segunda-feira, 16 de maio de 2016

Amadeo - desenhar uma personalidade fascinante (I)


Aprendia a ser-se. De um toque de dedos derrubava o chapéu para a nuca, quedava-se inclinado sobre um quadril, ou então descia solidamente a escadaria de granito, estacava de pernas afastadas, farejando afrontas e risos, pronto a replicar. Deste modo se estabelecia numa certeza conjectural, se reunia forças para se ter íntegro e violento em seu inexaurível desejo de vida.

E a paz vinha de se acreditar, num cenário que era ainda indecisa a autenticidade dos trabalhos inventados. A poeirada dessa quinta recôndita enchia-lhe por vezes os olhos, os arvoredos esbatiam-se num verde grosseiro e afogado. Mas não desertava do posto, timoneiro de si próprio como se confessava amiúde, acreditando nas mãos enfiadas até às profundas das algibeiras, guardião de confidências, abridor de sortes.

Os rafeiros vinham devagar até ele, rondar-lhe a figura, deitavam-se-lhe aos pés. Um carro de bois insistia ronceiro em sua marcha, arrastando a paciência na estrada por detrás da casa.

Um dos tios de Amadeo iniciou a escrita de uma obra que seria a biografia de uma vida, justamente a de Amadeo de Souza-Cardoso. Mário Cláudio com conhecimentos na região pela sua própria origem nas terras entre Douro e Minho veio a ter acesso a esse texto inicial. A partir dele escreveu um texto belo e substantivo, narrativo e poético que tenta chegar a esse ponto inicial do homem antes do artista. Que tenta chegar ao desenho de uma vida. É um texto que nos confirma ou inicia a quem não conhece as formas desse brilho humano chamado Amadeo de Souza-Cardoso.

Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, página 26, 27
Imagem: Copyright - Biblioteca de Arte - Fundação Calouste Gulbenkian

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