A civilização moderna encontra-se numa
posição difícil, porque embora edificada para nós, não está ajustada à nossa
medida. A nossa ideia de homem ainda não encontrou o seu lugar estranho e
complexo, ela oscila entre a visão filosófica, que o erige no único sujeito num
mundo de objectos, e a visão científica que tende a ignorar o espírito humano.
Ainda não ajustámos a nossa visão do Homem ao Homem e do mundo ao mundo.
Recordamos aqui a célebre alegoria da
caverna. As sombras projetadas no fundo da caverna são o mundo natural, aquele
que percecionamos. Esses prisioneiros agrilhoados no seu lugar e aos quais uma
gargantilha impede de voltar a cabeça “é connosco que se assemelham”. A
fascinação que o jogo irrisório das silhuetas imprecisas exerce sobre esses
infelizes revela o nosso estado, sentimo-nos perdidos: o meio elaborado pelo
Homem não se ajusta à nossa estatura, nem à nossa natureza. Assim
poder-nos-emos questionar se o Prometeu revestido pelo poder, desagrilhoado, na
opinião de alguns, ou seja com o poder de intervir, de praticar o possível e
mesmo o impossível, não o vai voltar a agrilhoar, se ele não olhar ao
conveniente.
Vivemos num presente esmagado pelo peso do
futuro. A nossa relação com o tempo é, antes do mais, uma relação extremamente
dura e violenta com o futuro. Fala-se do futuro mas, paradoxalmente, nunca
fomos tão responsabilizados pelo futuro que devemos deixar às gerações
seguintes. Deveríamos, portanto, mudar radicalmente de atitude e romper com
todo o tipo de utopismo. Quer o aceitemos ou não, estamos investidos de uma
responsabilidade desconhecida, a de deixarmos às gerações futuras uma terra
habitável e um mundo sustentável. Sem isto, os nossos descendentes não serão
capazes de progredir, nem exercer as suas responsabilidades.
Necessitamos de uma reabilitação do ethos,
dos valores morais que fundamentam as atitudes humanas; precisamos da ética, de
teorias filosóficas sobre os valores e normas que devem nortear as nossas
decisões e comportamentos. A atual crise deve ser entendida como uma
oportunidade; importa encontrar uma resposta para os desafios do presente. Se o
futuro não está escrito, é múltiplo. Assim todas as possibilidades, mesmo o
impossível, são imagináveis. A questão da escolha é portanto essencial.
A Bioética, ética aplicada às ciências da
vida, surge na interseção de uma crise de valores e de normas coletivas com o
desenvolvimento do individualismo das pessoas e do pluralismo das sociedades.
Estimula o debate público sobre as escolhas para o nosso futuro, promovendo uma
alteração de consciência, incentivando a participação informada e responsável
dos cidadãos. Como ciência transdisciplinar, começa a ser reconhecida como a
componente indispensável da formação do cidadão empenhado na vida coletiva,
tornando-se numa ética do cidadão, numa ética cívica, enquanto reflexão sobre a
ação que se desencadeia, desenrola e se repercute na comunidade global. Tal
como defende Victoria Camps (1998), a participação cívica deve ser encarada
como a estrutura moral da democracia, onde a ética contribui de um modo
determinante para a formação de uma consciência de deveres inerente à formação
de direitos, o que faz com que funcione como um elemento de ponderação na
educação para a cidadania.
É justamente pela sua especificidade que a
Bioética, quando considerada sob o ponto de vista da educação para a
deliberação, constitui uma oportunidade excecional para o desenvolvimento de
competências reflexivas, críticas, de base plural e democrática. Ao mesmo
tempo, permite desenvolver a consciência da responsabilidade e da necessidade
da deliberação para a decisão, reconhecendo a posição do outro sem
(pré)-conceitos, pressuposto indispensável para um qualquer debate ético.
Ana Sofia Carvalho, "A Bioética
e a responsabilidade de deliberar para decidir", Observatório da Cultura,
nº 21, in http://www.snpcultura.org/
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