Um dia,
eu disse: vamos brincar à beleza das coisas que se pensam, como as que se lêem.
Porque as coisas que se lêem precisam de ser pensadas. E ela perguntou: as que
existem ou as que não existem? E eu disse: todas. As coisas todas que pudermos
imaginar.
Então,
ela propôs: pássaros com trombas de elefante a voar sobre cabeças de mulheres
com raízes de árvores.
Rimos muito
e eu exclamei: que lindo. Repeti, lentamente: pássaros com trombas de elefante
a voar sobre cabeças de mulheres com cabelos de raízes de árvores. Depois
acrescentei: chávenas de chá com bocas falantes que ferram mãos de quem as
tenta pegar. Rimos muito e ele exclamou: que lindo. Repetiu: chávenas que
ferram.
Ela
disse: carros com pneus feitos de batatas gigantes que têm pêlos como as pernas
dos homens e a transportar famílias de galinhas felizes. Rimos e eu exclamei:
que lindo, adoro galinhas felizes. Repeti: carros com famílias de galinhas
felizes.
E se fosse
um homem com tartarugas ao invés de olhos? Ia ver muito devagarinho. E outro
que tivesse um canguru ao invés da boca? Ia falar aos saltos.
Uma
árvore que tivesse braços de pessoa ao invés de troncos e segurasse ninhos de
cegonhas nas mãos. Que lindo! Depois, eu disse: os meus pais a darem um beijo.
E os meus avós. E ela respondeu: e os meus também. Rimos, e exclamamos
subitamente em conjunto: que lindo.
Fui
dizer-lhe que me haviam levado os livros do quarto. Estava igual a sozinho.
Absolutamente sozinho a noite inteira. E ela respondeu: isso é feio. Sabia bem
que importância tinham para as minhas histórias. Ela perguntou: e agora? Eu
respondi: passo os dias à espera dos intervalos para ler um bocadinho. Passo as
noites a sonhar à pressa para poder acordar e voltar a ler. Ela respondeu:
sonhar à pressa é uma pena.
Quando
eu sonhava que lia, acordava. Parecia um castigo.
Era
comum, subitamente, que eu me esquecesse de tudo durante os intervalos. Corria
para os bancos no lado da frente do colégio, à vista dos janelões principais, e
aí deitava os olhos às letras e a alma inteira à imaginação. Quando era hora de
entrar, tantas vezes algum colega vinha cutucar-me. Diziam: anda, seu
distraído. Anda embora.
Um dia, ninguém me cutucou. Fiquei
apenas caminhando dentro de mim, o que era diferente da solidão. (...) Voltaram
para dizer à professora: parece que se mudou para dentro do livro porque não
ouve a nossa voz. Usámos os binóculos da sala de ciências e vimos bem, senhora
professora. Ele sorri. Está feliz.
Isso levantara o problema de saber
como trocar a felicidade pelo regresso à aula.
Valter Hugo Mãe. (2015). "O
rapaz que habitava os livros". Porto: Porto Editora, págs. 95-97.
Imagem -Copyright: André Neves
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