quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A palavra e o mundo - deambulando pelas ruas de Londres (II)

O século XIX fundou uma cidade nova. O século XX estabeleceu-a como um espaço de viagem, de evasão, a montra de mercadorias, a confluência de pessoas e grupos. Dentro dela nasceu a ideia de uma viagem, o recorte da imaginação para alimentar um sonho, aquilo que o real não pode fornecer. Fernando Pessoa fez infinitos passeios na Baixa Pombalina a alimentar um sonho, a criar mundos não existentes, a tentar ser algo de “substantivamente moderno”, na expressão de Rimbaud.
Se o século XIX enaltecia o campo, o século XX é a confirmação da cidade, os seus espaços a produzir uma viagem que podia ser física ou mental. A viagem física na cidade proporciona a descoberta de espaços, de lugares, de experiências. A cidade vive da mobilidade, mas pode também ser imóvel, parada nos seus artefactos. Nestes, os motivos de descoberta, a procura para registar vidas não narradas é muito evidente. Há na cidade uma deambulação, a que Baudelaire chamou “flânerie”, que permite uma procura, entre o m ais fugaz e alguma perenidade.
A cidade pode tornar-se numa paisagem feita de multidões, de solidão, de sombras e de melancolia, como o sentiu Cesário Verde, em “O sentimento de um ocidental”. Ela, a cidade pode ser também uma geografia de irreal, como o disse T.S. Eliot, “a cidade irreal / sob o nevoeiro castanho de uma madrugada de Inverno”. A cidade emerge assim como uma personagem entre o real e o sonho. Em diferentes latitudes, a cidade surgirá no século XX como uma grande metrópole, onde uma atmosfera definirá grandeza e misérias humanas, ruínas e sonho, imaginário do fantasmagórico.
Virginia Woolf viu na Londres dos anos vinte, do século XX “um poema”, “uma história” que se revelava nos seus passeios pelas suas ruas e espaços. A cidade e Londres em particular foi para a autora de “As Ondas”, uma personagem essencial da narrativa literária. O que “Mrs. Dalloway” nos revela é essa deambulação na cidade, o reconhecimento de ruas, a sua toponímia, a sua atmosfera, onde circulam personagens de diferentes tempos que se inscrevem como uma intimidade. A cidade como elemento formador de uma memória, onde circulam os espaços afectivos de diferentes pessoas, onde cada um se defronta com um mundo interior inacessível e um exterior, capaz de construir uma evasão no tempo. A cidade integra-se num movimento social e cultural e faz das suas ruas, dos seus edifícios um construtor de vivências. Estas manifestam-se entre a multidão que habita um urbanismo explosivo de verticalidade, espaços concentrados de um efémero, por onde a fantasmagoria se insinua de um modo persistente.
A atmosfera de fantasmagoria apreende-se na iluminação pública, ainda a criar atmosferas de imprecisão, de indefinível, ou dessa junção de real e visionário, um esatdo preparatório de um pensamento. A cidade formula uma atmosfera, onde estruturas físicas parecem dotadas para uma certa forma de viagem que se realiza na descoberta de objectos e onde eles próprios são indutores da ideia de evasão. Mas também s´~ao instrumentos de um registo, como o lápis ou os livros de uma livraria antiga. Viagem em si por aquilo que ela desvenda, pela recuperação de um tempo que se perdeu e a sua integração no presente, no quotidiano que se vive.
Viagem que edifica um pequeno momento de eternidade, quando essas relíquias se erguem para nós. 

Imagem, London, The Terrace, House of Parliament, 1929.

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