Na
trama da relação que constituem a história, que o espírito dos seres homologa
ou veta mas que jamais se livra em sua solidão sem paz, somos nós que nos
buscamos ou é o encontro objectivo que se dá? De que adejar de antenas ou
tremor de cílios se faz o fadário de cada um?
Onde
topámos com alguns dos que nos acompanham agora a peregrinação? Onde os
reacharemos, quando se afastam cansados da partida? Essas naves sobrecarregadas
de destinos diversos, agrupados em contingentes afins, que é no que consistem
os bairros de Paris nos princípios do século, ora encalham nos bancos da morte
ora zarpam rumo a um futuro de alguma eternidade.
Poucas
vezes se perderá Amadeo pelas conversas de rua. (...) A ganância da fama não
lhe anulará a reflexão e, quando profetiza que haverão de disputar-lhe os
trabalhos a preço de oiro, não o faz pela cegueira da ambição defraudada. É
muito menos um vaticínio que o resultado de uma equação para que já dispunha
dos termos necessários e suficientes. Pressente-se-lhe nas cartas um pensamento
que preexiste a acção, o que é muito raro nos artistas. Na pintura, também,
será a mesma natureza.
Digere quanto vê, rabisca ao canto do
calendário ilações e memoranda, predispõe-se à aprendizagem sem mestres
ungidos, vertiginosa ginástica de se ser e se perder. Não são assim os
inspirados, arrebatados por uma águia que nem os arrasa nem os salva. Assim
são, porém, os desbravadores de continentes, alguns atletas sem ideologia
política. muitos artesãos que gravaram siglas na cantaria das catedrais. Ele
não perpassa, fica. E na determinação de ficar palpita uma preocupação de
burguês abastado, que ordena, a cinquenta anos de vista, a plantação de um
carvalhal ou a vedação de uma jeira, para quando for aberta a
auto-estrada.
Ainda nisso radicará a monomania da
poupança, sintetizada nos pincéis cuidadosamente perfilados em seu canjirão de
Bisalhães, na mina de lápis que se aguça nem mais nem menos que o preciso, nos
restos virgens de Whatman que para as contas se aproveitam ou para o rascunho
de um bilhete.
Mário Cláudio.
(2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D.
Quixote, págs. 48 - 50.
Imagens:
Copyright - Biblioteca de arte - Fundação Calouste Gulbenkian
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