“Aquelas palavras,
que provavelmente ninguém, pelo menos naquela forma precisa, alguma vez tivesse
dito antes, tiveram a fortuna de não se perderem por si próprias, pois alguém
as juntou, e quem sabe, talvez o mundo fosse um lugar melhor se nós fossemos
capazes de juntar algumas das palavras que estão por aí vagueando sozinhas.”
(1)
O livro foi (Alberto
Manguel) a maior invenção do espírito humano. Artefacto da leitura, ele marca a
História das Instituições e a evolução social, pois por ele se lê o que nos
rodeia, sendo por isso uma ferramenta de análise e assimilação de valores
culturais. Antes de falar da leitura devemos considerar o livro. A
importância do livro nas sociedades históricas releva da construção da memória,
da afirmação e coesão do contexto social, mas também das suas marcas nos
espaços privados, na construção do gosto individual.
O livro permite abrir
o individual ao mundo e ser utilizado como “uma ferramenta cívica primordial”
(Gabriel Zaid), exprimindo a diversidade. É nesse sentido uma poderoso meio de
formação e por isso suscita a dúvida e a inquietação em espíritos e sociedades
reguladoras da memória. A destruição do livro, a sua censura foi sempre uma
forma de limitar as possibilidades de participação e de construção da
cidadania.
O livro tem pois um
valor significativo, mas também simbólico. Ele empresta ao quotidiano, aspectos
organizativos, concedeu a valoração a muitas representações culturais e
certificou ideias emergentes e causas. O livro revela-se pois, como objecto e
ferramenta de um quotidiano, onde o leitor constrói a escrita do livro.
Neste mistério que é
a compreensão do acto criativo pelas palavras, torna-se um desafio comparar,
visualizar o diálogo entre a voz do escritor e a voz do texto. Leitura e
assimilação que foi feita de modo diverso e que as portas da leitura realizaram
ao alimentarem mundos particulares. O texto e o seu autor como centralidade da
inteligibilidade do texto, cedeu na 2ª metade do século XX, grande do seu
destaque ao papel do leitor na construção da leitura. É o leitor e a leitura
que permitem justificar o livro.
António Lobo Antunes
costuma dizer que depois de escrito, o livro é do leitor. As diversas leituras
dão ao livro significados diferentes no tempo e no espaço. Leituras do próprio
autor, em função dos contextos diferenciados, onde a leitura pública ofereceu
respostas a questões tão significativas como a formação dos leitores, as
dúvidas do autor e até a censura dos livros. A leitura pública na Grécia de
Péricles tem efeitos no leitor divergentes das leituras que Dickens
fazia.
O texto conduz-nos a
geografias, mistérios diversos, em espaços quotidianos que não vivemos e por
onde os leitores emergem, vivendo e construindo “faculdades sensórias, emotivas
e cognitivas” (W. Iser). A leitura concede assim aos leitores
possibilidades de participar na aventura humana, vivendo com o livro
experiências, descobertas que são janelas do seu crescimento e do
desenvolvimento humanos. A escrita e a sua fundamentação, a leitura
realizam uma viagem a várias vozes. O leitor e as personagens que ele desenha
com o olhar e o som das sílabas sobrevivem ao autor. Madame Bovary é-nos mais
real que Flaubert e Alice mais encantadora e fascinante que Lewis Carroll.
Vemos pois, com Borges que a escrita da página é realizada por múltiplos
autores.
Processo dinâmico,
possível pela construção ou “fusão de horizontes”, o do texto e o da leitura,
pela utilização da memória e dos seus recursos e pelas múltiplas formas de ser
leitor. Quantas minorias não reelaboraram o quotidiano, o privado, a partir da
leitura individual dos livros. O modo como se alimentou o coração das sílabas e
como elas influenciaram o vivido é algo que o escritor nos dá apenas em
parte. Na sociologia da leitura e na História das Mentalidades falta fazer
esta relação que relacione os quadros mentais das sociedades com os espaços
vividos e com as oportunidades que as personagens literárias criaram.
Por estas podemos
verificar a arqueologia dos aspectos mais simbólicos do livro. O seu leitor. E
ele ao sê-lo, utiliza a leitura como uma criação de um espaço múltiplo e diverso.
Constrói uma conversação consigo, restabelecendo oportunidades pelo que
diferente vai conhecendo, mas também com o mundo. Neste tempo de
globalização de valores, iniciativas, mercados e opções de civiização importa
deixar a ideia de que não é o centro sempre uniforme que nos importa, mas sim a
multiplicidade de vozes que existem em cada lugar do planeta. O livro traz-nos
isso, pela leitura e pela oportunidade de construção de uma conversação que
será sempre múltipla e diversa.
(1) José
Saramago, Seeing.