"O
sentimento estético da vida não é exclusivo das obras de arte. Nós o sabemos
das horas silenciosas em que a sua face se adivinha e não há ainda uma obra de
arte a traduzi-la. a integrá-la numa manifestação. Assim nos não é possível
imaginar um mundo sem arte, por mais que admitamos o esgotamento das formas que
herdámos, por mais que admitamos que a arte terá de ser inventada de novo
através de formas que mal ainda vislumbramos.
Mas
ainda que fosse possível imaginar um mundo sem arte, sem obras que o
exprimissem, jamais seria imaginável um mundo estendido fora do sentimento
estético, fora da qualidade emotiva que no-lo explica à nossa relação humana
com ele.
Porque
é dentro da emotividade que o mundo tem sentido, e a verdade humana, e a
orientação fundamental de tudo o que nos orienta. Porque o sentimento estético
é uma comunicação original com a essencialidade da vida - como esta que se abre
na voz obscura da chuva que dura ainda.
Eu
a ouço, eu a ouço, desde os confins da memória, balançando na rua a solidão dos
espaços. Eu a escuto na vidraça como um apelo clandestino para um encontro de
outrora. Que a água de pureza que te trespasse, e seja tu, rememore a água
obscura do nosso horizonte - e a vida se continuará, una, indestrutível, igual
e sem margens, como é igual na sua total presença, a vertigem da noite e a
iluminação do dia.
Saúde,
amigo.
Vergílio Ferreira. (2010). Carta ao Futuro.
Lisboa; Quetzal, páginas. 101 e 102
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