tanto esticão que se soltou do arco-íris. Vai, poisou sobre a flor e sentiu-se tão bem, tão bem, que lá ficou. Agora, conta histórias do que viu quando andava no céu ou entre as chuvas, ou nos jardins, no meio dos repuxos.

E a Violeta . está claro - ri-se, ri-se, tornou-se bem-disposta, perdeu as ambições: não quer saber de autógrafos para nada. Ou não fosse esta, verdadeiramente, uma história de amor com violetas."

A luz de Newton / Hélia Correia. Lisboa: Relógio D´ Água, 2015.
Imagem: Veilchen & Bilder

Minutos de leitura (XXVIII)

Dezassete vezes tentou Ditosa levantar voo, e dezassete vezes acabou no chão depois de ter conseguido elevar-se uns poucos centímetros.
Sabetudo, mais magro que de costume, arrancara os pelos do bigode depois dos doze primeiros fracassos, e com miados tremendos tentava desculpar-se:
- Não entendo. Revi conscienciosamente a teoria do voo, comparei as instruções de Leonardo com tudo o que se diz na parte delicada à aerodinâmica, volume primeiro, Letra “A” da enciclopédia, e no entanto não conseguimos. É terrível! Terrível!
Os gatos aceitavam as suas explicações, e toda a sua atenção se centrava em Ditosa, que depois de cada tentativa falhada ia ficando mais triste e melancólica.
Depois do último fracasso, Colonello decidiu suspender as tentativas, pois a sua experiência dizia-lhe que a gaivota começava a perder confiança em si mesma, e isso era muito perigoso se de verdade queria voar.
- Talvez não o possa fazer – opinou Secretário. – Se calhar viveu tempo de mais connosco e perdeu a capacidade de voar.
- Seguindo as instruções técnicas e respeitando as leis da aerodinâmica, é possível voar. Não se esqueçam de que está tudo na enciclopédia – apontou Sabetudo.
- Pelo rabo da raia! – exclamou Barlavento. – Ela é uma gaivota e as gaivotas voam!
- Tem de voar. Prometi-o à mãe e a ela. Tem de voar – repetiu Zorbas,
- E o cumprimento dessa promessa obriga-nos a nós todos – recordou Colonello.
- Reconheçamos que somos incapazes de a ensinar a voar e que temos de procurar auxílio para além do mundo dos gatos – sugeriu Zorbas.
- Mia claramente, caro amico. Aonde é que queres chegar? – perguntou Colonello, sério.
- Peço autorização para quebrar o tabu pela primeira e última vez na minha vida – solicitou Zorbas fitando os seus companheiros nos olhos.
- Quebrar o tabu! – miaram os gatos pondo as garras de fora e eriçando os lombos.
Miar a língua dos humanos é tabu. Assim rezava a lei dos gatos, e não porque eles não tivessem interesse em comunicar com os humanos. O grande risco estava na resposta que os humanos dariam. Que fariam com um gato falante? Com toda a certeza iriam encerrá-lo numa jaula para o submeterem a toda a espécie de provas estúpidas, porque os humanos são geralmente incapazes de aceitar que um ser diferente deles os entenda e trate de se dar a entender. Os gatos conheciam, por exemplo, a triste sorte dos golfinhos, que se tinham comportado de uma maneira inteligente com os humanos e estes tinham-nos condenado a fazer de palhaços em espetáculos aquáticos. E sabiam também das humilhações a que os humanos sujeitam qualquer animal que se mostre inteligente e recetivo com eles. Por exemplo, os leões, os grandes felinos obrigados a viver entre grades á espera de que um cretino lhes meta a cabeça entre as mandíbulas; ou os papagaios, encerrados em gaiolas a repetir parvoíces. De tal modo que miar na linguagem dos humanos era um risco muito grande para os gatos.
- Fica aqui junto da Ditosa. Nós retiramo-nos para debater a tua petição – ordenou Colonello.
Longas horas durou a reunião dos gatos à porta fechada. Longas horas durante as quais Zorbas se deixou ficar deitado junto da gaivota, que não escondia a tristeza por não saber voar.
Era já noite quando terminaram. Zorbas aproximou-se deles para conhecer a decisão.
- Nós, gatos do porto autorizamos-te a quebrar o tabu só desta vez. Miarás apenas com um humano, mas antes decidiremos entre todos com qual deles – declarou Colonello solenemente.
História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar  / Luís Sepúlveda   
Imagem: Copyright  - Jim Braswell

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XXVII - 3.º Ciclo)

"Vivia o Verde muito descansado por cima do seu campo - um tanto combalido quando vinha o domingo e os miúdos futebolavam todo o dia em cima dele. Mas então!.... Ele gostava era daquilo!...
- És um masoquista - diziam-lhe os amigos.
-Chamem-me nomes! - retorquia o Verde. - Eu é que sei como é que me divirto!

E divertia-se, por debaixo dos ténis dos miúdos, a senti-los driblar, fintar, golear, sei lá que mais? - Aquelas coisas que os pés fazem no futebol...
Quando não eram miúdos, eram os cães. Escavavam o Verde, faziam-lhe cocó ele achava graça. 
Um dia, ouviu uns homens que s´estavam a dizer:
- Vamos fazer aqui prédios de vinte andares.
O Verde estremeceu. Queixou-se a um cachorro que o veio visitar.
- Ora! -disse o cachorro. - Prédios é que eles não fazem. 

Foi chamar os amigos e veio a canzoada - béu-béu-, dezenas deles, todos a ocupar o Verde. Chegaram os pedreiros e mais o material para fundar alicerces - ão! - ão! -: "Aqui d´El-Rei! Pernas, para que vos quero?!», deitaram a fugir daquele grande exército de cães, dentes arreganhados, baba a escorrer da boca, olhos em sangue, ai, ai, feras autênticas!...

Por três dias seguidos se repetiu a festa. Os cães estavam cansados. E chegou o domingo. Vieram os miúdos. Avistaram os cães e pegaram em pedras. Porquê? Por nada. É que era sempre assim.
- Deixem-se de parvoíces! - exclamaram os cães. - Não temos tempo para brincadeiras.
- O que foi? - perguntaram os miúdos.

Ficaram a saber. Puseram-se de guarda a defender o Verde com os cães.
Mas na segunda-feira tiveram de ir para a escola. Quem apareceu para guardar o Verde foram os pais e os irmãos mais velhos e uns amigos dos pais e dos irmãos mais velhos que o nosse Verde nunca tinha visto.

- Quem são vocês? - resolveu perguntar àquela gente toda.
- Somos os verdes - responderam eles.
- Muito... prazer... - cumprimentou o Verde, todo moído já pelas patas dos cães, as botas dos miúdos e o medo às escavadeiras. - Se também vêm para me defender, podiam pôr-se à volta e não em cima, que me doem as costas, se faziam favor.
E os verdes puseram-se à volta e não em cima. Como eram já um tanto conhecidos, veio a televisão e filmou tudo.
Então o empreiteiro coçou o queixo e disse:
- Se calhar é melhor não fazermos mais ondas. Deixa isto esfriar para ficarmos bem-vistos. 

O Verde respirou, aliviado. Os pedreiros foram-se embora com as máquinas. Os verdes foram para casa escrever a história num papel para distribuir. Os miúdos por lá andam a futebolar. Só os cães é que estão desconfiados. Eles, que sabem o que custa conseguir um simples osso para matar a fome, acham muita fartura que o empreiteiro tenha desistido de destruir o Verde assim tão facilmente.

O Verde é que, coitado, não foi feito para guerras. Lá está, refastelado, estendido no seu campo, tomamdo os seus refrescos, tendo os seus futebóis, sempre ligeiramente escavacado, sempre de bom humor...
Que viva o Verde!"

A luz de Newton / Hélia Correia. Lisboa: Relógio D´ Água, 2015.
Imagem: Copyright -Andreea Draghicihici

Minutos de leitura (XXVII)

"Desculpe,
Posso fazer-lhe um pedido?...
Traga-me um dia comprido,
Em copo alto, de vidro,
Com gelado, insetos e flores.

Ponha fruta variada
- Melão, ameixas, coco ralado -
E no fundo do copo,
Não se esqueça, por favor,
Um pêssego alaranjado
Para fazer de sol-pôr,
E decore com uma sombrinha
De um azul-céu, delicado,
Só por causa do calor.

Até já e obrigado!

Ah, desculpe... Por gavor!
Pode também ver se há
Uma flor de jacarandá
Para eu limpar a boca?"



"Na esplanada" in Poemas para as quatro estações / Manuela Leitão; il. Catarina Correia Marques. Lisboa: Máquina de voar.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XXVI - 3.º Ciclo)

"Azul estava confuso. Vivera convencido de que era a cor do céu. Tinha lido poesias dos melhores autores e ele próprio escrevera uns versos a respeito, de uma vez em que estivera apaixonado por uma mulatinha de olhos claros. Azuis eram o céu, os miosótis, o mar tranquilo e os olhos das amadas - sempre assim fora e assim devia ser.
E, afinal, o azul que está no céu não é azul - dizem os cientistas. E nem era preciso que o dissesse. Azul já viu, com os seus próprios olhos, na televisão a cores do vizinho, os astronautas a fazerem piruetas contra o céu - um céu negro, temível, sem fundo, sem distâncias, sem uma nuvenzita sequer para enfeitar. Será que as nuvens também são mentiras? E então o sol? Como é que se segura se não está pendurado sobre o azul do céu?
- Estás é com uma crise de identidade - disse Azulão, o sábio, muito sábio.
- Isso é uma doença? - perguntou azul, cheio de inquietação. Ao mesmo tempo que tinha medo de estar doente, tinha esperanças de sofrer de alucinações que o enganassem quanto à verdadeira cor do céu.
- É uma espécie de doença - disse o sábio. - Uma doença de personalidade.
- Quer dizer que o céu é mesmo azul?

- Bolas! Estou farto de saber que é preto! O que é azul é o planeta Terra.
- É boa! - disse Azul. - Sempre me pareceu verde!
- Os sentidos enganam - disse o sábio. E arrotou, porque as frases profundas lhe causavam transtornos nas paredes do estômago. Puxou de um grande manto, gemeu e levantou-se. - Vai para casa depressa. Não tarda que anoiteça.

azul bem percebia o que ele queria dizer. A noite come todos os azuis. Só por dentro das casas ou sob a proteção de uma luz forte é que podem escapar à escuridão da noite. Azul correu, correu, atravessou as ruas e o cume das montanhas mas, como estava um tanto enfraquecido e de algum modo tonto com tudo o que lhe andava a acontecer, não conseguiu chegar a casa a tempo. A noite vinha - galop, galop, galop - mesmo no seu encalço.

-Ai de mim - disse Azul, escondendo a cara. - Eu já nem me importava com cores nem astronautas! Quero lá saber da minha identidade! Quero é que não me comam, seja lá eu quem for...
Mas a noite - galop - logo ali! Azul deu um saltito, já sem fé. Foi cair na barriga de um inseto.
- Hop! - gritou o inseto, que era muito nervoso. - que diabo foi isto? Quem és tu?
- Sou o Azul - disse Azul a tremer todo.
- Não me digas! A sério? És o azul?
- Sim, senhor - garantiu. E estremecia tanto que acendia e apagava tal e qual uma luz.

O inseto não cabia em si de contente. Esfregava a barriga muito devagarinho, para cima e para baixo, para um lado e para o outro, todo vaidoso com a luz azul.
- Esta agora! Tornei-me um pirilampo! Era o bicho mais feio das redondezas e agora sou o mais bonito, olarila! Eu nem sei a quem hei de agradecer mas o facto é que estou muito agradecido...

Azul, aconchegado na barriga do Agora-Pirilampo, deu uma risadinha. Estava salvo da noite, perdera a crise de identidade com o susto e tornara feliz um inseto complexado. Complexado e intelectualmente um tanto diminuído porque até hoje não compreendeu como foi que se transformou num pirilampo."

A luz de Newton / Hélia Correia. Lisboa: Relógio D´ Água, 2015.
Imagem: Copyright - "ceci le colour de mes reves", Joan Miró, 1925.

Minutos de leitura (XXVI)

"Ah, se eu fosse a menina do mar,
A menina que a Sophia
Pôs-se um dia a imaginar!...

Viver numa poça de água,
Fazer dela o meu abrigo
- Cabeça tonta, esse mar,
Que se esquece de levar
As poças de água consigo!

Pediria às algas verdes
Que fizessem de alface
E à estrela.do-ar, com os seus braços,
Que me desse mil abraços
Sempre que eu precisasse.

Como cabide da roupa
Usaria o camarão
E pediria à anémona
Que me enfeitasse a lapela
Ou fizesse de botão.

Ondeava o meu cabelo
De manhã, ao levantar;
Fazia do mexilhão a sacola
E iria para a escola
Montada na pulga-do-mar.

Amdava de carrossel
Nos braços de um polvo amigo
E o búzio faria o favor
De servir de intercomunicador
Para eu falar contigo.

Quando a noite enfim trouxesse
A lua, para me dar um beijo,
Deitava-me numa conchinha
E ouvia uma historinha
Contada por um caranguejo." 

"A menina de sphia", in Poemas para as quatro Estações / Manuela Leitão. Lisboa: Máquina de voar. 
Imagem: Copyright - Cristina Falcão

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XXV - 3.º Ciclo)

"Era uma vez um homem que nascera para sábio. Ora, às vezes, tal facto aborrecia-o muito. Sempre com o nariz enfiado em livros velhos, sempre a escrevinhar relatórios para enviar aos outros sábios que moravam longe - naquele tempo não havia telefone -, sempre a pensar a pensar e a repensar, a fazer contas, a espreitar para os céus e para os caldeirões, que coisa! Então não tinha direito a descansar?

(SAKIR YILDIRIM | VSCO Grid)Parou e foi abrir uma janela. O sol - se bem que fosse um sol inglês, estva cheio de força naquele dia - entrou por ali dentro, todo entusiasmado, porque era muito raro permitirem-lhe fazer uma visita àquele laboratório. Com a pressa, tropeçou contra um prisma de vidro e desfez-se nas suas sete cores. Surgiu um arco-íris na parede.

O sábio percebeu tudo o que se passara e ficou ainda mais aborrecido:
- Pronto! Agora estraguei o mistério que havia no Arco-Íris do céu! Não passa de um espectro da luz solar que se refrata nas gotinhas de água. Acabaram-se as histórias sobre as panelas de ouro escondidas no lugar em que ele toca na terra. Ninguém mais verá nele a túnica de Íris, mensageira dos deuses, nem o sinal da paz entre Jeová e os homens. Mas que grande chatice!

Para desanuviar, foi dar um passeiozinho. Mas, como estava pouco habituado a andar, depressa se cansou. Sentou-se à sombra de uma macieira. E vai, caiu-lhe um fruto em cima da cabeça. 
Estava a saboreá-lo com delícia quando gritou de novo:
- Que chatice!
Descobrira, ali mesmo, as leis da gravidade. "

"A luz de Newton", in Hélia Correia / A luz de Newton. Lisboa: Relógio D´ Água, 2015.
Imagens: Copyright - Quentin Blake / Sam Burton

Minutos de leitura (XXV)

"Como vinham com a cabeça no ar, a discorrer, a pensar, o Ouriço e o Coelho perderam-se no caminho de regresso e só chegaram a casa à noite. Já a Lua iluminava o Largo.
A Toupeira e o Caracol tinham acabado de juntar num montinho seis ramos grossos que não eram grandes nem pequenos, mas assim-assim, mesmo ao lado dos fios de trepadeira que o Chapim recolhera.
- Onde estão as vossas rolhas? – perguntou a Toupeira quando os viu chegar sem nada, de patas a abanar.
- Ah! As rolhas… - disse o Ouriço
- Ah! As rolhas… - disse o Coelho
- Perderam-nas? Foram assaltados? Não encontraram nenhuma?
- Fomos atacados. Os dois – respondeu o Coelho.
- Nem queiram saber – acrescentou o Ouriço. – Encontrou-nos o Amor, seja lá isso o que for. Está no ar. Não o encontraram?
- Nós não – disse o Caracol. – Os ramos que apanhamos estavam todos no chão. E talvez o Amor seja uma coisa que se apanha quando se anda a apanhar rolhas.
- Nada disso. É uma coisa que se apanha quando estamos a olhar para alguém e nos cai uma pinha na cabeça- disse o Coelho.
- Ou quando estamos a olhar para alguém e nos entra um cisco num olho – acrescentou o Ouriço.
- O melhor é dizer que é uma coisa que se apanha – concluiu a Toupeira, para poderem avançar.
O Chapim regressava com o seu último carregamento de bagas e abriu o bico para falar quando ouviu aquilo e deixou cair as bagas.
- O Amor! Chhhhh! – disse ele. – Acontece a quem não tem nada que fazer. Nunca ninguém se apaixonou quando andava a apanhar bagas e sementes.
- Mas olha que ele anda no ar – garantiu o Ouriço. – Foi o que disse a Ouriça encantadora que conheci: «Se é Primavera e o Amor está no ar…»
O Chapim, pelo não, pelo sim, voou do ramo onde estava e pousou ao lado deles. Se o Amor andava no ar, era mais seguro ter as patas em terra firme.
- E também está no chão. Ou nós não teríamos apanhado – disse o Coelho.
O Chapim voltou a subir para o ramo.
- Não se aproximem muito, por favor, que isso pode ser contagioso – pediu ele.
A Toupeira assoou o nariz. Estava constipada. Ficava sempre assim quando apanhava o primeiro sol da Primavera. Não estava habituada. Depois perguntou:
- O que te aconteceu afinal, ó Ouriço?
_ Ela cantou a tal canção e entrou-me o cisco no olho. Só podia abrir um olho e só via metade do que se estava a passar. Ou nem isso – disse o Ouriço.
- E então? O Amor é cego – considerou a Toupeira. – Nunca ouviste dizer?
- Foi o Amor à primeira falta de vista – disse o Caracol. – Também já ouvi falar.
- A mim foi uma pancada na cabeça – lembrou o Coelho. – O Amor atira pinhas?
- Faz o que for preciso. Isso eu sei – respondeu a Toupeira. – Talvez estivesses distraído quando devias estar a olhar para a Coelha. O Amor é assim. Atchim!
- Eu diria mais: É assim o Amor – acrescentou o Caracol.
A Toupeira coçou a cabeça.
- O que sentem vocês? – perguntou, a tentar compreender.
Respondeu o Coelho, que foi o mais rápido:
- Sinto-me fraco, sem força nas patas, tão levezinho que uma brisa me pode arrastar. Suspiro, tenho falta de ar. Ah, e também estou muito descoelhado. O que é isso? Aí está, é uma que se sente. E isto são só algumas das coisas de que me lembro assim de repente.
- Sim, isso é o Amor. O Amor é assim – concedeu a Toupeira. – E tu, Ouriço?
- Acho que engoli uma borboleta – respondeu ele. – Ou duas. Ou mil. Sinto que há mil borboletas a voar de um lado para o outro dentro de mim.
- Dentro de ti não há espaço para as borboletas voarem – disse o Caracol.
- Eu sei que não há espaço – concordou o Ouriço. – É por isso que as sinto. Vão contra tudo com a pontinha das asas.
- Ah, isso é o Amor – disse a Toupeira, embevecida.
O Chapim afastou-se para mais longe.
- Não digam alto a palavra «Amor», ou ele cai-nos em cima – aconselhou ele. É melhor dizermos «aquilo que vocês sabem». Eu, pelo menos é o que digo.
Aquilo que vocês sabem! Ora, ora. O Amor era justamente «aquilo que eles não sabiam».
Por outro lado, o Chapim tinha razão. Quando diziam a palavra «amor», mesmo baixinho, ela ficava a tilintar no ar durante algum tempo. Era agradável, mas arriscavam-se a atrair o Amor, que chegava a correr e lhes batia à porta. «Quem é?», perguntavam eles a meio da noite. Não havia resposta. E, no entanto, sentia-se ali uma presença. Era o Amor. Ele chegava e fazia os namorados soar. Não falava, ninguém o via, não cheirava a nada, ou era a isso (a nada) que ele cheirava. Só se sentia. Era o Amor. Abriam a porta e ele entrava.
- Toupeira, tu que leste tantos livros, diz-nos o que é o Amor – pediu o Coelho.
- Os livros também não sabem o que é o Amor. Contam histórias de Amor, coisas que acontecem por causa dele. Umas acabam bem, outras mal e outras assim-assim. Mas o Amor…
Bem, vou para dentro. Tenho tanto que fazer, tantas coisas para arrumar…"
" O lugar desconhecido", in O amor está no ar / Álvaro Magalhães.  
Imagem: Copyright: Carl Brenders

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XXIII - 3.º Ciclo)

- Passar o tempo? – disse a Rainha. – Os livros não são para passar o tempo. São sobre outras vidas. Outros mundos. Longe de querer que o tempo passe, Sir Kevin, quem nos dera ter mais. Se quiséssemos passar o tempo, íamos à Nova Zelândia.
     Com duas menções ao seu nome e à Nova Zelândia, Sir Kevin retirou-se, magoado. Mesmo assim marcou um ponto e ficaria contente ao saber que deixou a Rainha perturbada e a pensar porque é que, neste momento particular da sua vida, sentiria subitamente atração pelos livros. Donde surgiria esse apetite?
     Sim, poucas pessoas tinham visto mais mundo do que ela. Quase não havia país que não tivesse visitado, personalidade ilustre que não tivesse conhecido. Estando ela própria na tribuna do mundo, porque se entusiasmava agora com livros que, por muito que pudessem ser, não passavam de um reflexo ou versão do mundo? Livros? Ela vira a realidade.
     - Eu leio e penso – disse ela a Norman -, porque temos o dever de descobrir como são as pessoas. – O comentário fora tão trivial que Norman não lhe dera muita atenção, pois não sentia esse dever e lia por puro prazer e não para se iluminar ou inspirar, embora soubesse que parte do prazer era inspiração. Mas ali o dever não entrava.
     Para alguém com a formação da Rainha, no entanto, o prazer ocupara sempre o segundo lugar em relação ao dever. Se sentisse que tinha o dever de ler, então podia dedicar-se a isso de consciência limpa, e o prazer, se prazer houvesse, seria inerente. Mas porque é que aquilo se apoderara dela agora? Não discutiu isso com Norman, por sentir que dizia respeito a quem ela era e à posição que ocupava. O apelo da leitura, pensou, vinha da sua indiferença: havia na literatura algo de nobre. Os livros não se importavam com quem os lia, nem se os líamos ou não. Todos os leitores eram iguais, incluindo ela própria. Pensou: a literatura é uma comunidade; as letras são uma república. De facto já ouvira a expressão ”república de letras”, (….) mas só agora compreendia o que significava. Os livros não se submetiam. Todos os leitores eram iguais e aquele livro levou-a ao princípio da sua vida. Quando era nova, uma das suas maiores emoções foi a noite da Vitória na Europa, em que ela e a irmã se esgueiraram pelos portões, incógnitas, e se misturaram com a multidão. Sentia que havia algo disso na leitura. Era anónima, partilhada, comum. E ela, que levara uma vida aparte, ansiava por isso. Aqui, nestas páginas e entre estas capas, podia seguir incógnita. Porém, dúvidas e interrogações eram só o princípio. Uma vez no ritmo normal, deixou de lhe parecer estranho o facto de querer ler, os livros, aso quais se afeiçoara tão cautelosamente, passaram pouco a pouco a ser o seu elemento.
A Leitora Real / Alain Bennett. Lisboa: Asa
Imagem Copyright - The Jewellery Editor

Minutos de leitura (XXIV)

"O Ouriço ficou ali, a olhar para o vazio. Sim, agora havia um vazio. Sentia-se, como dizer?, esquisito. Como se, de repente, o tivesse atacado uma febre, uma doença. Caminhou ao acaso, desorientado, e, mais adiante, encontrou o Coelho, que também estava, como dizer?, esquisito.
- Onde estão as tuas rolhas? -  perguntou o Ouriço.
- Ah! As rolhas! – lembrou-se o Coelho. – Ainda agora estava a tentar lembrar-me do que vim aqui fazer e não me vinha à cabeça. Era isso. E as tuas?
- Acho que estão no mesmo sítio das tuas. Também me esqueci delas – confessou o Ouriço.
- Pois, e também estás, como dizer?, esquisito – reparou o Coelho.
- Eu? Só se for do focinho – disse o Ouriço, a pôr-se diante do Coelho, para ele ver bem.
- O que tem o teu focinho? –perguntou o Coelho, que não via nada de especial.
- Não vês? É empinado.
- O que é isso, empinado?
- Também não sei, mas quando dizemos empinado, sente-se que é uma coisa boa.
- Eu só vejo que estás, como dizer?, esquisito, e não é do focinho – concluiu o Coelho.
- Então é do olho. Encontrei uma Ouriça que me disse que o Amor estava no ar: Eu olhei para ver onde ele estava e entrou-me um pedaço daquilo para um olho.
O Coelho aproximou-se do amigo.
- Deixa ver – disse ele. – Não terá sido um cisco?
- Sim, um cisco daquilo.
- Daquilo o quê?
- Do Amor! – gritou o Ouriço. – E tu? Também estás esquisito e também te esqueceste das rolhas.
O Coelho olhou para o chão, envergonhado:
- Foi uma pancada que apanhei. Até vi um clarão e pontinhos brilhantes no ar. No meio deles estava uma linda Coelha. Havias de a ver.
- Não posso. Só vejo metade do que existe por causa do cisco. Não sai nem por nada. Mas dizias tu…
- A Coelha. Ia a passar. Disse «Olá, Coelho. Está um lindo dia, não está?» e desapareceu. Tinha os olhos vivos, o pelo fofo e macio. E dava saltos tão levezinhos…
- Sabes, acho que estás apaixonado – disse o Ouriço. – Encontrou-te o Amor, seja lá isso o que for.
-O Amor? – gemeu o Coelho. – Também lhe chamam a doença da Primavera. Mas como é que sabes?
- Por experiência própria – respondeu o Ouriço. – Encontrou-me a mim também.
- Ah! A tua Ouriça também dava saltos levezinhos? – perguntou o Coelho.
- Fazia outras coisas – respondeu o Ouriço. – Tinha uma voz que parecia uma orquestra de sinos pequeninos. Até tinha um nome. Disse ela  que o Amor anda no ar.
- No ar? Pois, a pinha veio do ar. Estou a ver – disse o Coelho. – O Amor é uma coisa que vem do ar e nos cai em cima da cabeça…
- A mim entrou-me pelo olho – disse o Ouriço, ainda a tentar livrar-se do cisco.
- Isso é porque não te apanhou a cabeça a jeito – considerou o Coelho.
Subiram para cima de uma pedra redonda.
- Parece-me tudo diferente – disse o Ouriço. – A Mata mudou. Havia uma antes e há outra agora.
Sim, algo mudara. E esse algo era tudo. Agora as flores eram sóis, pedacinhos de céu espalhados pela Mata. Agora ele era um Ouriço entorpecido carregando um sentimento desconhecido.
- Sentes-te bem? – perguntou o Coelho.
- Sim, muito bem. E mal também – respondeu o Ouriço. – Mas é assim o Amor, seja lá isso o que for. E tu, Coelho, sentes-te bem?
- Também. Mal e bem. E quando é bem é mesmo bem e quando é mal é mesmo mal. E também me sinto et cetera e tal. Quer dizer, os meus sentimentos vão tão depressa que não consigo acompanhá-los. É o que parece.
Saltaram para o chão e empurraram-se, sempre a rir. Depois, rolaram os dois por um declive, como quando eram jovens, irresponsáveis e felizes. Bela doença era aquela.
Mas nem tudo eram alegrias e excitações. Já eles iam a caminho do Largo do Pinheiro Grande quando chegaram as primeiras dúvidas. Disse o Coelho:
- Ia sempre tão contente quando voltava a casa. Agora não sei o que me parece.
- Bem te percebo – disse o Ouriço. – Quando saí de casa, de manhã, não me faltava nada. Agora sinto que me falta qualquer coisa.
- Falta-te a Ouriça- disse o Coelho.
- É isso! – concordou o Ouriço. – Antes de a ver, eu era eu, agora eu sou eu e ela. Logo, falta-me ela.
O Coelho coçou a cabeça, algo confuso. Depois disse:
- Não compliques, ó Ouriço! Falta-te a Ouriça, logo, estás desouriçado, digamos assim. Mais nada.
- E tu estás descoelhado – ripostou o Ouriço. – Saímos de casa tão bem e voltamos assim: descoelhados e desouriçados.
- Vês? – É o Amor, seja lá isso o que for."
" O lugar desconhecido", in O amor está no ar / Álvaro Magalhães.  
Imagem: Copyright: Alice Jackson

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Minutos de Leitura (XXIII - 3.º Ciclo)

Alice começava a aborrecer-se imenso de estar sentada à beira-rio com a irmã, sem nada para fazer: espreitara uma ou duas vezes para o livro que a irmã lia, mas não tinha gravuras nem diálogos. «E de que serve um livro», pensou Alice, «se não tem gravuras nem diálogos?»
Por isso cogitava de si para si (com certa dificuldade, porque o dia quente a fazia sentir estúpida e sonolenta), se havia de dar-se ao trabalho de levantar-se e colher margaridas pelo prazer de fazer com elas um colar de flores. Foi então que, de repente, um Coelho Branco com olhos cor-de-rosa passou a correr ao pé dela.
Não era coisa muito extraordinária; nem Alice pensou que fosse assim muito inusitado ouvir o Coelho dizendo:
— Credo! Credo! Vou chegar atrasadíssimo!
(Quando mais tarde pensou nisso, ocorreu-lhe que devia ter ficado espantada, mas naquela altura pareceu-lhe tudo bastante natural.) Porém, quando o Coelho deu em puxar um relógio do bolso do colete, e olhou para ele e desatou a correr, Alice levantou-se imediatamente, porque lhe passou na ideia que nunca antes tinha visto um coelho com um bolso de colete, nem um relógio que tirasse de lá, e, ardendo de curiosidade, correu pelos campos atrás dele, mesmo a tempo de o ver enfiar-se por uma enorme toca debaixo de uma sebe. Num instante, Alice enfiou-se também atrás dele, sem pensar sequer como diabo é que havia de sair outra vez.
A toca continuou a direito como um túnel, e de repente afundou-se, tão de repente que a menina nem teve tempo de refletir e parar antes de dar consigo a descer o que lhe parecia ser um poço muito fundo.
Das duas uma: ou o poço era realmente muito fundo, ou ela estava a cair muito devagar, pois enquanto descia teve tempo de sobra para olhar em redor, e interrogar-se sobre o que ia acontecer a seguir. Primeiro, tentou olhar para baixo e perceber onde ia chegar, mas estava demasiado escuro para ver fosse o que fosse; depois olhou para as paredes do poço e reparou que estavam cheias de louceiros e de estantes de livros: aqui e ali, viu mapas e gravuras penduradas por pregos. À passagem, tirou de uma das prateleiras um pote que tinha no rótulo «COMPOTA DE LARANJA», mas, para sua grande desilusão, estava vazio. Não quis largar o pote com medo de matar alguém lá em baixo, e por isso enfiou-o a custo num dos louceiros enquanto caía.
«Bem!» pensou ela. «Depois de uma queda destas, nunca mais me vou assustar por cair das escadas abaixo! Lá em casa vão todos pensar que sou muito corajosa! Ora, eu nem sequer me havia de queixar se caísse de um telhado!» (O que era bem capaz de ser verdade).
A descer, a descer, sempre a descer. Será que a queda nunca mais acabava?
Gostava de saber quantos quilómetros é que já desci — disse em voz alta. — Devo estar quase a chegar ao centro da terra. Ora, deixa cá ver: isso seria seis mil quilómetros de profundidade, acho eu.
(É que, estão a ver, Alice tinha aprendido muitas coisas deste género nas suas aulas da escola e embora esta não fosse uma excelente ocasião para alardear o seu conhecimento, visto que não havia ninguém que a ouvisse, não deixava por isso de ser um bom exercício de repetição).
— Sim, deve ser mais ou menos essa distância... mas, nesse caso, a que Latitude ou Longitude terei chegado? — (Alice não fazia a mínima ideia do que era a Latitude nem a Longitude, mas achava que eram palavras pomposas para se dizer).
Então, começou de novo:
— Será que vou cair através da terra? Que engraçado ir sair entre os povos que andam com a cabeça para baixo!
As aventuras de Alice no país das maravilhas / Lewis Carroll. Lisboa: Relógio D'Água
Imagem: Copyright - John Tenniel