segunda-feira, 23 de maio de 2016

Amadeo - desenhar uma personalidade fascinante (VI)


Administrador do talento próprio, se nos arriscássemos a falar de tal essência a propósito de quem progressivamente escravizou meios de expressão e aparelhagens de domínio, jamais Amadeo se olvidará de si. Pessoas de tal nervo, só porque não podem dar-se ao luxo da ausência de si próprias, se não ausentam dos outros. 

Temos visto desses irmãos que erigiram o currículo à custa da obsidiante preocupação consigo mesmos, reflectida, como numa ilusão de espelhos, na solicitude para com o próximo e até para com os objectos. Assim foi Amadeo, assim o sofreram alguns que, agastados pela sua presença, incontinentemente o votaram à danação de que, afinal,investidor vocacionado que sempre entendeu de conveniências, viria a retirar os melhores dividendos. 

Ninguém, daqui para diante, o insultará de louco, reconhecendo-lhe todavia a malevolência capaz de converter um morno serão numa tarde de Carnaval. Só que a desordem do espírito é de muito mais que necessita, da aptidão para visionar e não só para resolver, da anulação absoluta de ser arte a ideia que o transponha. Se Amadeo atingisse qualquer forma de náusea, o que é duvidoso, alguma vez acontecesse, seria daqui que viria a crescer, desta sabença de que a rotação dos ponteiros é só para si impossível carreto de levar aos ombros.

Com a quotidianidade forçada às fronteiras que convencionara, experimentaria a agonia irritada dos que assistem à festa por detrás de um esconso guarda-vento, dos que vitoriam as  núpcias dos outros com a sabedoria acumulada e insubmissa de jamais nelas poderem participar. Imputar-lheao alguns a inacessibilidade, outros o mau gosto, não sendo de excluir os que, desentendidos de sinuosidades estéticas, apenas suspeitarão a rendibilidade do charlatanismo ou o modismo da mediocridade. 

Permanecerá Amadeo aquém e além deles, nesse ubíqua condição em que se reverenciam os que foram e ficaram? Só os deuses, para quem a morte é jovem, pairam eternamente em regiões assim, o que será talvez conclusivo sinal da genialidade do servo que convocaram.

Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, página 107 e 108.
Imagem -Copyright: Amadeo de Souza-Cardoso- O muro na jenela
Óleo s/ tela, 28 x 21cm
c. 1916

Colecção Particular
Museu Municipal Museu de Souza-Cardoso, Amarante

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