Pois eu tenho visto muitas vezes a piedade
se perder. Mas nós que governamos os homens, temos que aprender a sondar com
seus corações afim de não ministrarmos nossa solicitude senão como objecto
digno de estima. Mas essa piedade, eu a recuso nas feridas que se exibem que
comovem o coração das mulheres, como recuso aos agonizantes, e aos mortos. E
sei porquê. (…)
Morada dos homens, quem te fundaria sobre
o raciocínio? Quem seria capaz, segundo a lógica, de te edificar? Existes e não
existes. És e não és. És feita de materiais díspares, mas é preciso te inventar
para te descobrir. De mesmo modo que aquele que destruiu a sua casa com a
pretensão de conhecê-la, não consegue mais que um monte de pedras, tijolos e
telhas, não encontra nem sombra nem silêncio nem intimidade para o que elas
serviam, e nem sabe que serviço esperar desse monte de tijolos, pedras e
telhas, pois falta-lhe invenção que os domine, a alma e o coração do arquiteto.
Pois falta à pedra a alma e o coração do homem. (…)
Assim sobre a virtude. Meus generais, em
sólida estupidez, vieram falar comigo sobre a virtude: ‘Vocês aí, disseram-me,
que os costumes se corrompem. E é porque o império se decompõe. É preciso
endurecer as leis e inventar sanções mais cruéis. E cortar as cabeças daqueles
que fracassarem.’
Eu, pensava, comigo:
‘Talvez seja preciso cortar cabeças. Mas a
virtude é, de início, consequência. A corrupção dos homens é antes de tudo a
corrupção do império que determina os homens. Pois se estivesse ele vivo e são,
ele exaltaria a nobreza dos homens.
Aquele que vem até mim com sua linguagem
para apreender e exprimir o homem na lógica de sua exposição, parece-me
semelhante à criança que se instala ao pé do Atlas com seu balde e uma pá, e
formula o projeto de pegar a montanha e a transportar para outro lugar. O homem
é o que é, não o que se exprime. Certamente que o objetivo de toda consciência
é se exprimir o que é, mas a expressão é obra difícil, lenta e tortuosa, – e o
erro está em crer que não é isso que não pode primeiramente enunciar. Pois
enunciar e conceber têm o mesmo sentido. Mas é frágil a parte do homem, naquilo
que eu até hoje aprendi a conceber. Mas, isso que eu concebi um dia não existia
menos no dia anterior, e eu me engano se eu imagino que isso que eu não pude
exprimir do homem não é digno de ser considerado.
Pois assim eu não exprimo a montanha, mas
a significo [dou significado a ela]. Mas eu confundo significar e apreender. Eu
significo a quem já conheça, mas aquele que a ignora, como saberei lhe
transmitir esta montanha com suas ravinas de pedras rolantes e seus flancos de
odores e seu topo escarpado rumo às estrelas? E eu sei quando esta não é uma
fortaleza arrasada ou um barco sem direção do qual se solta a corda do anel de
ferro para deslocar para onde quiser – mas existência maravilhosa com as leis
de sua gravitação interna e seus silêncios mais majestosos que o silêncio da
maquinaria das estrelas.
Fragments (I), (III) e (XVI) e (XXX)
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