"Azul
estava confuso. Vivera convencido de que era a cor do céu. Tinha lido
poesias dos melhores autores e ele próprio escrevera uns versos a
respeito, de uma vez em que estivera apaixonado por uma mulatinha de
olhos claros. Azuis eram o céu, os miosótis, o mar tranquilo e os olhos
das amadas - sempre assim fora e assim devia ser.
E,
afinal, o azul que está no céu não é azul - dizem os cientistas. E nem
era preciso que o dissesse. Azul já viu, com os seus próprios olhos, na
televisão a cores do vizinho, os astronautas a fazerem piruetas contra o
céu - um céu negro, temível, sem fundo, sem distâncias, sem uma
nuvenzita sequer para enfeitar. Será que as nuvens também são mentiras? E
então o sol? Como é que se segura se não está pendurado sobre o azul do
céu?
- Estás é com uma crise de identidade - disse Azulão, o sábio, muito sábio.
-
Isso é uma doença? - perguntou azul, cheio de inquietação. Ao mesmo
tempo que tinha medo de estar doente, tinha esperanças de sofrer de
alucinações que o enganassem quanto à verdadeira cor do céu.
- É uma espécie de doença - disse o sábio. - Uma doença de personalidade.
- Quer dizer que o céu é mesmo azul?
- Bolas! Estou farto de saber que é preto! O que é azul é o planeta Terra.
- É boa! - disse Azul. - Sempre me pareceu verde!
-
Os sentidos enganam - disse o sábio. E arrotou, porque as frases
profundas lhe causavam transtornos nas paredes do estômago. Puxou de um
grande manto, gemeu e levantou-se. - Vai para casa depressa. Não tarda
que anoiteça.
azul
bem percebia o que ele queria dizer. A noite come todos os azuis. Só
por dentro das casas ou sob a proteção de uma luz forte é que podem
escapar à escuridão da noite. Azul correu, correu, atravessou as ruas e o
cume das montanhas mas, como estava um tanto enfraquecido e de algum
modo tonto com tudo o que lhe andava a acontecer, não conseguiu chegar a
casa a tempo. A noite vinha - galop, galop, galop - mesmo no seu
encalço.
-Ai
de mim - disse Azul, escondendo a cara. - Eu já nem me importava com
cores nem astronautas! Quero lá saber da minha identidade! Quero é que
não me comam, seja lá eu quem for...
Mas a noite - galop - logo ali! Azul deu um saltito, já sem fé. Foi cair na barriga de um inseto.
- Hop! - gritou o inseto, que era muito nervoso. - que diabo foi isto? Quem és tu?
- Sou o Azul - disse Azul a tremer todo.
- Não me digas! A sério? És o azul?
- Sim, senhor - garantiu. E estremecia tanto que acendia e apagava tal e qual uma luz.
O
inseto não cabia em si de contente. Esfregava a barriga muito
devagarinho, para cima e para baixo, para um lado e para o outro, todo
vaidoso com a luz azul.
-
Esta agora! Tornei-me um pirilampo! Era o bicho mais feio das
redondezas e agora sou o mais bonito, olarila! Eu nem sei a quem hei de
agradecer mas o facto é que estou muito agradecido...
Azul,
aconchegado na barriga do Agora-Pirilampo, deu uma risadinha. Estava
salvo da noite, perdera a crise de identidade com o susto e tornara
feliz um inseto complexado. Complexado e intelectualmente um tanto
diminuído porque até hoje não compreendeu como foi que se transformou
num pirilampo."
A luz de Newton / Hélia Correia. Lisboa: Relógio D´ Água, 2015.
Imagem: Copyright - "ceci le colour de mes reves", Joan Miró, 1925.
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