"Há muito tempo,
quando era um rapaz da tua idade e vivia numa pequena ilha rodeada de
castanheiros, oliveiras e carvalhos que conheciam histórias centenárias mas não
as contavam a ninguém, a minha forma preferida de dar a volta à ilha e de regressar à Casa do Roseiral era na mota do meu pai.
O
meu pai era na altura, na cabeça de um rapaz de dez anos, um herói que
tinha participado na guerra em África e tinha matado muitos homens. Era
um herói que conhecia os caminhos todos que davam a volta à ilha e os
podia fazer de olhos vendados na Famel. Era um herói que - se
quisesse - abria os braços e deixava que a mota o levasse a voar por
todas as terras que circundavam a ilha onde morávamos.
Desde
que chegara da guerra e que prometera à minha mãe que um dia iria
levá-la para fora daquela ilha, o meu pai passava os dias na forja ao
lado da Casa do Roseiral. Afiava os picos que precisava para cortar o
granito ou martelava horas seguidas até dar forma às pedras que usava
para fazer os trabalhos que lhe eram encomendados. Encomendavam-lhe
alguns trabalhos, embora, na opinião da minha mãe, lhe pagassem muito
pouco pelo suor que resultava do esforço. (...)
Fazia
muitas pausas, mas acho que as fazia em segredo. É que quando ouvia a
minha mãe ou a avó por perto, a subir ou a descer as escadas da Casa do
Roseiral para levarem uma encomenda de roupa nova engomada aos senhores
que viviam no Bairro das Andorinhas, o meu pai escondia,
apressadamente, as figuras que moldava em pedra ou ferro e fingia que
continuava com os seus trabalhos, batendo com uma força desproporcional
num pico que ficava sempre de lado para essas ocasiões.
-
Não demoro nada. Já volto! - dizia a minha mãe. E partia com um cesto
debaixo do braço esquerdo, cheia de vida, a contar as horas até ao dia
em que o meu pai a levaria para fora daquela ilha.
Mal
ela dobrava a esquina, ele regressava, com os olhos cheios de fantasia,
às suas esculturas. Moldava figuras humanas de tamanho minúscu7lo, que
eu colocava em filas, e pequenas armas em ferro para pormos ao ombro de
cada uma das figuras. Por vezes, enquanto eu me entretinha a imaginar
batalhas nas terras distantes de África, onde ele dizia que tinha
combatido, o rosto de uma mulher ou formas estranhas que faziam lembrar
pássaros a voar saíam-lhe das mãos.
Mas talvez não fossem pássaros. Talvez fossem motas voadoras que o iriam levar para fora daquela ilha que lhe saía das mãos.
Às
vezes, a minha mãe, incitada pela avó, que vivia no Bairro da Capela,
numa casa cheia de fotografias de parentes antigos que moravam no Brasil
e na América, virava-se par o meu pai:
-
Não entendo! O Joaquim saiu no mês passado com a António. Já escreveu a
contar que está tudo bem e a Lúcia, em breve, junta-se a ele. Só tu é
que... é que nunca mais! Vamos apodrecer aqui! Tu, nessa forja, e eu, na
máquina de costura.
Quando
essas conversas aconteciam - e ultimamente aconteciam cada vez com mais
frequência -, o meu pai, que era um herói que tinha participado na
guerra em África e tinha matado muitos homens, olhava para mim, abria
muitos os olhos, encolhia os ombros, pegava na mota, que estacionava ao
lado da forja, debaixo do roseiral e, com a cabeça a fantasiar, dizia:
-- Anda! Vamos dar uma volta!"
Volta ao mundo na mota do meu pai / Raquel Ramos; il. a. mar. Porto: Coolbooks, 2019
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