quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Vinte anos de RBE - as Bibliotecas


Recomeçamos com as nossas palavras iniciais. As que nascem do livro e que se suportam em múltiplas páginas livros alinhados em estantes para descobrir universos passados, mundos por construir. As Bibliotecas são um espaço de construção da memória. Concentram uma dimensão de espaço e tempo, o que as remete para uma dimensão de divindade, por onde emergem páginas de sabedoria, em filas de amizade connosco vividas. Mesmo com os novos formatos ainda achamos que naquela matéria de eternidade reside um templo.

A Biblioteca deve ser vista como um espaço cultural, de confluência de várias artes. Deve permitir a promoção da capacitação institucional. A Biblioteca é o espaço para construir a leitura, fazer leitores, alimentar esse fundo de imaginação capaz de dotar todos de melhores possibilidades de vida, porque de escolhas suportadas em conjuntos de dados, de ideias, de pensamentos mais completos, mais divergentes. Uma Biblioteca faz assim o leitor.

A Biblioteca é um espaço, mas é sobretudo o que fazemos nela, as ideias que tivemos com ela, com os livros e as que ainda tentamos ter, nos dias seguintes. A leitura. É com ela que disciplinamos o olhar e em transformamos o olhar, o ver normal, óbvio para outra coisa, onde superamos o medo e dispensamos o útil. A leitura é um dos nossos maiores privilégios. É com a leitura que construímos na imaginação um campo de imagens.

Leituras de diferenciados suportes, mas ainda assim o desenho da palavra, à sua caligrafia. O alfabeto, o livro, o número baseiam-se nessa ideia de desenho do traço. Esse desenho da palavra conduz-nos à informação, à utilização da linguagem. A linguagem é uma ferramenta que usamos para nomear as coisas, mas também para dar existência à realidade. As histórias que lemos são a transformação pelas palavras de uma ideia transformadora de nós próprios. é sobre este universo que preenche as Bibliotecas que convidamos todos a participarem. A Biblioteca é o melhor lugar do mundo pela esperança que conserva em múltiplas vozes. Basta que as saibamos ouvir. É essa a viagem individual e de comunidade que vos propomos a realizar.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A palavra e o mundo - Os três reis do Oriente (III)

III
BALTASAR
O rei Baltasar amava a frescura dos jardins e sorria ao ver na água clara dos tanques o reflexo da sua cara cor de ébano. 
E amava a alegria, o rumor e a abundância dos banquetes, e muitas vezes as suas festas duravam até ao romper do dia. 
Porém, certa madrugada, depois de se terem retirado todos os convivas, o rei ficou na grande sala, sozinho com um jovem escravo que tocava flauta. 
E pareceu-lhe que a melodia desenhava no ar o contorno de um espaço vazio. 

Então o seu coração ficou pesado de tristeza, e Baltasar pensou: «Será possível que um dia eu me retire da vida como um conviva saciado que se retira de um banquete? Ou terei sempre a mesma sede, a mesma fome, o mesmo desejo dos momentos e dos dias?» 
E tendo pensado isto atravessou a porta da sala e saiu para o jardim. 
Cá fora, na luz indecisa da antemanhã, o jardim parecia suspenso. A bruma confundia o desenho claro dos tanques e diluía no ar o contorno das ramagens. 
Baltasar caminhou longamente entre flores e palmeiras até romper o Sol. E quando já era dia chegou a um pequeno terraço que ficava no extremo do jardim. Debruçou-se no parapeito e viu, do outro lado da rua estreita, um homem jovem, encostado a uma parede, que o olhava. 

Baltasar ficou imóvel como se o rosto do outro lhe tivesse batido na cara. Ou como se o rosto do outro de repente fosse o seu rosto. Ou como se pela primeira vez na sua vida tivesse visto a cara de outro homem. 
O que naquele rosto mais o surpreendia era a nudez, a evidência nua. Era como se naquele rosto o cerimonial da vida tivesse retirado a sua máscara e a realidade mostrasse, sem nenhum véu, o abandono, a dor consciente, a condição do homem. 
Era um rosto de homem jovem e magro onde os ossos desenhavam, sem nenhum equívoco, o ideograma da fome. 
A tristeza subia da mais profunda morada da memória e aflorava inteira à tona das pupilas. A paciência, como uma leve cinza, poisava na testa, sobre os beiços, sobre os ombros. E havia nessa paciência uma doçura tal que Baltasar sentiu de súbito uma vontade aguda de chorar e de se prostrar com a sua própria cara encostada à terra. 
E perguntou: 
— Tu, quem és? 
— Tenho fome — murmurou o homem. 
— Entra — disse Baltasar. — Vou mandar que te sirvam os melhores frutos, as melhores carnes, os melhores vinhos. Vou mandar que lavem os teus pés com água perfumada numa bacia de ouro. Vou mandar que te vistam de púrpura. Vou mandar aos meus músicos que toquem para te aprazer as mais belas melodias. Vou mandar vir para ti a tocadora de cítara. Eu próprio colocarei debaixo dos teus pés o tapete mais precioso, e ficarei sentado ao teu lado para desfazer a tua solidão, e escutarei as tuas palavras para que possas tomar parte na alegria e para que as fontes e os jardins do palácio apaguem a tua tristeza. 

Porém o homem, ouvindo estas palavras, assustou-se. No rosto negro, debruçado na luz branca do terraço, reconheceu com terror o rosto do rei. E pensou: 
«Ai de mim! Para que me chama o rei? Vim espreitar o seu palácio e isto sem dúvida é um crime. É melhor que eu fuja antes que os guardas cheguem.» 
Pois aquele homem, como todos os muito pobres, sabia que o mundo era governado por leis que o perseguiam e condenavam, e por isso temia a cada instante ser acusado e preso por uma razão desconhecida. Caminhava num país que não era o seu e onde tudo era para ele insegurança e temor. 
E por isso fugiu, sumiu-se ofegante entre as curvas da ruela estreita, sem ver o gesto de Baltasar que o chamava. 
E no palácio o rei disse aos seus guardas: 
— Ide e procurai nas ruas um homem jovem magro, vestido de farrapos e que tem os olhos cheios de tristeza e de paciência. 

Porém, ao cair da tarde, os guardas voltaram e disseram: 
— Encontrámos tantos homens esfarrapados, tristes e pacientes que não soubemos distinguir aquele que tu procuras. 
Por isso na manhã seguinte o rei Baltasar, tendo despido os seus vestidos de púrpura, envolveu-se num manto de estamenha e saiu sozinho do palácio para procurar o homem. 
Desceu pelas ruelas estreitas da encosta, e, longe das grandes avenidas triunfais onde a brisa faz sussurrar as folhas duras das palmeiras, percorreu longamente os bairros pobres da beira do rio. Os carregadores do cais ergueram para ele a face sombria, e o homem que vendia os sapatos de corda poisou no olhar do rei o seu olhar cansado. Viu homens dobrados sob os fardos, viu os que puxavam carroças como bois, lentos e pacientes como bois, viu os que usavam grilhetas nos pés, viu os que deslizavam rente às paredes, silenciosos como sombras, viu os que gritavam, os que choravam, os que gemiam. Viu os que estavam sós, imóveis, encostados aos muros, atónitos, interrogando, para além da voz rouca das ruas, o silêncio opaco, fitando em sua frente a estrada recta do silêncio. Viu os que pescavam pequenos peixes nas águas sujas do rio. Viu os que tinham a cara cor de trapo e as mãos feitas de cinza, cinza leve que voava com o vento. Viu a sombra verde, o reino da paciência, o país da desolação sem margens, o império dos humilhados, o lado esquerdo da vida, a Pátria deserdada, o fundo do mar da cidade.

E no dia seguinte o rei reuniu os seus ministros e disse- -lhes: 
— Mandai distribuir os meus tesoiros e mandai distribuir as reservas acumuladas nos armazéns e nos celeiros. E reparti tudo entre os esfomeados e os pedintes. 
Tendo ouvido isto, os ministros retiraram-se para deliberar. 
E voltaram passados três dias, e responderam: 
— Os teus tesoiros não chegam para resgatar os escravos, e as reservas dos teus armazéns não chegam para saciar os esfomeados. Nem o teu poder chega para alterar a ordem da cidade. Se cumpríssemos aquilo que mandaste, os fundamentos que nos sustentam e os muros que nos protegem ruiriam. O teu desejo é contrário ao bem do reino. 
E o rei lhes respondeu: 
— Procuro outra lei e procuro outro reino. 
Então os ministros retiraram-se, murmurando entre si: 
— Vemos que ele nos trai.
Na manhã seguinte, dirigiu-se Baltasar ao templo de todos os deuses. 
E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar: 
«Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força e o domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses.» 
Seguiu o rei para o segundo altar e leu: 
«Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses.» 
Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu: 
«Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo o espírito ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram.» 
E tendo passado pelos três altares, Baltasar interrogou os sacerdotes: 
— Dizei-me onde está o altar do deus que protege os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore. 
Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam: 
—Desse deus nada sabemos.
Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse: 
— Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?
A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. 
O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria. 
E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A palavra e o mundo - Os três reis do Oriente (II)

II
MELCHIOR

A placa de barro tinha passado de geração em geração, de idade em idade, de mão em mão. Nela estava escrito que ao mundo seria enviado um redentor e que uma estrela se ergueria no Oriente para guiar aqueles que buscavam o seu reino. 
A placa era um pequeno rectângulo de argila, enegrecido pelo tempo, de aspecto frágil, pobre e gasto. Era um prodígio que tivesse atravessado, sem se perder, tantos séculos de ruínas e opulências, saques, incêndios e guerras. Era um prodígio que tivesse podido atravessar sem se perder a ambição, a violência, a agitação e a indiferença dos homens. 
Estava ali, no palácio, alinhada ao lado de milhares de placas que enumeravam vitórias, batalhas, massacres e riquezas. 
Os seus caracteres estavam semiapagados pelo tempo e a sua escrita era tão antiga que se tornava difícil decifrá-la com exacto rigor. Muitas leituras eram possíveis. 
Por isso o rei Melchior convocou três assembleias de sábios para que juntos averiguassem qual era a justa interpretação daquele texto antiquíssimo. 

Primeiro vieram os historiadores, aqueles que tinham aprendido toda a ciência das bibliotecas e que conheciam até ao menor detalhe a escrita, a linguagem, os usos, os costumes, os anais e os códigos dos tempos idos. 
A assembleia reuniu-se durante um mês no palácio do rei. Era o meio do Verão e o calor poisava pesadamente sobre os terraços cegos de sol. Nos jardins as palmeiras roçavam umas nas outras, com um rumor metálico, as suas folhas afiadas e duras como serras. 
Ao cair das tardes os sábios sentavam-se em círculo no pátio interior do palácio. Melchior presidia. Um fino murmúrio de água correndo nos tanques acompanhava os debates. Os escravos descalços circulavam em silêncio servindo vinho de tâmara temperado com neve das montanhas. 

O círculo de homens sentados descrevia uma área vazia e no centro dessa área tinha sido colocada uma mesa de pedra sobre a qual estava poisada a placa de barro. Parecia extremamente pequena e insignificante, no meio de tanto espaço e opulência, parecia um detrito das eras antigas que ali tinha sido abandonado pelo tempo. 
Durante longos debates, durante trinta dias, os sábios estudaram e examinaram meticulosamente cada linha dos caracteres antiquíssimos. 
E ao trigésimo dia ergueu-se Negurat, arquivista-mor do templo da Lua, e disse: 

— Creio que a leitura que tu, ó rei, fizeste deste texto não é a verdadeira. Pois leste: Ao mundo será enviado um redentor e uma estrela subirá no Oriente para guiar aqueles que buscam o seu reino.» Mas verdadeiramente é outra a significação deste texto antigo: assim, os caracteres onde leste «redentor» significavam, na remota era em que foi gravada esta placa, não «redentor» mas sim «grande rei»; e os caracteres onde leste «será» e «subirá» não exprimem formas verbais do futuro mas sim formas verbais do passado; e o verbo buscar não está no presente mas sim no pretérito perfeito; e onde leste «para guiar» deverá ser lido, de acordo com os métodos de decifração dos textos antigos, «guiando». Portanto, ó rei, ao contrário daquilo que julgaste ler, este texto não se refere ao futuro mas sim ao passado, e não anuncia o advento de nenhum salvador, mas antes glorifica as obras de um grande personagem dos tempos idos. Assim a leitura correcta deste texto é, em minha opinião, a seguinte: «Ao mundo foi enviado um grande rei que como uma estrela dominou o Oriente guiando aqueles que buscaram o seu reino.» 

Quando Negurat acabou de falar, levantou-se Atmad, arquivista- mor do palácio, e disse: 
— Grande é a ciência de Negurat. Mas a interpretação da escrita antiga tem terríveis dificuldades. Não há dúvida que no texto apresentado devemos ler «grande rei» e não «redentor ». No entanto, não concordo com aquilo que diz respeito às formas verbais: creio que o verbo ser e o verbo subir se encontram realmente no futuro. E também discordo da forma como foram lidas as palavras «guiar», «buscam» e «reino».
E penso ainda que o verbo «subir» tem aqui o sentido de «dominar». 
De forma que, na minha opinião, a leitura correcta do texto é esta: «Ao mundo será enviado um grande rei que como uma estrela dominará o Oriente para engrandecer aqueles povos que aceitarem o seu poder.» Pois esta inscrição é de facto uma profecia, mas uma profecia que já foi cumprida. É evidente que o grande rei é o grande Alexandre que dominou todo o Oriente até ao reino de Pórus e que morreu, como sabeis, em Babilónia. 
E quando Atmad acabou de falar, levantou-se o velho sábio Akki, que disse: 
— Admirei as sapientes palavras que ouvi. Mas na verdade a leitura deste antiquíssimo texto levanta tantas dúvidas e são tantas as interpretações que podemos propor, que verdadeiramente, ó rei, nada podemos concluir. 
Então levantou-se Melchior e disse: 
— Ide em paz e continuai os vossos estudos. Eu continuarei a perguntar, a escutar e a esperar. 
E no mês seguinte reuniu-se no palácio real a assembleia dos letrados. 
Melchior propôs-lhes as dúvidas e as interpretações dos historiadores e durante trinta dias os letrados estudaram o texto. 

E no trigésimo dia, ao cair da tarde, estando todos sentados em círculo e estando no meio do círculo a mesa de pedra sobre a qual estava poisada a placa de barro, levantou-se Ken- -Hur e disse: 
— A poesia não se exprime directamente. Ora o texto que temos em nossa frente é um poema e por isso mesmo deve ser tomado como um metáfora que não se refere nem ao passado nem ao presente nem ao futuro do mundo em que vivemos, mas só ao mundo interior do poeta, que é o mundo da poesia sempre voltado para o devir e para a esperança. Este texto não fala de factos reais e apenas simboliza o espírito criador do homem. 
Falou em seguida Amer, que disse: 
— Este texto é um poema e coloca-se por isso à margem do vivido. O poema não se refere aquilo que é, mas sim àquilo que não é. Pois a natureza é uma caixa cheia de coisas da qual o poeta extrai uma coisa que lá não está. 
E levantou-se depois o irmão de Amer, que disse: 
— Num poema não devemos buscar sentido, pois o poema é ele próprio o seu próprio sentido. Assim o sentido de uma rosa é apenas essa própria rosa. Um poema é um justo acordo de palavras, um equilíbrio de sílabas, um peso denso, o esplendor da linguagem, um tecido compacto e sem falha que apenas fala de si próprio e, como um círculo, define o seu próprio espaço e nele nenhuma coisa mais pode habitar. O poema não significa, o poema cria. 

E tendo terminado o debate, levantou-se Melchior, que disse: 
— Eu vos agradeço as vossas palavras. Por mim continuarei a buscar, a escutar e a esperar. 
Então retiraram-se os letrados e o rei ficou sozinho no pátio, em frente da placa de barro, escutando o correr da água e o cair da noite.
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E no mês seguinte reuniram-se no palácio os homens sapientes. Melchior propôs-lhes as dúvidas dos historiadores e dos letrados e a nova assembleia deliberou durante trinta dias. 
E no trigésimo dia levantou-se Kish, que disse: 
— As multidões ignorantes curvam-se em frente dos ídolos, mas aqueles que meditam conhecem a solidão do universo. Que redentor poderemos esperar? O universo é como uma máquina bem regulada que sem princípio nem fim gira lentamente através das idades e dos ciclos. Nas constelações e nas luas, nos triângulos e nos círculos, encontrarás as leis dos números que se cumprem e se cumprirão inexoravelmente. Que redenção poderemos esperar?

E falou depois Maro, que disse: 
— Os deuses que existiram extinguiram-se há muito e aquilo que adoramos é apenas a cinza do divino. Qual é, na idade em que vivemos, o homem que viu um anjo? Onde está aquele que ouviu, com os seus ouvidos de carne, a palavra de Ísis ou de Assur? Vivemos um tempo de viuvez e todas as coisas se tornaram cegas e surdas. Num mundo de injustiça e de desordem tentamos sobreviver como animais perseguidos. Quebrou-se o laço que nos ligava ao universo atento. Podemos bater com os punhos na terra, podemos implorar com a cabeça tocando a poeira. Ninguém responderá. Cegou o olhar que nos via e o ouvido que nos escutava secou. Tudo nos é alheio como um lugar que não nos reconhece. E o brilho dos astros impassíveis cintila sobre a nossa tristeza. Quem pode esperar que uma estrela se mova? 
Falou em seguida Tot, e disse: 
— Nascemos para morrer. Toda a nossa esperança se resolverá em cinza. Onde está o homem que não morreu? O próprio Alexandre, filho de Ámon, que estabeleceu o seu Império desde o Egipto até ao reino de Pórus, morreu miseravelmente nos palácios da Babilónia. E no entanto a sua radiosa juventude parecia mostrar a natureza de um Deus, e era tão grande a sua perfeição que ninguém a podia julgar mortal. Quem poderia acreditar que morresse o seu corpo equilibrado e liso como uma coluna, a sua inteligência aguda e limpa como o sol, o seu olhar direito que simplificava todas as coisas, o seu rosto brilhante como um estandarte e a sua alegria invencível? 

Alexandre, príncipe da Macedónia, filho de Ámon, maravilhamento dos povos, conduziu o destino do homem a seus últimos limites, de tal forma que nele todos julgaram que a natureza humana tinha conquistado o divino. Mas Alexandre morreu no trigésimo terceiro ano da sua vida, no cimo da sua força e da sua glória, em pleno esplendor da sua juventude. E assim os deuses nos disseram que o homem não pode ultrapassar o seu destino, e que o seu destino é um destino para a morte. Por isso, ó rei, que poderemos esperar? Nada pode modificar a condição do homem e nesta condição não há lugar para a esperança. 
Quando os pensadores se retiraram, Melchior levantou-se do trono e avançou até à mesa de pedra. Entre as grandes colunas que rodeavam o pátio, a placa de argila parecia extraordinariamente frágil e pequena. Mas o rei tocou com a sua fronte as letras quase apagadas.

Nessa noite, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, Melchior subiu ao terraço e viu que havia no céu, a Oriente, uma nova estrela. 
A cidade dormia, escura e silenciosa, enrolada em ruelas e confusas escadas. Na grande avenida dos templos já ninguém caminhava. Só de longe em longe se ouvia, vindo das muralhas, o grito de ronda dos soldados. 
E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se perdiam tacteando, como num labirinto espesso, húmido e movediço, a estrela acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria. 
E Melchior deixou o seu palácio nessa noite.

A palavra e o mundo - Os três reis do Oriente (I)

I - GASPAR

Naquele tempo, na cidade de Kalash, o príncipe Zukarta instaurou o culto do bezerro de oiro. 
A estátua poisava nas multidões submissas os seus olhos espantados, muito abertos, pintados de branco e de preto. No fundo das suas pupilas aflorava quase uma interrogação, como se a extensão do seu poder o surpreendesse. Era um jovem bezerro de pequenos cornos torcidos e pernas musculosas, de testa obtusa, curta e franzida. As suas quatro patas, firmemente poisadas na terra, davam uma grande impressão de firmeza e estabilidade que tranquilizava o coração dos seus fiéis. E em todo o seu corpo brilhava o oiro, oiro compacto, duro, pesado, faiscante. 

Em frente do ídolo as mulheres curvadas sacudiam sobre o mármore claro dos degraus os sombrios cabelos quase azuis. Dos confins do deserto, dos longínquos oásis, das aldeias perdidas, chegavam homens que depunham em frente do altar a sua oferta: vinham oferecer oiro ao oiro. E os homens bons de Kalash, juízes e chefes guerreiros, desfilavam reverentes em frente do bezerro. Atrás deles vinham os comerciantes, os vendedores, os oleiros, os tecelões. Beijavam os degraus do altar e depunham no chão a sua oferta: traziam oiro ao oiro. Até os sacerdotes da Lua e os seus fiéis e acólitos se prostravam, de joelhos, com a cabeça tocando o solo, em frente do ídolo novo de Kalash. 
Zukarta olhava todas estas coisas com grande alegria, pois o culto do oiro era o fundamento do seu poder. 

Raros eram aqueles que não acorriam ao templo, cada vez mais raros. Os muito pobres, os muito envergonhados, os muito humilhados, não ousavam apresentar-se. Eles eram como uma raça à parte, pois a pobreza era olhada como o estigma que marcava aqueles que o Bezerro não amava. No fundo das suas almas tão humilhadas que mal ousavam pensar o seu próprio pensamento, os muito pobres, os muito envergonhados esperavam outro deus. 
Eles e Gaspar. 
Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de Gaspar. E disseram: 
— Porque não te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a oferta? Que tens tu de comum com a ralé das docas? Não estás por acaso vestido de púrpura e de linho como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a grandeza de Kalash. Estarás vendido aos nossos inimigos? 
Gaspar respondeu: 
— Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é outro e creio no seu advento, que a Terra e o Céu me anunciam. 

Ouvindo esta resposta, os chefes das tribos e os homens bons de Kalash disseram: 
— Separamo-nos de ti porque te separaste de nós e renegaste os nossos caminhos. Não terás mais parte nas nossas assembleias. Nem serás mais ouvido nos nossos conselhos, nem partilharás dos nossos festejos e banquetes. E também não terás lugar na nossa força. Os soldados não protegerão a tua casa nem as tuas caravanas. E serás presa fácil dos bandidos. Não receberás a protecção das nossas leis, e os nossos juízes julgarão em sentença contra ti, e a tua razão será como um punhado de cinza. Como a gente da ralé não terás nem protecção nem defesa enquanto não te curvares perante o altar do Bezerro para adorar os ídolos que nós adoramos.
E Gaspar respondeu:
— O meu deus é em mim como uma fonte que pára de correr e é em meu redor como o muro de uma fortaleza. 

Então os notáveis de Kalash sacudiram a poeira dos seus sapatos e saíram do palácio. 
Depois desse dia, muitas calamidades se abateram sobre Gaspar. Os bandidos assaltaram as suas caravanas e os ladrões saquearam os seus palmares. Mãos misteriosas apedrejavam de noite a sua casa e na água das suas cisternas apareciam frutos podres e aves mortas a boiar. 
E começou o tempo da solidão. 
Nos frescos pátios do palácio não penetraram mais os visitantes e a água correndo nos tanques deixou de acompanhar o leve rumor das conversas. Os parentes e os amigos desapareceram como que devorados pela penumbra e todas as coisas pareciam envolvidas em escândalo e terror. 
Porém o tempo crescia. 

E Gaspar escutava o crescer do tempo. A solidão criava em seu redor um transparente espaço de limpidez onde os instantes avançavam um por um e o universo inteiro parecia atento. O silêncio era como a mesma palavra inumeravelmente repetida. 
E debruçado sobre o tempo Gaspar pensava: «Que pode crescer dentro do tempo senão a justiça?» 

Ajoelhado no terraço Gaspar olhava o céu da noite. 
Olhava a alta e vasta abóbada nocturna, escura e luminosa, que simultaneamente mostrava e escondia. 

E disse: 
— Senhor, como estás longe e oculto e presente! Oiço apenas o ressoar do teu silêncio que avança para mim e a minha vida apenas toca a franja límpida da tua ausência. Fito em meu redor a solenidade das coisas como quem tenta decifrar uma escrita difícil. Mas és tu que me lês e me conheces. Faz que nada do meu ser se esconda. Chama à tua claridade a totalidade do meu ser para que o meu pensamento se torne transparente e possa escutar a palavra que desde sempre me dizes.

Primeiro pareceu a Gaspar que a estrela era uma palavra, uma palavra de repente dita na muda atenção do céu. 
Mas depois o seu olhar habituou-se ao novo brilho e ele viu que era uma estrela, uma nova estrela, semelhante às outras, mas um pouco mais próxima e mais clara e que, muito devagar, deslizava para o Ocidente. 
E foi para seguir essa estrela que Gaspar abandonou o seu palácio.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - deambulando pelas ruas de Londres (II)

O século XIX fundou uma cidade nova. O século XX estabeleceu-a como um espaço de viagem, de evasão, a montra de mercadorias, a confluência de pessoas e grupos. Dentro dela nasceu a ideia de uma viagem, o recorte da imaginação para alimentar um sonho, aquilo que o real não pode fornecer. Fernando Pessoa fez infinitos passeios na Baixa Pombalina a alimentar um sonho, a criar mundos não existentes, a tentar ser algo de “substantivamente moderno”, na expressão de Rimbaud.
Se o século XIX enaltecia o campo, o século XX é a confirmação da cidade, os seus espaços a produzir uma viagem que podia ser física ou mental. A viagem física na cidade proporciona a descoberta de espaços, de lugares, de experiências. A cidade vive da mobilidade, mas pode também ser imóvel, parada nos seus artefactos. Nestes, os motivos de descoberta, a procura para registar vidas não narradas é muito evidente. Há na cidade uma deambulação, a que Baudelaire chamou “flânerie”, que permite uma procura, entre o m ais fugaz e alguma perenidade.
A cidade pode tornar-se numa paisagem feita de multidões, de solidão, de sombras e de melancolia, como o sentiu Cesário Verde, em “O sentimento de um ocidental”. Ela, a cidade pode ser também uma geografia de irreal, como o disse T.S. Eliot, “a cidade irreal / sob o nevoeiro castanho de uma madrugada de Inverno”. A cidade emerge assim como uma personagem entre o real e o sonho. Em diferentes latitudes, a cidade surgirá no século XX como uma grande metrópole, onde uma atmosfera definirá grandeza e misérias humanas, ruínas e sonho, imaginário do fantasmagórico.
Virginia Woolf viu na Londres dos anos vinte, do século XX “um poema”, “uma história” que se revelava nos seus passeios pelas suas ruas e espaços. A cidade e Londres em particular foi para a autora de “As Ondas”, uma personagem essencial da narrativa literária. O que “Mrs. Dalloway” nos revela é essa deambulação na cidade, o reconhecimento de ruas, a sua toponímia, a sua atmosfera, onde circulam personagens de diferentes tempos que se inscrevem como uma intimidade. A cidade como elemento formador de uma memória, onde circulam os espaços afectivos de diferentes pessoas, onde cada um se defronta com um mundo interior inacessível e um exterior, capaz de construir uma evasão no tempo. A cidade integra-se num movimento social e cultural e faz das suas ruas, dos seus edifícios um construtor de vivências. Estas manifestam-se entre a multidão que habita um urbanismo explosivo de verticalidade, espaços concentrados de um efémero, por onde a fantasmagoria se insinua de um modo persistente.
A atmosfera de fantasmagoria apreende-se na iluminação pública, ainda a criar atmosferas de imprecisão, de indefinível, ou dessa junção de real e visionário, um esatdo preparatório de um pensamento. A cidade formula uma atmosfera, onde estruturas físicas parecem dotadas para uma certa forma de viagem que se realiza na descoberta de objectos e onde eles próprios são indutores da ideia de evasão. Mas também s´~ao instrumentos de um registo, como o lápis ou os livros de uma livraria antiga. Viagem em si por aquilo que ela desvenda, pela recuperação de um tempo que se perdeu e a sua integração no presente, no quotidiano que se vive.
Viagem que edifica um pequeno momento de eternidade, quando essas relíquias se erguem para nós. 

Imagem, London, The Terrace, House of Parliament, 1929.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - deambulando pelas ruas de Londres (I)


Como é bela uma rua de Inverno! Ao mesmo tempo explícita e obscura. Aqui, é possível traçar vagamente avenidas direitas e simétricas feitas de portas e janelas; aqui, debaixo dos candeeiros, flutuam ilhas de luz coada, por onde passam, rapidamente iluminados, homens e mulheres que, apesar de toda a sua miséria e desmazelo, transportam qualquer coisa de irreal, um ar de triunfo, como se tivessem fugido da vida, iludida por quem a despojou, erra sem eles. Mas, mesmo assim, ainda estamos apenas a deslizar suavemente pela superfície das coisas. (...)

Como é bela uma rua de Londres, com as suas ilhas de luz, e os longos arvoredos de escuridão, e num dos lados, talvez, um espaço relvado salpicado de árvores, onde a noite se enrosca naturalmente para dormir, e quando se atravessa o gradeamento de ferro se ouvem aqueles pequenos estalidos e a agitação das folhas e dos gravetos, o que pressupõe o silêncio das campos em redor, o piar de uma coruja, e ao longe o ruído de um comboio a passar no vale.
Mas estamos em Londres, lembremo-nos; bem acima das árvores nuas há molduras de luz oblongas, de um amarelo-alaranjado-janelas; existem pontos de luz a brilhar, imóveis, como estrelas baixas - candeeiros; este espaço vazio que contém o campo e o seu sossego, é apenas um bairro de Londres, constituído por escritórios e casas ,...

os acenos das chamas nas lareiras, e as incidências de luz projectadas pelos candeeiros sobre a privacidade de uma qualquer sala, as suas poltronas, os papéis, a porcelana, a mesa de embutidos, a figura de uma mulher a contar atentamente o número exacto de colheres de chá que... Olha para a porta, como se estivesse a ouvir tocar, lá em baixo, e alguém a perguntar: "Ela está em casa?"
Virginia Woolf. (2016). Fastamagorias, deambulando pelas ruas de Londres. Feitoria dos Livros.

sábado, 19 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - O Spleen de Paris (II)


"Transporta-me, vagão! conduz-me tu, fragata!
Pra longe! aqui a lama são os nossos choros." (1)

Charles Baudelaire nasceu em Paris, em 1821. Desde a infância sentiu o lar como um sítio estranho. Andou de colégio interno em colégio interno e sucessivamente expulso por mau comportamento. Como adulto, quando já tinha crescido não encontrou um lugar para si na sociedade burguesa de Oitocentos em França. Viveu com um sentido de solidão, uma existência desalinhada que o conduziu para uma ideia de viagem. Viu-a como um convite permanente.
Na viagem encontrou uma forma de ordem e beleza. Teve algumas experiências de viagens menos conseguidas, mas ficou sempre nele essa ideia que expressa em Spleen, "as nuvens, as nuvens". Para Baudelaire o importante não era o destino a realizar numa viagem. A verdadeira grandeza da viagem era partir, era ir embora e dizia-o enfaticamente: "Qualquer sítio! Qualquer sítio! Contando que seja fora deste mundo!"

Baudelaire definiu-se assim ele próprio como um "poeta"  inquieto, afirmando nas viagens contínuas capazes de dar um sentido na vida, onde a família e os outros pouco lhe diziam. Desenvolveu um gosto muito particular por portos, estações de comboios ou docas, nessa ideia de que esses locais eram mais a sua habitação, tal como os hotéis do que o seu ambiente doméstico. Baudelaire soube criar uma poesia que dava uma expressão de beleza aos lugares de passagem, aos meios de transporte do século XIX. Elliot disse dele que tinha inventado "a poesia das partidas, a poesia das salas de espera."

Numa das suas visitas a sua mãe escreverá "Estes grandes e belos navios que oscilam imperceptivelmente nas águas tranquilas, estes sólidos navios, de ar sonhador e ocioso, não parecem murmurar-nos na sua linguagem de silêncio: Quando partiremos rumo À felicidade?» Para Baudelaire a partida alimentava o seu sonho, mas ele também era feito de uma mecânica de movimento, no caso dos transatlânticos. Pensava essas grandes embarcações como uma "grande imensa, complicada, mas ágil criatura, um animal inoculado pelo espírito, que sofre e alimenta todas as nostalgias e ambições da humanidade".

As nuvens e essa declaração de amor por elas no Spleen, "- amo as nuvens... as nuvens que passam... ao longe... a maravilha das nuvens!" Baudelaire via nelas o refúgio do mundo, de cidades decadentes como Paris, desse sítio onde terrores e lutos se fixam, obrigações e formalidades vãs se definem. A sua expressão "Pra longe! aqui a lama são os nossos choros!" é a construção de uma poética do lugar, da imaginação contínua da viagem, apenas por si, de fuga a um sentido de Ideal incapaz de se viver na cidade, justamente o Spleen.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - O Spleen de Paris (I)


– De quem gostas mais homem solitário? De teu pai, de tua mãe, de tua irmã, ou irmão?
– Não tenho pai, nem mãe, nem irmãos.
– Dos teus amigos?
– É uma expressão de que não sei o sentido.
– Da tua pátria?
– Não sei onde está situada.
– Da beleza?
– Amá-la-ia se a conhecesse, e a sua imortalidade.
– Do oiro?
– Odeio – o tanto como vós a Deus.
– Então que amas tu, singular estrangeiro?
– Amo as nuvens… as nuvens que passam… lá longe… as maravilhosas nuvens! (1)


(1) – Charles Baudelaire. (2007). “O estrangeiro”,
 in O Spleen de Paris, pequenos poemas em prosa. Lisboa: Relógio d' Água.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - Os Maias (III)

"A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete".

"No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, à luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarelos; ao fundo, o renque cerrado de antigas árvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente dessa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda cor de violeta escura, coroada pelo castelo da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro…”

Num claro espaço rasgado, onde Carlos deixara o Passeio Público pacato e frondoso - um obelisco, com borrões de bronze no pedestal, erguia um traço cor de açúcar na vibração fina da luz de inverno: e os largos globos dos candeeiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão suspensas no ar.”

“Pararam à porta do teatro da Trindade no momento em que, de uma tipóia de praça, se apeava um sujeito de barbas de apóstolo, todo de luto, com um chapéu de abas largas recurvas à moda de 1830”.
Diante deles, o hipódromo elevava-se suavemente em colina, parecendo, depois da poeirada quente da calçada e das cruas reverberações da cal, mais fresco, mais vasto com a sua relva já um pouco crestada pelo sol de Junho, e uma ou outra papoula vermelhejando aqui e além. [...] Para além, dos dois lados da tribuna real forrada de um baetão vermelho de mesa de Repartição, erguiam-se as duas tribunas públicas, com o feitio de traves mal pregadas, como palanques de arraial duas tribunas públicas, com o feitio de traves mal pregadas, como palanques de arraial.”

A palavra e o mundo - Os Maias (II)

José Maria de Eça de Queiroz nasceu na Póvoa do Varzim em 1845. Estudou entre o colégio da Lapa, na cidade do Porto, e a Universidade de Coimbra, onde entrou no primeiro ano, em 1861. Aqui, ligou-se a uma geração académica, admiradora das ideias de Proudhon e de Comte. Travou conhecimento com Antero de Quental e iniciou a sua carreira literária, com a publicação de folhetins que mais tarde seriam agrupados nas Prosas Bárbaras (1905). Em 1866, formou-se em Direito e passou a viver em Lisboa, onde exerceu a profissão de advogado. Cimentou a sua ligação a Antero de Quental e ao grupo do Cenáculo (1868), após ter dirigido o Distrito de Évora (1867). 

Em 1869, viajou até ao Egipto, para fazer a reportagem sobre a inauguração do Canal do Suez, de que resultará O Egipto, publicado apenas em 1926. Em 1871, participou nas Conferências do Casino Lisbonense. Entre 1869 e 1870, publicou diferentes obras, tais como Os Versos de Fradique Mendes, O Mistério da Estrada de Sintra, em parceria com Ramalho Ortigão e iniciou a publicação das Farpas. 
Em 1871, foi nomeado 1.º Cônsul nas Antilhas espanholas, transitando depois para Cuba, onde permaneceu dois anos. Entre 1883 e 1887, refez algumas das suas obras e publicou o Conde D’Abranhos e Alves & Companhia. Em 1874, passou a desempenhar a sua actividade em Inglaterra, foi em Newcastle que terminou O Crime do Padre Amaro (1875), ali ficando até 1878. Após esta data, foi para Paris, onde se dedicou à criação literária e onde faleceu em 1900. Em 1888, publicou a sua grande obra Os Maias e foi nomeado Cônsul em Paris. Continuou a escrever diferentes textos e obras, como A Ilustre Casa de Ramires ou a publicação na Revista Moderna, em Paris. 

Podemos ainda destacar da sua produção romanesca, entre outros, O Mistério da Estrada de Sintra (em colaboração com Ramalho Ortigão, (1871), O Primo Basílio (1878), O Mandarim (1879), A Relíquia (1887), A Ilustre Casa de Ramires (1900), A Correspondência de Fradique Mendes (1900), A Cidade e as Serras (1901), A Capital (1925), O Conde d'Abranhos 1925), Alves e Cia. (1925) e Contos (1902). Eça de Queiroz, tendo vivido na parte final do século XIX, soube, através da sua capacidade de analisar o quotidiano e a sociedade, traçar com humor algumas das características do nosso país. Fez o diagnóstico de uma classe política naufragada, onde os interesses particulares parecem não ser capazes de organizar institucionalmente o país. Vindo do século XIX, é um modernista na escrita e no pensamento que nos deixou. 

Eça é um dos maiores escritores de língua portuguesa, sendo em muitos aspectos uma figura que cria um mundo novo que alcança formas novas de exprimir um modernismo na escrita. É um dos escritores mais populares de língua portuguesa. 

A sua obra evoluiu de uma formulação inicial mais fantástica e influenciada por nomes como Baudelaire ou Heine, presente nos artigos e crónicas, para numa fase posterior se dedicar à crítica das instituições mais tradicionais, preocupando-se com a reforma social, dando-nos belos quadros de “crónicas de costumes.” 
Na última fase, encontramos uma escrita com mais esperança, com o culto da Natureza e de um certo regresso à simplicidade do homem, como se percebe em A Ilustre Casa de Ramires, A Cidade e as Serras ou a Correspondência de Fradique Mendes.

A palavra e o mundo - Os Maias (I)

Subitamente, Ega parou:
- Ora aí tens tu essa Avenida! Hem? Já não é mau!
Num claro espaço rasgado, onde Carlos deixara o Passeio Público pacato e frondoso - um obelisco, com borrões de bronze no pedestal, erguia um traço cor de açúcar na vibração fina da luz de Inverno: e os largos globos dos candeeiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão suspensas no ar. 
Dos dois lados seguiam, em alturas desiguais, os pesados prédios, lisos e aprumados, repintados de fresco, com vasos nas cornijas onde negrejavam piteiras de zinco, e pátios de pedra, quadrilhados a branco e preto, onde guarda-portões chupavam o cigarro: e aqueles dois hirtos renques de casas ajanotadas lembravam a Carlos as famílias que outrora se imobilizavam em filas, dos dois lados do Passeio, depois da missa "da uma", ouvindo a Banda, com casimiras e sedas, no catitismo domingueiro.
Todo o lajedo reluzia como cal nova. Aqui e além um arbusto encolhia, na aragem, a sua folhagem pálida e rara. E no fundo a colina verde, salpicada de árvores, os terrenos de Vale Pereiro, punham um brusco remate campestre àquele curto rompante de luxo barato - que partira para transformar a velha cidade, e estacara logo, com o fôlego curto, entre montões de cascalho.


Eça de Queiroz. (2013). Os Maias. Porto: Porto Editora, pág. 244

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - O livro de Cesário Verde (II)


"José Joaquim Cesário Verde nasceu a 25 de Fevereiro de 1855, num terceiro andar da Rua dos Fanqueiros, em Lisboa. Apesar da relativa estabilidade em que se vivia na altura, as chuvas anormais de primavera tinham provocado uma crise nos cereais, o que, num país sem caminhos-de-ferro, implicava literalmente a fome. 

Entre 1856 e 1857, devido às pestes – primeiro a de cólera e, depois, a da febre-amarela – Cesário passou uma longa temporada na quinta que a família possuía em Linda-a-Pastora. O pai era um lavrador dos arredores de Lisboa e o único proprietário da firma «J. A. Verde», uma loja de ferragens fundada em 1808.
A família Verde, oriunda de Génova, tinha emigrado para Portugal no século XVIII e pertencia aos sectores das classes médias atraídos pelos ventos revolucionários que vinham da Europa.

Aos dez anos, Cesário fez, com êxito, o exame de instrução primária. Não se limitou a estudar o que lhe ensinavam na escola: lia tudo o que lhe ia parar às mãos. Em casa, ouvira falar de autores – Montesquieu, Balzac, Dickens, Byron, Baudelaire, Zola – que o deliciaram. O pai notou desde cedo que o primogénito se interessava pelas artes e deu-lhe uma grande margem de liberdade. Liberal em política, era tolerante em casa. A família era, aliás, singularmente culta.
O desgosto provocado pela morte da irmã, aos dezanove anos, coincidiu com o final da sua adolescência. Pouco depois era envolvido pelo pai nos negócios da família. Tudo indica que apreciava aquela vida regrada, a ponto de ter imaginado novos empreendimentos.

Em 1873, matriculou-se no Curso Superior de Letras, fundado, uns anos antes pelo rei D. Pedro V, mas não o concluiu.
Após um ciclo de poemas dedicado a mulheres gélidas, publica, no verão de 1877, a sua primeira obra-prima, «Num Bairro Moderno», uma deambulação pelo que se supõe ser o bairro da Lapa. Há um certo paralelismo entre os poemas Cesário e um quadro impressionista. Em 1880, a sua melhor poesia ainda estava para vir, mas o que publicara era já muito bom. Mais realista do que Eça, que ostentava frequentemente um olhar moral, pretendia apenas mostrar o que via. A sua melancolia era calma, o seu pensamento, claro, e não acreditava em Deus porque nunca o vira. Para ele, a realidade era apenas aquilo que tinha diante dos olhos.

Embora tido como um poeta da cidade, também falou, e muito, do campo. Na sua geração, foi mesmo o único capaz de se referir às «serras» sem bucolismo.
«O Sentimento dum Ocidental» foi publicado em 1880 numa revista do Porto, Jornal de Viagens, por ocasião dos festejos do tricentenário da morte de Camões. Numa carta enviada a um dos diretores da publicação, Cesário refere que Lisboa, «em relação ao seu glorioso passado, parece um cadáver de cidade.» A forma como a descreve – vista como uma urbe pacata e escura – é curiosa. Lisboa é retratada como se o poeta tivesse tido acesso não a material de escrita, mas a uma câmara de filmar. Na parte II, subimos pela Rua Nova do Almada, até ao Largo das Duas Igrejas, onde, alguns anos antes, Eça colocara o padre Amaro a conversar com o cónego Dias.

Cesário é o autor daquele que é considerado o mais perfeito poema do século XIX, mas a reação do público não foi a que ele esperava e não estava preparado para o silêncio que se seguiu.
Em 1884, apercebeu-se de que estava doente. Nos dois anos seguintes, a sua atividade literária sofreu uma forte redução. Em 1886, foi viver para casa de um amigo da família, situada no Paço do Lumiar, onde morreu a 19 de julho de 1886. Os obituários, os poucos que apareceram na imprensa, foram todos de circunstância.
Cesário não precisou de ser um «poeta maldito» para escrever a poesia mais revolucionária da sua época. Disse o que tinha a dizer sem uma palavra a mais ou a menos. Não foram os temas que fizeram dele um génio, mas a sua imaginação, liberta como estava de todas as convenções".

Maria Filomena Mónica. (2007). Cesário Verde: um génio ignorado. Lx: Alêtheia Editores.