segunda-feira, 12 de junho de 2017

A palavra e o mundo - estender os sonhos (I)

Se alguém escreve a biografia de um compositor do século XVIII, escreve a sua própria biografia. Aporta, entreaberta, afinal dá para o nosso próprio quarto. Espelho, anacronismo. pequena ilusão pessoal e humaníssima, desejo infantil de ver, tão forte. E quando se escreve não é para espiar Johann Sebastian compondo, na sua solidão eternamente perdida, mas para interrogar a própria fantasia, a fantasia própria. Interrogar a imaginação. 
Esther Meynell escreve sobre Esther Meynell, sobre a sua paixão por Bach, disfarçada de biografia.

Mas se toda a fantasia é anacrónica, se Anna Magdalena não surpreendeu Johann Sebastian a compor, nem nunca fugiu com lágrimas nos olhos, se uma autora em 1925 só pode imaginar, se interrogamos com as nossas palavras de hoje o passado perdido, nós, cheios de desejo, então vale a pena lutar contra a inverrosimilhança, então é preferível inventar o passado, assumir o fingimento. Não se pode ressuscitar o século XVIII; mas inventa-se o passado conforme o nosso desejo. Por isso, é o nosso desejo que inventamos.  Por iiso, nunca Esther Meynell é mais fiel do que quando descreve a cena mais inversímil: Anna Magdalena surpreendendo Johann Sebastian a compor, fugindo e chorando, como nós choramos hoje. (...)

Não se pode ressuscitar o passado, mas pode-se escrever sobre o passado, no presente; e misturar os tempos. Receber o que resta de antigas vozes, assinaturas, a dobra da linguagem, suas cerimónias e seus implícitos, a surpreendente consciência de que estas pessoas existiram. (...)

Tentação pequena, infantil, de fantasiar: quem seria este violinista, esse organista, aquele viajante? nomes, maledicências, testemunhos, um simples registo: a única marca, a única prova de que alguém viveu, com os seus entusiasmos, medos, as suas crenças, alegrias, esperanças, a sua morte.

Leio estas páginas, sites, fac-similes com os seus olhos extemporâneos; leio, interrogo, comparo, trezentos anos depois. Ignoro tanto sobre estes nomes; mas sei o que eles não souberam: que o mundo deles acabou, tudo quanto parecia eterno se revelou perecível, a ordem da sociedade e das nações mudou mil vezes, o que era proibido tornou-se corrente e o necessário escusado, crime e inocência confundiram-se, mas nessa violenta desordem das coisas - a que devagar nos fomos habituando, quase inconscientemente, no ciclo das gerações - a música do Kantor, irascível, envelhecido e fora de moda, sobreviveu.

Em cada palavra destes documentos setecentistas leio o passado, o presente, e o que persiste do passado no presente, o destino que nenhum setecentista ousou adivinhar. Organizo, recupero: copio os nomes dos mortos para este texto. Penso que essas vidas não estão terminadas, que nada terminou, leio e releio estes nomes, escrevo, reescrevo, interrogo: trezentos anos depois, respondo.

Pedro Eiras. (2014). "Esther Meynell", in Bach. Porto: Assírio& Alvim

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