quarta-feira, 31 de maio de 2017

A palavra e o mundo - No meu peito não cabem pássaros (II)

Por alguma razão quis acreditar que entre tanta folha escrita haveria algures de estar o próprio. Passou muito tempo à procura em enciclopédias, compêndios e romances, mais tarde em contos e poemas, já com menos vida pela frente e outras ambições. Num momento certo soube desiludir-se e mudar de estratégia, passando a escrever-se.

Quando um achador de terras se cansa de procurar caminhos, resta-lhe desistir ou abrir uma estrada nova, assim com os seus avós, assim consigo. Por uma estrada inventada chega-se a qualquer lugar e por palavras escritas chega-se a qualquer vida em qualquer época. Começa-se devagar, com descrença, e vai-se andando encostado ao desespero até que as palavras visitem os sonhos e tomem conta deles. Primeiro uma vida, depois outras que a suportem e justifiquem. Vidas ao lado e vida antigas, vidas que hão-de vir e outras que nunca chegam a ser. Todas fazem falta, todas servem.

Os animais e as plantas são máquinas de criar complexidade num universo onde é mais fácil destruí-la. De um lado as estrelas a queimar a matéria, do outro células a fazer células. Um dia, por acidente ou excesso de zelo, os animais fizeram o homem e muito mudou. A humanidade é uma gigantesca indústria do complexo, capaz de fazer línguas, leis e até livros. Somos o contrário das estrelas e vamo-nos admirando com respeito e temor. Só por distracção e fastio nos vamos impedindo de criar universos a cada instante. A vida que somos forçados a viver é só a que nos dão, e é só uma, dentro temos milhões de alternativas à distância curta de pensar nisso. Bastaria para tanto fazer um futuro e alguns passados, o presente vai no resto.

Jorge tratou de inventar o que lhe foi necessário e muito mais. Entre os muros do jardim e as paredes da sala dos livros, viajou mais do que tantas andorinhas, foi muitos homens com todos os defeitos e todos os destinos. não lutou contra o tempo porque o tempo correu para o sossegar. Afinal o tempo sossega-nos sempre.

É dever dos homens envergonhar deus, mostrar-lhe que há mais histórias do que a que se pratica, derrotar-lhe a inventiva e o estilo. Fazer muito com o pouco que nos deu e pedir-lhe que faça mais com tudo o resto.

Nuno Camarneiro. (2013). "Buenos Aires", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.
Imagem – ©: Hauptfriedhof Frankfurt

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