terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A palavra e o mundo - Os três reis do Oriente (III)

III
BALTASAR
O rei Baltasar amava a frescura dos jardins e sorria ao ver na água clara dos tanques o reflexo da sua cara cor de ébano. 
E amava a alegria, o rumor e a abundância dos banquetes, e muitas vezes as suas festas duravam até ao romper do dia. 
Porém, certa madrugada, depois de se terem retirado todos os convivas, o rei ficou na grande sala, sozinho com um jovem escravo que tocava flauta. 
E pareceu-lhe que a melodia desenhava no ar o contorno de um espaço vazio. 

Então o seu coração ficou pesado de tristeza, e Baltasar pensou: «Será possível que um dia eu me retire da vida como um conviva saciado que se retira de um banquete? Ou terei sempre a mesma sede, a mesma fome, o mesmo desejo dos momentos e dos dias?» 
E tendo pensado isto atravessou a porta da sala e saiu para o jardim. 
Cá fora, na luz indecisa da antemanhã, o jardim parecia suspenso. A bruma confundia o desenho claro dos tanques e diluía no ar o contorno das ramagens. 
Baltasar caminhou longamente entre flores e palmeiras até romper o Sol. E quando já era dia chegou a um pequeno terraço que ficava no extremo do jardim. Debruçou-se no parapeito e viu, do outro lado da rua estreita, um homem jovem, encostado a uma parede, que o olhava. 

Baltasar ficou imóvel como se o rosto do outro lhe tivesse batido na cara. Ou como se o rosto do outro de repente fosse o seu rosto. Ou como se pela primeira vez na sua vida tivesse visto a cara de outro homem. 
O que naquele rosto mais o surpreendia era a nudez, a evidência nua. Era como se naquele rosto o cerimonial da vida tivesse retirado a sua máscara e a realidade mostrasse, sem nenhum véu, o abandono, a dor consciente, a condição do homem. 
Era um rosto de homem jovem e magro onde os ossos desenhavam, sem nenhum equívoco, o ideograma da fome. 
A tristeza subia da mais profunda morada da memória e aflorava inteira à tona das pupilas. A paciência, como uma leve cinza, poisava na testa, sobre os beiços, sobre os ombros. E havia nessa paciência uma doçura tal que Baltasar sentiu de súbito uma vontade aguda de chorar e de se prostrar com a sua própria cara encostada à terra. 
E perguntou: 
— Tu, quem és? 
— Tenho fome — murmurou o homem. 
— Entra — disse Baltasar. — Vou mandar que te sirvam os melhores frutos, as melhores carnes, os melhores vinhos. Vou mandar que lavem os teus pés com água perfumada numa bacia de ouro. Vou mandar que te vistam de púrpura. Vou mandar aos meus músicos que toquem para te aprazer as mais belas melodias. Vou mandar vir para ti a tocadora de cítara. Eu próprio colocarei debaixo dos teus pés o tapete mais precioso, e ficarei sentado ao teu lado para desfazer a tua solidão, e escutarei as tuas palavras para que possas tomar parte na alegria e para que as fontes e os jardins do palácio apaguem a tua tristeza. 

Porém o homem, ouvindo estas palavras, assustou-se. No rosto negro, debruçado na luz branca do terraço, reconheceu com terror o rosto do rei. E pensou: 
«Ai de mim! Para que me chama o rei? Vim espreitar o seu palácio e isto sem dúvida é um crime. É melhor que eu fuja antes que os guardas cheguem.» 
Pois aquele homem, como todos os muito pobres, sabia que o mundo era governado por leis que o perseguiam e condenavam, e por isso temia a cada instante ser acusado e preso por uma razão desconhecida. Caminhava num país que não era o seu e onde tudo era para ele insegurança e temor. 
E por isso fugiu, sumiu-se ofegante entre as curvas da ruela estreita, sem ver o gesto de Baltasar que o chamava. 
E no palácio o rei disse aos seus guardas: 
— Ide e procurai nas ruas um homem jovem magro, vestido de farrapos e que tem os olhos cheios de tristeza e de paciência. 

Porém, ao cair da tarde, os guardas voltaram e disseram: 
— Encontrámos tantos homens esfarrapados, tristes e pacientes que não soubemos distinguir aquele que tu procuras. 
Por isso na manhã seguinte o rei Baltasar, tendo despido os seus vestidos de púrpura, envolveu-se num manto de estamenha e saiu sozinho do palácio para procurar o homem. 
Desceu pelas ruelas estreitas da encosta, e, longe das grandes avenidas triunfais onde a brisa faz sussurrar as folhas duras das palmeiras, percorreu longamente os bairros pobres da beira do rio. Os carregadores do cais ergueram para ele a face sombria, e o homem que vendia os sapatos de corda poisou no olhar do rei o seu olhar cansado. Viu homens dobrados sob os fardos, viu os que puxavam carroças como bois, lentos e pacientes como bois, viu os que usavam grilhetas nos pés, viu os que deslizavam rente às paredes, silenciosos como sombras, viu os que gritavam, os que choravam, os que gemiam. Viu os que estavam sós, imóveis, encostados aos muros, atónitos, interrogando, para além da voz rouca das ruas, o silêncio opaco, fitando em sua frente a estrada recta do silêncio. Viu os que pescavam pequenos peixes nas águas sujas do rio. Viu os que tinham a cara cor de trapo e as mãos feitas de cinza, cinza leve que voava com o vento. Viu a sombra verde, o reino da paciência, o país da desolação sem margens, o império dos humilhados, o lado esquerdo da vida, a Pátria deserdada, o fundo do mar da cidade.

E no dia seguinte o rei reuniu os seus ministros e disse- -lhes: 
— Mandai distribuir os meus tesoiros e mandai distribuir as reservas acumuladas nos armazéns e nos celeiros. E reparti tudo entre os esfomeados e os pedintes. 
Tendo ouvido isto, os ministros retiraram-se para deliberar. 
E voltaram passados três dias, e responderam: 
— Os teus tesoiros não chegam para resgatar os escravos, e as reservas dos teus armazéns não chegam para saciar os esfomeados. Nem o teu poder chega para alterar a ordem da cidade. Se cumpríssemos aquilo que mandaste, os fundamentos que nos sustentam e os muros que nos protegem ruiriam. O teu desejo é contrário ao bem do reino. 
E o rei lhes respondeu: 
— Procuro outra lei e procuro outro reino. 
Então os ministros retiraram-se, murmurando entre si: 
— Vemos que ele nos trai.
Na manhã seguinte, dirigiu-se Baltasar ao templo de todos os deuses. 
E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar: 
«Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força e o domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses.» 
Seguiu o rei para o segundo altar e leu: 
«Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses.» 
Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu: 
«Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo o espírito ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram.» 
E tendo passado pelos três altares, Baltasar interrogou os sacerdotes: 
— Dizei-me onde está o altar do deus que protege os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore. 
Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam: 
—Desse deus nada sabemos.
Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse: 
— Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?
A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. 
O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria. 
E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira.

Sem comentários:

Enviar um comentário