quinta-feira, 8 de junho de 2017

A palavra e o mundo - Sonhos azuis pelas esquinas (IV)

Quando se aproximou, a mulher trazia vestida no corpo a carga de uma notícia. Eu não quis acreditar. Pensei que (eu) estivesse a ler sinais inexistentes. Mas, é sabido: há sinais inconfundíveis. Há factos que nos encontram. No mar ou no deserto. Na escuridão ou na maresia.

Havia ruído. A mulher teve o cuidado de esperar que a multidão se dissipasse. Eu sabia que não esperava nada. e quando não espero nada, posso estar muito tempo assim. Ela esperava não sei o quê. Mas esperou.

É verdade que se aproximou devagar e que esteve um largo pedaço de tempo à espera que a multidão seguisse o seu destino. Não deixa de ser curioso que duas pessoas sentadas num aeroporto, e paradas, podem fazer a vez de um polícia sinaleiro ou de uma esquina. Tanto um sinaleiro como uma esquina dão caminho a multidões.

"Se não é pesado, o silêncio não incomoda", começou a mulher. Disse-o como quem fala para quem quiser ouvir. Há coisas que só nos chegam se as quisermos ouvir. E se o nível de ruído circundante o permitir. Às vezes mesmo um aeroporto pode ser um lugar vazio. Os lugares, quando são grandes, contêm um vazio maior. Mas dentro de cada um, o vazio não se equipara ao tamanho dos lugares. É assim que uma pessoa pequena pode conter um enorme vazio e a pessoa grande conter um vazio menor.
Só cada dono poderá saber do tamanho do seu vazio.

A mulher apontou para o meu telefone:"essas coisas contêm música, não é?" Acenei afirmativamente. E pensei: "há coisas que têm e tocam música. Também as lembranças estão cheias de músicas." O vazio do aeroporto espalhava em nós uma tranquilidade avassaladora. 
De novo, apontou para o telefone. O seu dedo, pequeno, movia-se como uma pena. Leve. Muito leve. "Procure uma música chamada Rising." Uma pontada de tristeza invadiu-me o coração. "Lhasa é o nome da cantora", disse, ainda suave. "Eu sei." A música começou. Os olhos da mulher incharam-me de lágrimas. As músicas estão cheias de lembranças. "E de sensações...", disse a mulher.

A mulher, sem olhar para mim, foi dizendo que conhecia a música de Lhasa desde o início da carreira. Que tinha ido a muitíssimos concertos. E que tinha uma notícia para me dar. Que talvez eu já soubesse. Ou não. Mas, é sabido: há sinais inconfundíveis.

O seu dedo, leve, apontava para o telefone. "Ponha aquela canção de nome Bells. E prepare-se: tenho uma triste notícia para lhe dar."
Como seres humanos, estamos alguma vez preparados para uma triste notícia?

Vi as horas. em breve eu deveria partir. A mulher tinha-se sentado ali, tão perto de mim, para me falar da morte de Lhasa. De modo separado, chorámos juntos. Há factos que nos encontram. Na escuridão ou na maresia, todos os lugares são internos.
O silêncio não nos incomodava. Não dissemos mais palavras. Esperei que terminasse a música, e parti.
Tanto um aeroporto como uma música dão caminho a multidões.
Ou a um homem só.

Ondjaki. (2014). "Nairobi", in Sonhos azuis pelas esquinas. Lisboa: Caminho.

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