Fui ver a minha
nova estante logo pela manhã.
Era um bocado de
espaço arranjado entre tralhas meio esquecidas. Fiquei ofendido. Os livros não
esquecem nada. Eles são sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma
agressão à sua própria natureza. Embora, na verdade, eles nem se devem
importar, porque podem esperar eternamente. (...)
As histórias podem
comer muitas palavras.
Pensei: os meus
queridos livros. Era o que eu pensava e sentia: os meus queridos livros.
Olhava-os como se estivessem vivos e pudessem sofrer. Como se pudessem também
entristecer.
Gostei de colocar
a hipótese de os livros serem como bichos. Isso faz deles o que sempre
suspeitei: os livros são objectos cardíacos. Pulsam, mudam, têm intenções,
prestam atenção. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem
leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São
inteligentes e reconhecem a inteligência.
Os livros estão
esbugalhados a olhar para nós. Quando os seguramos, páginas abertas, eles
também estão esbugalhados a olhar para nós. (...)
A primeira vez que
vi um livro, que me lembre, era um que estava aberto, pousado sobre a mesa, com
as folhas em leque como se fossem uma colorida flor contente. (...) Depois,
compreendi, era o modo silencioso das conversas. Todos os livros são conversas
que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou
Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos anos.
A morte não
importa muito para os livros.
Mais tarde,
aprendi que os livros acontecem dentro de nós. Claro que eles podem ser bonitos
de ver, mas são sobretudo incríveis de pensar. Eu disse ler é como caminhar
dentro de mim mesmo. E é verdade. Quando lemos estamos a percorrer o nosso
próprio interior.
Uma menina do
colégio perguntava-me sempre se eu queria brincar às coisas bonitas. Brincar de
beleza, dizia assim. Era igual a ficarmos cheios de delicadezas a fazer de
conta que adorávamos tudo: os puxadores velhos das portas, os livros de
álgebra, as meias rendadas da professora, a sopa de beterraba à hora do jantar
no refeitório ou o cão zangado do guarda nocturno. Servia de maneira divertida
para fazermos de conta que o mundo era maravilhoso e, subitamente, o mundo
inteirinho parecia mesmo maravilhoso. Isso era tão bom de sentir.
Valter Hugo Mãe.
(2015). "O rapaz que habitava os livros". Porto: Porto Editora.
93-94.
Imagem: Copyright
- Festival au fort d'aubervilliers.
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