quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Um livro - O chapéu de fitas a voar


Título: O chapéu das fitas a voar
Autor: Augustina Bessa-Luís
Edição: 1ª
Páginas:2008
Editor: Guimarães Editores
ISBN:  978-972-665-523-2
CDU: 821.134.3

Sinopse (Excertos):



"Não são os crentes que se salvam; são os que esperam em plano de igualdade com o que é eterno - a vida humana e a realidade dos seus direitos. Devo acrescentar aqui alguma coisa que sempre me pesou: acima dos amigos eu tive o pensamento; além da gratidão, eu pus o amor forte e generoso pela vida. (...)

Somos sempre muito faladores com o insignificante e muito calados com o que nos assusta. Assusta-nos o íntimo das nossas vidas, por passarmos todas as portas sem pensar que elas se fecham para sempre atrás de nós. Não podemos voltar para compor o inacabado ou as palavras soltas ou a que faltou a experiência.

A criança de seis anos que eu era, que andava sozinha pela avenida onde cresciam as grandes tílias e só os pássaros se ouviam como guardas dos meus passos, teve o primeiro pressentimento do extarordinário. Disse para mim: "Estou num lugar, numa hora, numa vida que não me são desconhecidos." É que esse entendimento de que a nossa vida é repetição e pode ser corrigida a ponto de produzir uma forma de profecia, aquilo que nos abençoa e protege e alegra, fazendo com que o sofrimento tenha sentido no mundo". (1)

(Desta vez optámos apenas por retirar uns excertos do livro escolhido, pois a sabedoria de Agustina nas suas palavras é a melhor forma de seduzir outros leitores a descobrir uma obra rara, a que voltaremos mais vezes, para essa multiplicação do eterno).

   (1) Agustina Bessa-Luís, "Os amigos", in O chapéu das fitas a voar, págs. 214-215

domingo, 30 de novembro de 2014


"Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes« (1)

O apelido de Pessoa remete-nos para o teatro grego, as máscaras com que cada um enfrentava as dificuldades, os desastres a que não cediam de ultrapassar. Pessoa transporta-nos para essa noção de diversidade, de multiplicidade do individual. O poeta de que aqui falamos e que hoje se evoca o seu desaparecimento físico, há justamente setenta e nove anos, é uma figura marcante da cultura europeia e mundial. Representa a procura para num mundo coletivo, exprimir a voz do indivíduo, do seu olhar e das suas possibilidades.

Pessoa foi influenciado por um conjunto de circunstâncias, as suas, as do seu tempo, que lhe criou um ambiente histórico onde já se determinavam as dificuldades do Portugal Contemporâneo. A saber, O Ultimatum inglês, a decadência da monarquia, as dificuldades de afirmação da República, a instabilidade política e social, os acontecimentos trágicos à volta de Sidónio Pais. A confirmação de um regime onde a dignidade do ser não existia assegurou-lhe um Portugal cinzento, sem visão, nem futuro. Pessoa soube criar uma poética que respondia à multiplicidade individual, oferendo-nos a dimensão moderna, universal do homem como medida de realização de um todo. Afinal o que pode ser a vida?

Neste caminho em contínua aprendizagem que dimensão nos pode transportar para uma felicidade mais próxima da respiração de cada um? Um trajeto em que apenas o visível pelos sentidos se pode apreender, acima de qualquer ideia moral, como em Alberto Caeiro, ou o modernismo tecnológico do mundo de Álvaro Campos, ou os constantes valores culturais da memória de Ricardo Reis? Afinal não são os heterónimos diferentes possibilidades de olhar para a afirmação do género humano nessa aventura que é viver?

Em todo este complexo modo de ser, Pessoa afirmou-nos que é pela força das ideias que o País poderá ter a sua única possibilidade de se afirmar no mundo desenvolvido. A Mensagem, mais do que um relato de feitos do passado transporta-nos para essa ideia de um Quinto Império em que Portugal para ser autónomo, diferente, melhor, só o pode concretizar se for autêntico, se souber assumir a sua verdadeira dimensão.

Pessoa afirmou-se modernista pela sua tentativa de transformar o futuro do País pelas ideias, pela arte, pela cultura, no sentido de cada indivíduo poder participar na construção de uma comunidade. Quantos que governaram este País, inclusivé no presente, se esqueceram deste simples princípio? Pessoa é

um criador universal, porque soube criar as diversas possibilidades do indivíduo, a sua multiplicidade onde se encontram inscritos, os valores humanos. Afinal o que poderemos ser em cada dia, reconstruindo o futuro quotidianamente, é uma das suas grandes ideias. Partindo de uma experiência individual, as suas palavras reforçam a nossa humanidade, como valor universal.

Só os homens geniais conseguem acima da espuma dos dias, verificar o movimento mais profundo e compreender como poderemos ser mais dignos como País, nas palavras de Almada. Existir é pouco para uma dimensão mais consciente da vida. A genialidade de Pessoa é essa. A de revelar a necessidade de quebrar a incerteza que reina nestas praias em sucessivas gerações. Mariano Deida afirmou, há alguns anos, que o poeta de Autopsicografia inventou a própria literatura, no sentido não de ter criado palavras novas, mas de nos revelar dimensões novas do sentir/sentido humano.  

O autor de Guardador de Rebanhos ou de Mensagem ou de Tabacaria é o maior dos nossos poetas, o filósofo das partidas esquecidas e dos sonhos de conquista do infinito universo. Chamou-se Pessoa, Fernando Pessoa, andou por aqui durante os milénios dos seus sonhos e faz hoje setenta e nove anos que adormeceu. Continua a interrogar o real tão feito de aparentes compromissos de verdade e imaginação.
(1) Ricardo ReisOdes
Imagem, in f.Pessoa.com

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Columbano Bordalo Pinheiro

(Columbano Bordalo Pinheiro - O grupo do Leão)

Um dos quadros de um dos mais importantes pintores portugueses, exposto no Museu do Chiado e que expõe um dos encontros de artistas e amigos que se reuniam na cervejaria Leão, em Lisboa. Funcionava como espaço de convívio e de tertúlia, com Silva Porto, expoente da pintura contemporânea e que em Lisboa contribuiu para um ambiente de tertúlia pouco comum na capital, e que se animou muito, sobretudo após o regresso daquele de Paris. Enquadra-se no período do realismo, já na fase de abandono das projecções românticas e com a preocupação de revelar o olhar mais cru do artista

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Memória das palavras de Cecília Meireles


Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de noite fria.

O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.

Repara a canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.

É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.

Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.

E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura

por eternidades serenas.

(No nascimento de Cecília Meireles, uma das poetas mais importantes da língua portuguesa do século XX, que nos deu poemas de procura da simplicidade, entre os elementos mais característicos da natureza humana, a nossa transitoriedade, nesse jogo difícil entre o efémero e o eterno). 

Cecília Meireles, «Serenata», in Da Viagem (1939)
Imagem, in folhademinasgerais.blogspot.com


Um escritor no mês - Albert Camus


"Bem pobres são aqueles que precisam de mitos. Descrevo e digo: 'isto é vermelho, azul, verde. Isto é o mar, as montanhas, as flores.' Tenho eu necessidade de falar de Dionísio para dizer que gosto de esmagar bolas de lentiscos debaixo do meu nariz?"  (1)

Há um pouco mais de cem anos nascia um dos grandes (a palavra é pobre para o exprimir) pensadores sobre a condição humana. Foi identificado como um dos que pertenceu a um século onde alguns homens pensavam a sociedade ou para indicar possibilidades ou para forjar caminhos alternativos, os chamados intelectuais. A palavra não lhe faz completa justiça, pois ele foi sobretudo uma voz moral, acima da pequena política, das intrigas de palácio, onde soube falar sobre a natureza humana e dar-nos esse ânimo na voz que caminha entre a desistência mais passiva e o não afirmativo, comprometido, solidário por uma causa. A sua causa foi a da democracia da beleza, conceito, nobre à procura de uma revolução, sim a a da vida, como ele também expressou.

Filho de outro continente, das geografias humanas colonizadas, dessa mistura de povos e culturas, filho nas margens da sociedade, cultivou a resistência e o estudo como a verdadeira porta para se ser livre. É assim filho dessa ideia, que a França cultivou de que uma educação republicana, poderia fazer nascer um País desenvolvido. E escreveu sobre nós, as nossas ambições, a fragilidade humana na efemeridade do tempo e os valores morais que devemos vestir em qualquer contexto. Tony Judt chamou-lhe o 'Melhor homem de França' e esta sente-lhe a falta, desde que se tornou passivamente indiferente à contemporaneidade.

Escreveu O estrangeiro, A peste, O mito de Sísifo, Os discursos da Suécia, A morte feliz e O primeiro homem. Foi Prémio Nobel da Literatura em 1957 e é das poucas vozes coerentes do século XX onde podemos ainda ver o caos e a angústia dos tempos modernos como uma forma de expressão da humanidade, da nossa natureza. Compreendeu os limites das tiranias do século XX, antes de algumas das suas vozes mais sonantes e devemos-lhe isso, essa coerência pelo que somos. Caminhou sozinho, com a voz interior de um oráculo que se quer descobrir a si nos outros.

Essa felicidade que procurou, que procuramos, entre múltiplas imagens, na procura da memória mais bela a fundir no sonho, entre o universo visível que nos é dado a ver e a nossa experiência humana. Chama-se Albert Camus e nasceu há muitas décadas para que o visitemos nestes tempos obscuros que exigem um conhecimento de um homem essencial do século XX, de múltiplos séculos, nessa luta essencial entre o absurdo e a revolta, para a construção do possível humano.


segunda-feira, 27 de outubro de 2014


O século XX, os seus acontecimentos e formas marcaram com extrema violência a vida de milhões de pessoas. A História do século XX não pode ser compreendida sem a Arte, e as formas que ela assumiu. O século passado inaugurou de forma massiva a comunicação como meio de exprimir uma ideia. A pintura deixou de depender da noção clássica dos renascentistas da noção de perspetiva, assim como deixou de representar uma figura ou um quadro natural. O quadro tornou-se a própria realidade.

Neste sentido a arte em geral e a pintura em concreto poderiam dar a conhecer uma ideia de realidade, uma proposta de sociedade, indicando uma visão do mundo. A perspetiva aparecia como um ponto de observação, dando-nos uma ideia, um quadro, uma descrição do real. Ora, a História do Século XX, pelas suas contradições e angústias mereciam que a perspectiva fosse fragmantada, dividida em secções, como a própria realidade.

A arte e a pintura, em particular deveriam mostrar, revelar a natureza humana nos seus aspetos mais visíveis. O feio, a violência, a realidade sofrida por cidadãos em tão variados locais por onde a Guerra fez as suas vítimas. A vida moderna deveria ser expressa na sua angústia, limitações e estado de caos. A arte deveria apresentar o mundo, já distante nas formas sociais e culturais do século anterior. A este movimento iniciado em 1908 por Georges Braque e Picasso deu-se o nome de cubismo.

Foi com Picasso que a ideia da fragmentação da imagem foi levada mais longe. O nome de cubismo vem-lhe da utilização de pirâmides, cubos, cones que utilizava na diferente perspetiva dos objetos. A utilização de máscaras africanas e a utilização das suas cores vivas fez dele um artista muito importante na Arte Europeia e Mundial. Não é excessivo dizer que Picasso é um dos marcos da Arte Ocidental.

Há justamente cento e vinte e cinco anos, que nascia um dos criadores do cubismo e que deu à arte e à pintura uma ideia nova e transformadora da representação da realidade e da vida. O Museu Picasso em Barcelona disponibiliza um conjunto de recursos on-line interessantes. Vale a pena consultar. Aqui.


O mês de outubro é escolhido há já vários anos pela ISAL, (International Association of School Librarianship) como o mês das Bibliotecas Escolares. Em cada ano a IASL escolhe um tema que procura agregar temáticas ou questões pertinentes para o universo das bibliotecas escolares. O Tema deste ano é, Biblioteca Escolar, um mapa de ideias, o que nos faz pensar sobre o que são e o que podem ser as Bibliotecas Escolares num contexto de mudança tecnológica, de imprevisibilidade económica e social e de dúvidas sobre os formatos que a educação pode assumir neste contexto.

As Bibliotecas Escolares representam ou devem representar uma centralidade na escola pela sua relação com o currículo e com a manipulação de conteúdos informacionais e de envolvimento das competências digitais. Num mundo de informação, o livro é ainda um objeto, um material de cultura e um património de memória. É importante redefinir o papel da Biblioteca num contexto de sociedade de informação. Neste sentido o que é um livro? O que nos permite ele concretizar no universo das ideias? 

A leitura é um imenso privilégio, pois significa que superámos as mais condições da utilidade dos dias, que já não vivemos num quotidiano de carências, de sobrevivência e de medo. A leitura permite ter acesso a um espaço de recolhimento, para desfrutar momentos de lazer e de conhecimento. O livro é o único suporte de leitura que se basta a si próprio, pelo que só depende do leitor, do seu tempo privado, ao contrário da televisão, ou do cinema. O livro chama-nos, carece do nosso entusiasmo.

O que faz a grandeza do livro é a sua essência, isto é, não a leitura em si, mas a criação das imagens que ela suscita. Podíamos dizer que a leitura vale pela sua literacia. O livro é um único suporte de leitura que se basta a si próprio, pelo que só depende do leitor, do seu tempo privado, ao contrário da televisão, ou do cinema. O livro chama-nos, carece do nosso entusiasmo.

Ler é assim, acima de tudo, o momento de construção de imagens, "o levantar a cabeça", imaginado essas imagens que a leitura trouxe. A leitura, a sua essência repousa na construção dessa reflexão, nesse tempo individual. A leitura isola o leitor, permite a imobilidade, instala o silêncio e concede-nos um processo de contra-movimento contra a cidade, o grupo, o barulho, o movimento, libertando-nos do tempo. Por isso a Biblioteca, como espaço de leitura assemelha-se a uma divindade, detentora de uma energia, como a de um templo.

A Biblioteca aprimora a concentração (cujo étimo do latim quer dizer, com um centro), promovendo o silêncio, a imobilidade e a individualização. Se a Biblioteca desistir desta sua  nobre função será outra coisa, que não um espaço acima do tempo e do espaço, onde os seus fantasmas nos falam dos temas eternos, o amor, a luz, a felicidade, a viagem, o outro.

 Deve assim a Biblioteca encaminhar os seus leitores ou utilizadores para um património literário e cultural que é a mais elevada forma de respeitarmos a nossa mortalidade. É a nossa graça, num tempo de cultivar as diferenças, mostrando estar disponível, ao tempo dos outros. É esta conciliação que torna difícil concretizar esta aspiração de juntar o livro à expressão de uma valor digital, de aprofundamento de técnicas de estudo. A Biblioteca Escolar deve procurar esta ligação, pois nela reside o fundamento e o significado da sua existência numa escola.


Um livro - livro de crónicas 4


Título: Quarto Livro de Crónicas
Autor: António Lobo Antunes
Edição: 1ª
Páginas: ...
Editor: Dom Quixote
ISBN: 978-972-20451-00
CDU: 821.134.3-94"19/20"

Sinopse:
 "(...) levanta-te do papel com as palavras. Fecha os olhos e elas saem sozinhas. As palavras são notas, repara. Não penses em nada, abandona-te. O mundo inteiro está dentro de ti." (1)
Um livro de crónicas, o quarto em que o escritor de Sôbolos rios que vão ou de Ontem não te vi em Babilónia nos dá a intimidade do seu olhar sobre os objectos na respiração do quotidiano, dos gestos que nos encantam entre a solidão do que tantas vezes somos e do que admiramos no mais pequeno olhar. António oferece-nos com mais nitidez o trabalho artesanal do escritor que do mundo, da humanidade se reconstrói em cada coração para chegar aos olhares mais particulares, à sombra das árvores nas janelas.
Um livro como todos os seus livros entregue ao leitor, às células por onde caminha o fio do mundo e onde com as suas memórias redige as suas palavras, reformula os significados dessas notas que por entre as cotovias do bosque nos parecem tão pouco expressivas para a raridade do momento.

E a comoção que nós somos em tantos, aquelas palavras, aqueles gestos na conquista breve dos dias. António é um poeta não das palavras, mas do real por onde conquista nas sombras e ausências os significados universais do que significa viver, existir e morrer. 
(1)  António Lobo Antunes, "Já escrevi  isto amanhã", Quarto Livro de Crónicas


terça-feira, 21 de outubro de 2014

Manuel António Pina - a lembrança de uma memória


"A beleza é o rosto mais jubiloso da verdade. Não da própria verdade, mas do seu rosto". (1)

Os dias são muitas vezes tão sucessivamente rápidos que muitas memórias nos escapam. O tempo torna-se reduzido para inscrever no íntimo tantas vozes que tentaram connosco dar aos dias uma cor própria, um sentido vivido de consistência e beleza. António Manuel Pina desapareceu fisicamente a dezanove de Outubro de dois mil e doze. É uma voz que vale a pena recuperar. Pela poesia, pelas crónicas, que nele eram uma arte de desmontar o essencial e pela prosa.
António Manuel Pina foi um homem que buscou nas palavras uma tentativa de fazer compreender a nossa natureza efémera. Foi daqueles que vindo das terras do Mondego, dos contrafortes da Estrela se fez e se encontrou na cidade do Porto, como forma de desenhar na natureza agreste das pedras, o seu caminho de combustão de sonhos, no veludo das encostas de granito.
António Manuel Pina tinha uma paixão pelo Winnie the Pooh. Olhava para a literatura infantil como a possibilidade de reencontrar o olhar inicial, o que está pronto para a linguagem do mundo, ainda sem o conhecer. Revelou uma curiosidade para traçar pela poesia as grandes questões filosóficas de sempre inerentes à natureza humana e descobriu na solidão a possibilidade de erguer sonhos.
Reflectiu sobre a sociedade em que viveu com liberdade, com inteligência e com criatividade. Deu-nos no JN um conjunto de crónicas sobre esse real que se sonha e que não se compreende pela ausência de uma real cidadania. Desse real, em que instituições e media, precariamente percebem o significado do velho ideal grego, "Libertas, Humanitas, Felicitas".
Foi um cronista que ousou utilizar as palavras para discutir "as verdades" que o establishent político gosta de enumerar como os pilares do universo, por onde interesses privados se alimentam da destruição mais básica dos valores de dignidade de tantos. Manuel António Pina foi um prosador e com as palavras procurou exercer a liberdade que nos falta, a que tem uma dimensão moral.
E foi um poeta. Um poeta que nos descreveu como nos orientamos com os mitos, como respiramos o real, entre os lugares e as suas sombras, por onde tentamos reconhecer os gestos. Nunca nos recompomos da partida dos poetas, pois o timbre da voz é irrecuperável, mesmo que a memória e as palavras queiram colaborar nessa luta à partida perdida, de guardar o sorriso no templo desse "dragão feroz" (2) que é o próprio tempo.
(1) Entrevista a Manuel António Pina, in Jornal i, 18/02/21012
(2) Ana Maria Matute, Paraíso Inabitado

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Memória de António Ramos Rosa


A PALAVRA, A FÁBULA, O MUNDO

Escrevo para entrever o que seria o mundo
liberto de si mesmo e sem imaginar
pouso no limite entre a luz e a sombra
para me oferecer à nudez de um começo

Há palavras que esperam na sombra contra o muro
para serem a felicidade de uma folha aberta
sem mais sentido que o perpassar da brisa
mas que abrem o mundo e de doçura tremem

Não é preciso polir a madeira das palavras
ou talhá-las como se fossem seixos
Há um lugar para elas no branco e não numa alfombra de
ouro
e quanto mais frágeis mais frescura exalam
porque elas são a fábula do mundo quando a água o embala.

António Ramos Rosa. (2001). Antologia Poética. Alfragide: D. Quixote.
Imagem, lleana Bosogea-Tudor (Via http://1x.com/)


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

No nascimento de Agustina

«Os meus livros são, afinal, ou só isso, a oportunidade de milhões de almas, únicas todas elas, almas de sapinhos cheios de importância de viver. [...] Uns partem um pouco depois de dizerem bom dia, outros ficam até morrer. Todos se continuam naquilo que têm de profundamente entre si – a vocação para serem sós, porém aceites por cada um dos outros. Porque a solidão que me acusam de impor aos meus personagens, como uma grilheta, é apenas a sua individualidade biológica, a exclusividade, a reivindicação superior da sua própria luta. Um homem jamais corresponde a outro homem; as suas reacções e conclusões não equivalem a vivência de outra alma, a experiência doutro eu. O mistério da vida cumpre-se em cada homem de uma forma única.» (1)

Retemos dela uma ideia de uma luz de quem caminhou ao contrário, da maturidade para a infância, de quem nos ensinou que a vida é demasiado importante para ser levada a sério e que por isso nada mais difícil do que o gesto grave, a dureza do caminho, para os que procuram um lugar de felicidade, de conquista de individualidade. Por isso as fórmulas rápidas e fáceis são inexpressivas de qualquer verdade, pois em cada ser há uma respiração diferente.

Nas suas obras, as mulheres de diferentes gerações revelam essa aspiração de humanidade, que condensam o que viveram, o que sonharam, em luta com o real sem se saber se se ousou o suficiente, se a afirmação foi suficiente para chegar a esse momento quase final em algo que se compreendeu.

É uma das grandes figuras da cultura portuguesa deste século. Pela escrita, pelos temas, pelo humor e por aquele sorriso de quem já parece ter percebido o sentido das coisas e por isso sorri para o horizonte, como a criança acabada de nascer. 

Chama-se Agustina Bessa-Luís e faz hoje noventa e dois anos. Deixamos um excerto do final desse grande livro, Sibila:
«É esta a mais grandiosa história dos homens, a de tudo o que estremece, sonha, espera e tenta, sob a carapaça da sua consciência, sob a pele, sob os nervos, sob os dias felizes e monótonos, os desejos concretos, a banalidade que escorre das suas vidas, os seus crimes e as suas redenções, as suas vítimas e os seus algozes, a concordância dos seus sentidos com a sua moral. Tudo o que vivemos nos faz inimigos, estranhos, incapazes de fraternidade. Mas o que fica irrealizado, sombrio, vencido, dentro da alma mais mesquinha e apagada, é o bastante para irmanar esta semente humana cujos triunfos mais maravilhosos jamais se igualam com o que, em nós mesmos, ficará para sempre renúncia, desespero e vaga vibração. O mais veemente dos vencedores e o mendigo que se apoia num raio de sol para viver um dia mais, equivalem-se, não como valores de aptidões ou de razão, não talvez como sentido metafísico ou direito abstracto, mas pelo que em si é a atormentada continuidade do homem, o que, sem impulso, fica sob o coração, quase esperança sem nome.» (2)

(1);(2) - Agustina Bessa-Luís, in Revista "Lusíada", Porto, Outubro - 1955; Sibila

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O diálogo das palavras


"Se queremos escrever livros a sério temos que aspirar ao silêncio e encher os livros de silêncio. O leitor lê as palavras que não estão lá escritas e no entanto estão lá. O que os livros tratam todos é de uma paisagem interior. E é por isso muito difícil falar deles. É sempre a mesma busca.

Primeiro a angústia do homem no tempo e depois uma procura de si, da natureza do homem. Penso que os livros são todos isto. Muitas vezes não é um trabalho de elaboração prévio à escrita. É a própria escrita que vai moldando a estrutura do livro. O livro é feito de palavras. São as palavras que vão moldando. E só assim podem carregar com elas as emoções. E os grandes livros são são serão livros doentes? 

Este livro é triste. É idiota dizer isto, porque quando a mão é feliz, o livro é uma alegria para o leitor. Ou quando falam em intriga. Não há intrigas. As pessoas dizem vou contar uma história. Não vão contar história nenhuma. Os romances maus contam histórias. Os romances bons mostram-nos a nós mesmos. Talvez seja isso. Um mau romance é aquele que conta uma história.

Escrever é uma coisa muito difícil. O ideal é que o livro fosse encontrar um deserto com vozes. Reduzir as coisas à pedra de que somos feitos. D. Manuel José de Melo (autor do século XVII) dizia "o livro trata do que vai escrito nele". É isso. É o livro que manda, não é o autor. 

Temos perguntas, mas não temos respostas. E quando soubermos as respostas, Deus muda as perguntas. A nossa vida é uma pergunta perpétua. Os livros são perguntas que trazem respostas, muitas vezes às perguntas que não fizemos. Goethe dizia que "o não chegar é que faz a nossa grandeza". E como escritor de livros é isso que sou: um principiante". 

Jornal das Nove, SIC Notícias, 2012
Imagens  Copyright
 Good book by Julianna Collet Photography
Escritaria 2012 - Homenagem a António Lobo Antunes (Napoleão Monteiro)

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Ler torna o mundo melhor


Ler torna o mundo melhor. Como, não sei. Ou seja, sei: de várias formas e cada um encontra a sua. É essa uma das graças dos livros, eles são uma mistura de religião e pequena banditagem. Tal como os bandidos nos filmes, os livros pegam em dois fios e, sem precisar de chave, ligam o carro. Quando são bonzitos, religam o leitor ao cosmos. Quando são mesmo bons, baralham e dão de novo. Um poema pode devolver-nos o sentido da vida. Já um romance é capaz de algo ainda mais importante, como ensinar-nos a namorar melhor.

Os livros são como as pessoas, só que em melhorzinho. Ninguém é fantástico vinte e quatro horas por dia. Autores banais fizeram livros extraordinários, porque no livro deram o litro. Imaginem o que seria a nossa vida só com os grandes momentos, tipo clip dos golos. Um livro é isso, uma sopa à qual basta juntar água e levar ao lume, ou seja, ao leitor. O livro está frio, desidratado, até que um leitor lhe pegue. Aí dá-se a faísca. Mas há um cuidado a ter.

Os livros são como o tango, dançados mano a mano. Se mil pessoas começam ao mesmo tempo a ler o mesmo livro, ao fim de poucos minutos já ninguém está sequer na mesma linha. Ao contrário do cinema e da televisão, o livro segue o tempo do leitor. É uma dança a dois, silenciosa como as melhores danças. Apesar de já estar escrito, impresso no papel, o livro só dança se o leitor quiser. O livro dá a melodia, o ritmo marca quem lê.

Os livros entram na nossa cabeça, porque é esse o poder da palavra escrita. Com uma originalidade: só entram na nossa cabeça se o leitor agir. Olhar todos olhamos. Ver implica estarmos atentos. E ler? Ler é olhar com intenção a dobrar: dos olhos e do espírito. Não fomos nós que criámos as árvores e o céu, mas fomos nós que inventámos a escrita: umas garatujas esquisitas que, juntas, formam coisas e ideias e sabores.

Sermos leitores não nos salva de nada. Infelizmente, quando fecharmos o livro a maior parte das vezes voltamos a ser quem éramos. A redenção durou pouco. Mas, enquanto estamos a ler, ah, nesse entretanto (nesse ler) podemos ser grandes! E a boa notícia é que há sempre outro livro por abrir.
Os livros dizem sempre a verdade, mesmo quando mentem. Cá está, uma vez mais: como as pessoas. Não, não estou a dizer que os livros são melhores que as pessoas. Apenas que os livros são as pessoas - autores e leitores no seu melhor.


Rui Zink, "Ler torna o mundo melhor", in Revista Estante (Número de Verão), pág. 6

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Dia mundial da música


"E há sempre sonhos
sonhos doces, tão mágicos, tão desejáveis
mas tão longe do que somos e temos.

Há sempre outros
sempre esses outros que nos avaliam
que nos fazem corar, sorrir, amar, chorar.

E há sempre nós...
nós bonitos, nós feios,
nós sozinhos, nós amados...

Quem me dera que houvesse
sempre uma imagem de nós nos
sonhos dos outros!"
Bernardo Sassetti escreveu estas palavras e estes sons a pensar na Rita. Nós, mesmo no efémero movimento dos dias pensamos nele, muito por essa busca de perfeição de escutar o silêncio com que construímos os sonhos que nos movem. 


Neste Dia Mundial da Música podíamos relembrar diferentes figuras, que preenchem a memória coletiva da Humanidade, pelo que fizeram sentir, pelo que permitiram transformar, pelos horizontes que reescreveram. Optamos por um amigo. Sassetti dá-nos em tonalidades de silêncio, os fios de olhar capazes de reconstruir os sonhos, em encontros de gestos cuidados.

Na sua inquietude criativa concede-nos momentos de encanto, de descoberta dos elementos que pelo silêncio se descobrem em cada anunciada manhã. Com os seus pianos descobrimos os sonhos, onde tentámos que também alguém nos espelhasse o que mais admiramos e buscamos nestes breves momentos. Neste Dia Mundial da Música, nas inexperientes palavras, deixamos os elementos do seu génio, que tanto nos enriqueceu.  


António, é um artesão das palavras, respira com elas num assombro que nos transmite as condições mais nobres e desoladas da natureza humana. António não escreve histórias. Usa as palavras para respirar os objectos do quotidiano, os gestos que nos deslumbram entre o olhar mais doce e a solidão das horas gastas.

António Lobo Antunes tem-nos dado em múltiplos livros o trabalho artesanal do escritor que do mundo, da humanidade se reconstrói em cada coração para chegar a olhares mais particulares, à sombra "das árvores nas janelas". António escreve livros com fios, por onde as nossas células adivinham caminhos e formas nos próprios passos. Com as suas palavras, as suas notas, reformula os significados das emoções que por entre as cotovias do bosque nos parecem tão pouco expressivas para a raridade, a memória de tempos ali vividos.

António escreve usando a emoção nas palavras, para encontrar nos gestos trabalhados, a conquista breve dos dias. António é um poeta não das palavras, mas do real por onde conquista as sombras e ausências, os significados, os instantes do que significa viver, existir e morrer. António Lobo Antunes nasceu com essa ambição de ser um escritor, para nos dar o ritmo das paisagens respiradas, onde tece as palavras que nos fazem olhar para o interior do que somos. Formou-se em Medicina, especializou-se em psiquiatria, mas descobriu que a a sua maior identidade são os livros.

Daqueles, poderemos destacar os Livros de Crónicas (com destaque obrigatório para o quatro e o cinco), Memórias de elefante (1979), Explicação dos pássaros (1981), O Regresso das caravelas (1988), O Manual dos inquisidores (1996), Exortação aos crocodilos (1999), Não entres tão depressa nessa noite escura (2000), Ontem não te vi em Babilónia (2008) e Sóbolos rios que vão (2010).

A sua obra tem recebido diferentes prémios. Destaque para a France Culture (1996), Donoso (2006), Camões (2007) e Clube Literário do Porto (2008). Em 2012 foi o escritor em destaque na Escritaria, festival literário e cultural da cidade Penafiel. É um dos nomes universais da língua portuguesa e sem dúvida um autor amplamente merecedor de um Nobel na Literatura, embora isso seja pouco relevante. O que nos tem dito e explicado das nossas sombras e alegrias e a sua exposição mundial fazem dele uma das referências culturais em língua portuguesa.


terça-feira, 23 de setembro de 2014

Celebrar o Outono


 "Lá vem o meu pobre Outono
que em troca daquela beleza
de vestir folhas douradas,
um vermelho sem igual
e um castanho especial,
sente a obrigação de abrir
a porta ao vento e à chuva ...

que nesta estação já perderam
a vontade de brincar
e lembram a toda a gente
que é tempo de trabalhar.
Ao Outono resta ainda
a bela consolação
de comer frutos de Verão".

Outono, João Pedro Mésseder, in O Livro dos Meses

Imagem (via http://havidaemmarta.blogspot.com)

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

As Bibliotecas


"A Biblioteca terá que ser o centro da sociedade. O homem é um animal leitor, leitor do mundo. Procuramos as constelações da narração: quem são os outros e onde estamos. Desenvolvemos o poder da imaginação. Somos capazes de criar o mundo, antes mesmo da criação do mundo.

As bibliotecas são a memória privada e a memória pública. A biblioteca é autobiografia de cada um.É o rosto de cada um de nós. As bibliotecas são também a biografia da sociedade, a sua identidade. As bibliotecas públicas são o rosto da comunidade.

Nós somos o que a biblioteca nos recorda o que somos. Um livro conta a experiência de cada um, onde estão as paixões mais secretas e os desejos mais íntimos. "Clínica da alma" é a sua melhor definição. A centralidade da atividade inteletual está na clínica da alma!"...


terça-feira, 1 de julho de 2014

As Bibliotecas

"A Biblioteca terá que ser o centro da sociedade. O homem é um animal leitor, leitor do mundo. Procuramos as constelações da narração: quem são os outros e onde estamos. Desenvolvemos o poder da imaginação. Somos capazes de criar o mundo, antes mesmo da criação do mundo.

As bibliotecas são a memória privada e a memória pública. A biblioteca é autobiografia de cada um. É o rosto de cada um de nós. As bibliotecas são também a biografia da sociedade, a sua identidade. As bibliotecas públicas são o rosto da comunidade.

Nós somos o que a biblioteca nos recorda o que somos. Um livro conta a experiência de cada um, onde estão as paixões mais secretas e os desejos mais íntimos. "Clínica da alma" é a sua melhor definição. A centralidade da atividade inteletual está na clíca da alma!"...

Alberto Manguel, "Reading and Libraries", 11º Congresso da BAD
 (No dia mundial das Bibliotecas)