sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A palavra e o mundo - Anatomia da errância (II)

«Pascal escreveu um dia, “notre nature est dans le mouvement… La seule chose qui nos console de nos miseres est le divertissement.” 
(…) A matéria-prima da imaginação de Proust foram as duas caminhadas na cidade de Illiers, onde passava férias em  família. Mais tarde, esses passeios tornaram-se os caminhos de Méséglise e de Guermantes, em Em Busca do tempo Perdido. O caminho dos cardos que levava ao jardim do tio tornou-se o símbolo da inocência perdida. 

“Foi nesse caminho”, escreveu, “que vi pela primeira vez a sombra redonda das macieiras no chão banhado de sol” e, muitos anos mais tarde, drogado com cafés e veronal, lá se arrastava e saía do quarto escurecido para, numa rara viagem de táxi, ir ver as macieiras em flor, de janela bem fechadas, para que o cheiro lhe não despertasse demasiadas emoções. A evolução destinou-nos a ser viajantes. A fixação, por qualquer período de tempo, em caverna ou em palácio, foi condição esporádica na história do homem. A fixação prolongada segue um eixo cronológico de cerca de dez milhares de anos, uma gota no oceano do tempo de evolução. Somos viajantes desde que nascemos. A nossa insana obsessão pelo avanço tecnológico é uma reacção às barreiras que encontramos na via do avanço geográfico.

O movimento é a melhor cura para a melancolia, como Robert Burton escreveu no seu The Anatomy of Melancholy, “ os próprios céus giram sempre, o sol ergeu-se e põe-se, as estrelas e os planetas mantêm rotações constantes, o ar é continuamente impelido pelos ventos, as águas enchem-se e vazam… para nos ensinar que devemos estar sempre em movimento.” 
Todos os pássaros e animais têm relógios biológicos regidos pela passagem dos corpos celestes. São utilizados como cronómetros e auxiliares de navegação. Os gansos migram seguindo as estrelas, e alguns cientistas behavoristas despertaram finalmente para o facto de que o homem é um animal sazonal. Um vagabundo que um dia conheci descrevia da melhor maneira a involuntária compulsão da errância: “É como se uma maré me levasse estrada fora. Sou como a andorinha do Árctico. É um belo pássaro branco, sabe, que voa do Pólo Norte ao Pólo Sul e vice-versa.” (…)

Todas as Primaveras, as tribos nómadas da Ásia sacodem a inércia do Inverno e regressam, com a regularidade das andorinhas que voltam aos pastos de Verão. As mulheres põem vestidos novos de algodão estampado, cheios de flores e, literalmente, “vestem-se de Primavera”. Balançam sobre a seda, ao ritmo da montada, e marcam o compasso da batida insistente do chocalho do camelo. Não olham para a direita que têm pela frente – acima do horizonte. A migração da Primavera é um ritual. Satisfaz todas as suas necessidades espirituais, e os nómadas são manifestamente irreligiosos. A subida das montanhas é para eles o caminho da salvação. (…)

As viagens reais são mais efectivas, económicas e instrutivas do que as falsas. Devíamos seguir os passos de Hesíodo e subir ao monte Hélicon para ouvir as Musas. Elas aparecem certamente, se dermos atenção. Devíamos seguir os sábios taoistas, Han Shan na pequena cabana da montanha Fria, a ver sucederem-se as estações, ou o grande Li Po – “Perguntaste-me por que habito as colinas cinzentas: sorri e não dei resposta porque os meus pensamentos ociosos erravam a seu bel-prazer; como as flores de pessegueiro, tinham voado para outros climas, para terras que não são do mundo dos homens.” Viajar tem de ser uma aventura escreveu Robert Louis Stevenson, “sentir de perto as necessidades e os obstáculos da vida; descer deste leito de penas que é a civilização, e descobrir debaixo dos pés o globo de granito, coberto de pedras ásperas”. Os choques são vitais. Mantêm a adrenalina a circular.»

Bruce Chatwin, Anatomia da Errância. (2003). Lisboa, Quetzal, páginas 133 - 136.
Imagem: Copyright - delta-breezes.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A palavra e o mundo - Anatomia da errância


"A viagem não se limita a expandir a mente. Faz a mente. As nossas primeiras explorações são a matéria-prima da inteligência (...)" (1)

É um livro, uma ideia, um olhar sobre a natureza, sobre os outros, mas especialmente sobre nós próprios. O real é uma dimensão fascinante do que nos é permitido conhecer. No natural podemos reformular os princípios de uma vida material que não sabe respirar as sombras dos bosques, o pó das estradas, ou a liberdade das águias nas arribas montanhosas.

A viagem, como conhecimento fazendo transpirar as palavras nos caminhos da paisagem, entre a solidão dos passos e o horizonte magnífico, por onde já passaram indiferentes, mas vivas, as perfumadas flores de pessegueiro. À viagem devemos os rituais que em Primaveras sucessivas nos dão o canto das cotovias, a renovação do tempo solar e a construção de uma geografia pessoal que se interliga com o cosmos. É na viagem que se descobre o outro, se acrescenta uma forma diferente, completando-se a aquisição corporal da terra e do mar, dos rios e vales.

Num livro que reúne textos dispersos, compreendemos que a civilização e o seu progresso material e tecnológico constrói uma rede de excessos que são contrários à verdadeira natureza do homem. Esta reside no movimento, pois tudo, dos rios, aos oceanos, dos corpos celestes ao planeta faz o seu movimento contínuo.
Com Anatomia da Errância Chatwin deu-nos todas as razões para fazer da viagem o centro de uma forma de vida que alimenta os caminhos da imaginação. O real, ainda é uma fonte inesgotável de inspiração e de conforto existencial.

(1) Bruce ChatwinAnatomia da Errância, Quetzal

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A palavra e o mundo - Teoria da Viagem


«Se escavarmos as nossas memórias de infância lembramos primeiro caminhos, e depois coisas e pessoas - carreiros no jardim. O caminho para a escola, o percurso em volta da casa, áleas por entre fetos e erva verde.»( 1)

Toda a nossa história humana se construiu em redor desta escolha, que todos fazemos, entre o desconhecido, a miragem da geografia, o cansaço do corpo nos trilhos do vento e o lugar fixo, sedentário. Entre pastores e camponeses, entre a Geografia e a História, a dúvida no amanhecer e a certeza em todos os dias, eis a escolha que a condição humana tem feito. No essencial, a viagem.

Ela é a marca impressiva, o pergaminho que nos dá o reconhecimento do que somos, a verificação das capacidades individuais nos momentos em que o real, o quotidiano é desordenado pelo azul do céu, o verde das florestas ou o castanho poente do deserto. Poucas coisas, raras, são as que nos dão a oportunidade de fazer a descoberta interior, como as que encontramos nos tons da aurora e do crepúsculo, na brancura das nuvens, na descida de um rio ou na subida íngreme de um trilho de montanha.

É na Geografia que descobrimos a multiplicidade do que somos, tão difícil de explicar. É ela que nos permite o nosso irregular talento por criar a originalidade humana. Perante a dimensão do natural conseguimos exprimir melhor as emoções que numa sociedade civilizada tem demasiados obstáculos ao sentido do ser.

Michael Onfray escreveu um livro fascinante sobre a viagem, as motivações dos viajantes, o desejo de encontro nos vastos espaços, a cartografia do mundo no encontro com a memória e com a palavra. Um livro que nos faz descobrir como o viajante encerra em si uma liberdade capaz de discutir as certezas dos que vivem instalados num real conhecido, previsível e domesticado pela razão e pelo conforto. 

As culturas, os homens que na História ousaram construir sob o tempo social, um outro, mais individual, subjectivo, emocional, guiados pela Natureza e seus ritmos conseguiram chegar ao encontro único. Aquele que podemos fazer com nós próprios, num movimento finito, que apesar da mortalidade nos permita comportar como «fragmentos da eternidade» (2)

(1) Bruce Chatwin, Anatomia da Errância
(2) Michael Onfray, Teoria da Viagem

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A palavra e o mundo

"Não são as pessoas que fazem as viagens mas sim as viagens que fazem as pessoas." (1)

A palavra e o mundo é a designação que escolhemos para a etiqueta que organizará um conjunto de propostas de leitura, exploração de temáticas à volta de uma ideia chave, o livro e a viagem. Literatura de viagens no seu sentido mais lato, mas também outras formas de viajar. A viagem dentro do livro, aquela que nos permite transformar um sentido, uma forma de ver o mundo, de nele escrever o que tentamos ser. A viagem como descoberta, entre as suas dimensões físicas e espirituais.

Conhecer o mundo é ir ao encontro de diversas culturas, de diferentes cores, de ver a vida. Como John Steinbeck nos soube dizer há várias décadas é a viagem que nos faz. É ela que nos faz ser o traçado mais importante da geografia, é ela que nos faz descobrir os poemas do planeta, em cada recolha de sal e pó. É a viagem que nos organiza, nos identifica e é nela que a variedade do mundo nos recria de originalidade.

A palavra e o mundo é no fundo a construção pelos livros de uma viagem nas suas diversas dimensões. A viagem também como como forma de aprendizagem, pois é nela que podemos compreender a beleza do planeta, a sua diversidade, o belo entre os momentos de imperfeição de que é composta a vida.

(1) John Steinbeck, citado do prefácio de Gonçalo Cadilhe, Um lugar dentro de nós. (2012). Lisboa: Clube do Autor.
 Imagem - Ilha de São Miguel, Açores.