"Passar
o tempo? disse a Rainha. - Os livros não são para passar o tempo. São
sobre outras vidas. Outros mundos. Longe de querer que o tempo passe,
Sir Kevin, quem nos dera ter mais. Se quiséssemos passar o tempo, íamos à
Nova Zelândia. Sir Kevin retirou-se magoado. Mesmo assim marcou um
ponto e ficaria contente ao saber que deixou a rainha perturbada e a
pensar porque é que, neste momento particular da sua vida, sentira
subitamente atração pelos livros. Donde surgira esse apetite?
Sim
poucas pessoas tinham visto mais mundo do que ela. Quase não havia país
que não tivesse visitado, personalidade ilustre que não tivesse
conhecido. Estando ela própria na tribuna do mundo, porque se
entusiasmava agora com livros que, por muito que pudessem ser, não
passavam de um reflexo ou versão do mundo? Livros? Ela vira a realidade.
-
Eu leio e penso - disse a ela a Norman --, porque temos o dever de
descobrir como são as pessoas. O comentário fora tão trivial que Norman
não lhe dera muita atenção, pois não sentia esse dever e lia por puro
prazer e não para se iluminar ou inspirar, embora soubesse que parte do
prazer era inspiração. Mas ali o dever não entrava.
Para
alguém com a formação da Rainha, no entanto, o prazer ocupara sempre o
segundo lugar em relação ao dever. Se sentisse que tinha o dever de ler,
então podia dedicar-se a isso de consciência limpa, e o prazer, se
prazer houvesse, seria inerente. Mas porque é que aquilo se apoderara
dela agora? Não discutiu isso com Norman, por sentir que dizia respeito a
quem ela era e à posição que ocupava.
O
apelo da leitura, pensou, vinha da sua indiferença: havia na literatura
algo de nobre. Os livros não se importavam com quem os lia, nem se os
líamos ou não. Todos os leitores eram iguais, incluindo ela própria.
Pensou: a literatura é uma comunidade; as letras uma república. (...)
Os
livros não se submetiam. Todos os leitores eram iguais e aquele livro
levou-a ao princípio da sua vida. Quando era nova, uma das suas maiores
emoções foi a noite da Vitória na Europa, em que ela e a irmã se
esgueiraram pelos portões incógnitas, e se misturaram com a multidão.
Sentia que havia algo disso na leitura. Era anónima, partilhada, comum. E
ela, que levara uma vida à parte, ansiava por isso. Aqui, nestas
páginas e entre estas capas, podia seguir incógnita.
Porém,
dúvidas e interrogações eram só o princípio. Uma vez no ritmo normal,
deixou de lhe parecer estranho o facto de querer ler, e os livros, aos
quais se afeiçoara tão cautelosamente, passaram pouco a pouco a ser o
seu elemento."
A leitora real /Alan Bennett. A leitora real. Alfragide: Asa, 2009.
Sem comentários:
Enviar um comentário