Aos olhos piscos
de um Zé Fernandes, logo que ele suba, fumando o seu cigarro, a uma arredada
colina - a sublime edificação dos Tempos não é mais que um silencioso da espessura e da cor do pó final. O que será então aos olhos de Deus?
E ante estes
clamores, lançados com afável malícia para espicaçar o meu Príncipe, ele
murmurou, pensativo: - sim, é talvez uma ilusão... E a Cidade a maior
ilusão!
Tão facilmente
vitorioso redobrei de facúndia. Certamente, meu Príncipe, uma ilusão! E a mais
amarga, porque o Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só
nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a
força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e
escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos
trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem
sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus, espantado,
mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão? Na Cidade findou a sua
liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o
arremessa para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante
solicitar, adular, vergar, aturar, rico e superior como um Jacinto, a Sociedade
logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos,
serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel...
A sua
tranquilidade onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha
desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela
fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de
seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o
desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os
sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam!
Vê, meu Jacinto!
São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com
serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e
adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam
de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do
assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor
embate da rivalidade ou do orgulho. (...)
Mas o que a Cidade
mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da
banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada
de Ideias e Fórmulas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que
a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime
todas as expressões já exprimidas - ou então, para se destacar na pardacenta e
chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente
esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha q
multidão como um mostrengo numa feira. (...)
- Sim, com efeito,
a Cidade... É talvez uma ilusão perversa!
Insisti logo, com
abundância, puxando os punhos, saboreando o meu fácil filosofar. e se ao menos
esta ilusão da Cidade tornasse feliz a totalidade dos seres que a mantêm... Mas
não! Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade os gozos especiais que ela
cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos
especiais que só nela existem. (...) Mas quê, meu Jacinto! A tua Civilização
reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá,nesta amarga desarmonia
social, se o Capital der ao Trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha
ratinhada. Irremediável é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe
pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da Cidade. Se
nas suas tigelas fumegasse a justa ração do caldo - não poderia aparecer nas
baixelas de prata a luxuosa porção de foie gras e túbaras que são o orgulho da
Civilização.
Eça de Queiroz.
(2009). A cidade e as Serras. Porto: Porto Editora, páginas 83 e
84.
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