quarta-feira, 13 de maio de 2020

Minutos de leitura (XVII)

"Era uma vez uma menina com cabelos loiros caídos até aos ombros. Dos seus olhos claros – diz quem alguma vez os fixou – transbordava um mar de interminável ternura. Olhava para tudo como se fosse sempre a primeira vez. E a sua voz era uma das mais meigas e suaves que alguma vez se escutou. Eu, que a ouvi muitas vezes, digo-vos que Matilde nunca deixava de falar com a alma e o coração.
Vivia numa numa quinta grande dos avós. Nessa quinta existia um grande jardim de rosas vermelhas e violetas rasteiras. A porta da entrada era decorada por uma frondosa trepadeira de flores que ora pareciam azuis ora roxas. Matilde chamava-lhe Buga. Nas noites quentes, quando o cheiro da trepadeira inundava o jardim, Matilde e a amiga tinham longas conversas. Era um segredo só das duas. Matilde, gostava tanto dela, que quando o seu gato dourado morreu, quis que ele ficasse sepultado junto às suas raízes. Desta forma, o gato dourado continuaria ali com ela e com o Pastor, o seu cão branco, de olhos castanhos e doces, que todos os dias ia para lá ladrar e fazer buraquinhos na terra, como que a chamar o companheiro de antigas brincadeiras. Às vezes, o Pastor levava-lhe ossos. Mas, como os gatos não gostam de ossos, era ele que acabava por comê-los.
O jardim tinha ainda espaço para algumas árvores de frutos: laranjeiras, macieiras, cerejeiras e oliveiras com folhas cor de prata. Matilde gostava especialmente de uma das laranjeiras. Devido ao amor que lhe tinha, ficou com a alcunha de Laranjinha. Essa árvore tinha um tronco forte onde, bem no meio, havia uma covinha que parecia um banco. Matilde sentava-se aí a ler poemas em voz alta para a laranjeira, para os pássaros e para as formigas que ali passavam em carreirinho. Ela gostava de ouvir o som das palavras, para as saborear com todos os sentidos. Procurava a música própria de cada uma e a seguir desenhava-as cuidadosamente, letra por letra. No fim, surgiam palavras de todos os tamanhos, cores e feitios. Um jardim encantado de palavras.

A casa como já disse, era muito grande. O quarto de Matilde tinha como paisagem um imenso descampado, um jardim zoológico (de que Matilde não gostava, porque compreendeu desde cedo que os animais presos sofrem) e uma escola só de meninas (naquela altura, as meninas e os meninos estudavam em escolas separadas). Matilde não ia à escola. Tinha uma professora que a ensinava em casa. Mas isso-acreditem em mim – deixava-a muito triste. Ela desejava ser uma criança como as outras. Queria ter uma sacola para levar os livros, o lanche e, principalmente, ter amigas com quem brincar.
Todas as manhãs Matilde acordava com as vozes e os risos das crianças. Com os seus olhos brilhantes, olhava a rua e imaginava-se no meio delas. Mas a sua escola era lá em baixo na sala, onde a esperavam os seus livros e a professora Ernestina. Nos dias de sol, na hora do recreio das meninas da escola, Matilde perguntava à professora se também podia fazer o seu recreio. Se Ernestina permitia, ela ia para o jardim, encostava o ouvido ao portão quente e ouvia uma melodia que sabia de cor desde que se lembrava de si: ”Cabra cega, de onde vens?”, “Não vês mesmo nada?”. Matilde fingia que era a si que perguntavam e, muito baixinho, respondia: “Nada, nadinha":
Havia uma canção de roda que lhe prendia a atenção como nenhuma outra:
Rosa branca ao peito
A todas fica bem,
À menina Matilde
Melhor do que ninguém.
Matilde não era ela, mas era bom fazer de conta que estava lá a rir e a bater palmas. Ao fim da tarde acabava a escola e as aulas de Matilde também. As meninas iam para casa e Matilde subia ao seu quarto. É que ao cair do dia costumava receber a visita de uma pomba. Uma pomba branca que poisava sempre na beirada da sua janela e esperava a pequena mão de Matilde, sempre recheada de grãos de milho doirados. Quando a fome já estava saciada, ela enroscava-se na mão de Matilde e com o seu pequeno pescoço fazia gestos de agradecimento. Quase que parecia um gato. A seguir, a pomba voltava para o beiral da escola e acomodava as penas no seu ninho, onde a esperavam outras pombas mais pequeninas.
Enquanto assistia a esse voo, Matilde cantava sempre:
Lá vai uma
Lá vão duas
Três pombinhas a voar
Uma é minha
Outra é tua
Outra é de quem a apanhar."
Matilde Rosa Araújo, um olhar de menina /Adélia Carvalho. Lisboa: Trinta por uma linha, 2010.

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